O 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro exibiu um filme bastante especial em sua edição 2020. O documentário Candango: Memórias do Festival (2020), de Lino Meireles, traça a história do festival mais longevo do país, desde os anos 1960 até os dias atuais. Em seu primeiro longa-metragem, o cineasta conversa com dezenas de diretores, produtores e atores que tiveram suas trajetórias impactadas por um dos eventos cinematográficos mais politizados do país.
Através das entrevistas com Luiz Carlos Barreto, Neville d’Almeida, Suzana Amaral, Lúcia Murat, Ruy Guerra, Jean-Claude Bernardet, Cláudio Assis, José Eduardo Belmonte e muitos outros, o projeto efetua um vasto panorama do cinema brasileiro ao longo da ditadura militar, do desmonte da Embrafilme, do processo de retomada… O Papo de Cinema conversou com Meireles sobre o ambicioso filme:
O filme impressiona pela quantidade de entrevistas. Como delimitou o roteiro?
Foi uma loucura. Eu sou de Brasília, e acompanho o festival há anos. Quando tive a ideia, sabia que isso daria um filme, mas não sabia o que conseguiria fazer. O festival acontece todos os anos, durante cerca de dez dias. Pessoas do Brasil inteiro vêm para cá, têm uma experiência maravilhosa, e depois voltam cada uma para a sua vida. No resto do ano, o festival fica esquecido. Essa foi uma das razões para fazer o filme. Mas eu não sabia o que daria certo nos pedidos de entrevista. Começamos com os diretores aqui de Brasília, e todos topavam por causa do festival. Assim passamos a fazer pedidos mais ambiciosos, no Rio de Janeiro e em São Paulo, por exemplo. Para a minha surpresa, todo mundo topava falar. Eu era um diretor sem corpo de trabalho para mostrar, então não podia apresentar meus filmes para convencer estas pessoas. Além disso, era um ano pandêmico.
No final, ninguém se sentou especificamente para falar comigo, porque não me conheciam. Não sou Jorge Bodanzky, nem Júlio Bressane. Eles toparam pelo afeto que carregam pelo Festival de Brasília. Eu visitei a casa das pessoas, conversei com as famílias – eram experiências surreais para mim, que era fã dessas pessoas. Como pretendia recolher imagens de um arquivo oral, dei tiro para todos os lados. Foi um tiroteio glorioso: criei uma lista inicial com mais de cem nomes. Eu tinha apenas três meses para filmar, por razões pessoais e de logística. Conversamos com quem topava falar com a gente – algumas entrevistas nem foram feitas por mim, mas pela nossa diretora de produção, a Yale Gontijo. Essa foi a minha primeira vez entrevistando pessoas, e a Yale me ensinou, ela fez as primeiras entrevistas comigo. O tempo era limitado, e eu queria fazer o máximo possível, sem pensar no produto final.
A ideia era descobrir que memórias afetivas estas pessoas tinham do festival. Não queria a versão dos jornais: o festival sempre foi muito importante para a vida cultural da cidade, e a cobertura da imprensa acontece ano a ano, ao vivo. Existia bastante material disponível. Mas eu não queria explicar o festival, com narração em off, em terceira pessoa. Essa lista se encaminhou a algumas escolhas pessoais: eu me concentrei mais em diretores, porque eu mesmo aspiro a ser diretor.
A montagem se articula em temas: a ditadura militar, os filmes de cineastas mulheres, os prêmios polêmicos. Como estabeleceu essas prioridades?
Tenho um projeto futuro de disponibilizar todas essas entrevistas online e gratuitamente, porque são uma preservação de memória. O roteiro era imenso. Listei tudo o que pensava em colocar, baseado nas entrevistas. Esse foi o ponto de partida para um livro, já publicado, de 400 páginas. No caso do filme, sabia que precisava ter no máximo duas horas de duração. A gente queria fazer um panorama do início até os dias de hoje, pescando eventos que representassem toda a época em que se encontravam. Então apresentamos um filme censurado, por exemplo, capaz de ilustrar a censura como um todo. Cada época foi representada por alguma história mais rica.
A triagem final era condicionada ao material de arquivo disponível: muitas histórias ótimas ficaram de fora porque não encontramos o material de arquivo correspondente. Não posso dizer que não existia, mas nós não encontramos. Os bastidores, as festas, eram particularmente difíceis de incluir, porque as pessoas não filmavam isso na época. Alguns entrevistados que viveram tanto as épocas mais antigas quanto as edições recentes me diziam que se tornou complicado se soltar no festival agora, sendo uma celebridade (especialmente para atores e atrizes), porque todo mundo carrega uma câmera no bolso. Fica mais difícil se sentir à vontade. As histórias lendárias de pessoas pulando peladas na piscina do Hotel Nacional são lembradas por todo mundo. De dia, mergulhavam de roupa, e à noite, era sem roupa mesmo. Mas não existem imagens disso, e eu não queria contar algo que não pudesse mostrar.
No final das contas, é o material de arquivo que manda. Quando a gente terminou, o montador Humberto Martins separou o material que reunimos em cerca de 3h30. Primeiro, fizemos uma busca abrangente sobre tudo a respeito do Festival de Brasília nas instituições mais conhecidas. Depois de decidir as histórias, começou a busca mais focada. O montador separou todos os depoimentos que ficaram de fora na versão final, mas eu nunca tive coragem de ver esse material: me dá agonia e tristeza rever uma fala importante que ficou de fora. Mesmo assim, este critério mais objetivo me ajudou a fazer o filme, assim como a delimitação de uma data: você pode passar anos pesquisando, e sempre vai aparecer mais material. É como nas filmagens: definimos quando parar de pesquisar e quando parar de filmar. Senão, seria uma busca eterna.
O documentário traça um panorama da cinefilia, que mudou muito desde os anos 1960.
Existe algo especial em ver um filme brasileiro num festival brasileiro de cinema. Brasília tem um público muito cinéfilo, mas nem tudo o que passa pelo festival ganha exibição comercial depois. Antes, a situação era ainda pior: se você não visse o filme no festival, não conseguiria ver nunca mais, na maioria dos casos. Não falo dos vencedores, dos filmes que marcaram época, mas dos tesouros de mostras paralelas, por exemplo. Hoje, a maioria das obras tem a possibilidade de alguma plataforma de streaming, ou de passar no Canal Brasil. Eu entrevistei diretores que não tinham cópia do próprio filme para mostrar, e por isso, não consegui ver. Ou então vi numa versão muito ruim na Internet.
A cinefilia, no caso dos filmes brasileiros, é dificultada por isso: alguns títulos são impossíveis de ver, mesmo pagando. Conversei com a Tata Amaral por Um Céu de Estrelas (1996), que foi um filme muito marcante. Tive que fazer a entrevista sem ver o filme, e admiti isso para ela. É claro que eu tinha visto os outros filmes dela, e feito uma grande pesquisa prévia, inclusive sobre Um Céu de Estrelas. Pedi para ver o filme, mas ela disse que não tinha como, nem pagando. Não está disponível em DVD, na Internet, em streaming nenhum. Salas de cinema já são caras, e muitas pessoas não têm condição de pagar o ingresso. Mas nem em casa você consegue assistir a esses filmes. A empolgação de estar no festival também se deve à consciência de poder ver títulos que, fora dali, você não vai poder ver. A conversa pós-filme, junto dos amigos, só era possível para quem estivesse presente no cinema. Hoje a situação mudou bastante. É possível cada um ver separadamente na sua casa, e as conversas de Internet são infinitas.
O que distingue o Festival de Brasília de outros eventos tradicionais como os Festivais de Gramado e o CinePE?
O Festival de Brasília tem as vantagens de ser o mais longevo. Muitas pessoas dizem que ele é primeiro do Brasil, mas isso não é verdade. Ele é o mais antigo ainda em atividade. Por atravessar tantas décadas, com pouca concorrência durante a maior parte do tempo, o cinema passou por lá. O que aconteceu no cinema brasileiro, aconteceu no Festival de Brasília. As coisas mudaram agora. O Paulo Sacramento até diz isso no filme: hoje tem pessoas reclamando que existem festivais demais. Se tem mais de 300 festivais acontecendo, isso é ótimo. São 300 eventos onde as pessoas têm a oportunidade de verem filmes brasileiros. Nós produzimos muitos filmes anualmente. Além disso, o Festival de Brasília sempre foi conhecido enquanto evento político e de resistência. A partir da retomada, entre o final dos anos 1990 e a partir dos anos 2000, com o destaque do cinema pernambucano, o festival começou a refletir a política crescente para o audiovisual.
Teoricamente, o Festival de Brasília não precisaria resistir. Mas os círculos da história trazem revezes: de repente, o festival volta a representar um símbolo de resistência pela mudança nas políticas públicas e pelos resultados das eleições. Durante as filmagens, percebemos a regularidade do desmonte: existe o golpe nos anos 1960, a extinção da Embrafilme nos anos 1990, e entre 2018 e 2020, vem esse governo com uma política clara de destruição da cultura. Tem sido de trinta em trinta anos, mais ou menos, como um relógio, com uns três ou quatro anos de diferença. Isso é muito chocante. O festival pode ter uma década ou outra em que não será foco de resistência, porque a cultura brasileira estará aflorando. Mas na década seguinte será preciso fazer esse papel de novo. A resistência cultural é constante: nenhuma conquista está garantida.
Quando começou este projeto, não tinha como imaginar o Festival de Brasília em 2020. Como interpreta a versão online, cercada de controvérsias de seleção e organização?
Eu estou assistindo aos filmes, que estão muito bons. A pandemia está criando muito sofrimento pessoal e econômico. O fato de a gente não ter o festival de Brasília dentro do Cine Brasília é triste. Mas diante de tudo o que está acontecendo, a realização do festival é uma conquista. 2020 é um ano de se abrir, de enxergar a necessidade que as pessoas estão passando. Este é o meu primeiro filme, e eu adoraria exibi-lo no Cine Brasília, cheio de gente, e sair para tomar uma cerveja para comemorar depois. Mas não estou nem um pouco triste com o fato de ser exibido online e na televisão, em virtude das circunstâncias deste ano. Dito isso, é ótimo que os filmes estejam no Canal Brasil. Consegui me adaptar para assistir a tudo, mas não conheço os resultados de audiência. Não tenho essa informação.
O fato de o festival acontecer é o mais importante. Quanto ao processo de seleção dos filmes para o festival, as pessoas reclamam de alguns títulos selecionados desde 1960. Vi muitas histórias do tipo: as pessoas dizem que tal ano foi mais fraco, que um ou outro filme não merecia competir. Incluí pouco desse debate no corte final, mas escutei muitas discussões a esse respeito. Desde que o processo seja transparente, e que o festival aconteça, tudo bem. As contestações vão acontecer sempre. Uma edição ruim, independentemente da pandemia, não define o festival. O festival é definido pelo que vem construindo há décadas.
Fiquei muito feliz quando vi que o Sílvio Tendler cuidaria da curadoria – ele é um dos entrevistados do documentário. O Sílvio fez uma das edições mais importantes dos últimos 30 anos: a edição de 1996. Foi uma edição histórica. A presença dele na curadoria é maravilhosa. A edição não é perfeita, mas o importante é existir e resistir. Estou muito feliz de participar em 2020. As mensagens que meu filme passa, sobre o cinema brasileiro, dizem respeito tanto à dificuldade de fazer cinema brasileiro quanto à satisfação em continuar filmando. Esta mensagem tem um significado ainda mais forte neste ano, diante deste governo.
Como enxerga os caminhos para viabilizar e lançar um projeto de baixo orçamento e cinéfilo?
Se você tiver esta resposta, por favor, me conta! Liga para todos os produtores e compartilha! Em uma das conversas que tive com o Luiz Carlos Barreto, conversamos sobre a distribuição, que é o grande gargalo do cinema brasileiro. Ele falou muito sobre Lula: O Filho do Brasil, que foi o filme de abertura no festival em 2009. Ele ficou surpreso com o resultado fraco nas salas de cinema. Um ano depois, quando passou na televisão, 20 milhões de pessoas viram o filme. Ele achava estranha essa diferença de interesse. Eu não queria explicar qualquer coisa para o Luiz Carlos Barreto, mas sugeri que o problema estava no preço: para a grande maioria das pessoas, o cinema é um luxo. Manter uma edição presencial é o grande desafio dos festivais de cinema, incluindo Brasília.
Independente de ter mais ou menos filmes bons num ano específico, o festival existirá enquanto tiverem pessoas indo ao cinema. Há pouco tempo, fui a uma daquelas edições míticas em que fiquei sentado no chão. Não tinha um centímetro para andar dentro da sala. Isso corre o risco de ficar cada vez mais raro, não com algum festival específico, e sim devido às circunstâncias que afetam todo o audiovisual. Para o cinema autoral, de baixo orçamento, a exibição em festivais é ainda mais importante. Dois elementos são importantes para atrair o público: o evento em si, e também o cinema exibido por ali. Isso não diz respeito apenas a Brasília. Até os americanos estão sofrendo com as dificuldades do circuito exibidor agora, então imagina para os brasileiros! Posso reclamar da dificuldade de encontrar os filmes antigos, mas o fato de existirem significa que podem ser encontrados depois. O primeiro passo é garantir que os filmes continuem existindo.