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Cangaço Novo :: “O cangaço retrata uma realidade antiga que continua lá. E o Brasil precisa ver esse novo ponto de vista”, afirma Allan Souza Lima

Publicado por
Robledo Milani

Allan Souza Lima não é nenhum novato. Nascido em Recife, Pernambuco, há quase quatro décadas (ele é de 1985), estreou na telinha, em novelas da Record e depois na Globo, para chegar aos cinemas apenas alguns anos depois, e já fazendo barulho: apareceu como um desinibido garoto de programa chamado por Clara, vivida por Sônia Braga e estrela principal do aclamado Aquarius (2016), para uma noite de prazer sem maiores compromissos. Sua participação, ainda que pequena (em tempo de cena) não passou desapercebida, e logo começou a ser convocado para novos trabalhos. Filmou no sertão (O Matador, 2017) e no pampa (A Cabeça de Gumercindo Saraiva, 2018), foi premiado no Festival de Gramado (O que teria acontecido ou não naquela calma e misteriosa tarde de domingo no jardim zoológico, 2016) e gerou comoção nacional como um dos assassinos do díptico A Menina que Matou os Pais (2021) e O Menino que Matou Meus Pais (2021). Agora, no entanto, está à frente de uma produção feita para o streaming – a série Cangaço Novo (2023), lançada com exclusividade no dia 18 de agosto no Amazon Prime Vídeo – e, pela primeira vez, como protagonista. Nós conversamos com o ator sobre esse desafio inédito. Confira!

 

Vamos começar pelo início. Quem é o Ubaldo, teu personagem?
Assisti na tela do Festival de Gramado ao primeiro capítulo de Cangaço Novo pela primeira vez. Acho importante frisar isso, pois não foi prepotência da minha parte não ter assistido ao programa antes. Precisei me distanciar durante esse processo. Então, ter assistido, e na tela grande, me fez perceber diversas coisas. Uma coisa que me impactou foi, por exemplo, o silêncio do Ubaldo. O modo dele olhar para o mundo, tão quieto, me corroeu um pouco. O Ubaldo, nesse silêncio, tem uma tentativa de reencontro com ele mesmo. O silêncio dele é a representação máxima desse personagem. Foi a grande briga que tive para me encontrar nele, pois descobri que sou tão silencioso quanto ele. O Ubaldo é um cara que não tem identidade. Ele tá tentando se descobrir. Essa é a grande saga dele: a procura da sua própria identidade.

Thainá Duarte, Alice Carvalho e Allan Souza Lima nos bastidores de “Cangaço Novo”

A gente percebe, já pelo primeiro episódio, que Cangaço Novo será uma jornada de transformação. Como foi sofrer essas mudanças?
O Ubaldo tem em si o que a Dilvânia (Thainá Duarte) e a Dinorah (Alice Carvalho) têm também. Sendo que acaba rolando uma inversão entre eles. A Dinorah é o Ubaldo, estão entrelaçados pela Dilvânia. O que acontece até o meio da temporada é uma coisa, mas dali em diante é o Ubaldo que se torna a Dinorah. Tem esse momento de virada. É quando se conhece a outra face dele, assim como também o outro lado dela. Existe uma inter-relação muito bem desenvolvida entre os irmãos. E o pêndulo vem com a Dilvânia, que é o mistério, algo que só vai ser entendido com o decorrer da história.

 

Como foi essa parceria com a Thainá Duarte e com a Alice Carvalho? Como foi trabalhar com elas?
A gente teve uma relação incrível. Foram oito meses de trabalho. Sempre falamos nas entrevistas que o reflexo do nosso trabalho foi fora do set. Em muitos momentos ficamos emocionalmente abalados, demos as mãos uns aos outros, em outros dormíamos juntos, como irmãos de verdade. Passamos por maus bocados. E fomos a base um do outro. Isso potencializou dentro do trabalho essa relação pessoal. Nós não nos conhecíamos antes disso. Fomos apresentados durante a preparação com a Fátima Toledo. Eu e a Alice tivemos um embate inicial, ela tinha medo do jeito dela. Tanto que me disse: “sou um pouco agressiva no meu jeito de ser, na minha forma de manifestar minha arte”. De cara, pensei: “acho que vou ter problema com ela”. Mas não aconteceu nada disso. Brigamos uma vez só, na última semana, depois de todo esse tempo vivendo grudados. Uma briguinha tinha que ter, né? Mas a parceria de irmandade foi grande. E isso está nítido no nosso trabalho.

Allan Souza Lima e Marcélia Cartaxo em cena de “Cangaço Novo”

Você é um ator afeito à personagens expansivos, e o Ubaldo, ao menos no começo, é muito contido. Imagino ter sido esse o maior desafio, não?
A Fátima, que é uma das maiores preparadoras de elenco do Brasil, quando passei e fui aprovado para fazer a série, me disse: “eu não queria você”. Era uma brincadeira dela, mas falando sério. Isso porque foi pesquisar a meu respeito nas redes sociais e não gostou do que viu. Me achou um pouco prepotente, muito agressivo, na maneira como manifesto minha arte, meus posicionamentos. Superar esse pré-conceito que ela tinha a meu respeito foi, aí sim, o mais desafiador. Foram dois meses de preparação, e até entender que eu não era o macho-alfa, que não era o Allan que estava ali, tive que desapegar de muita coisa. Lembro que o grande momento desse encontro foi, na última semana, quando estava fazendo uma cena com a Dilvânia, estávamos os dois sentados no sofá, e foram 40 minutos em silêncio. Comecei a ficar desesperado, não sabia como me comunicar com ela. E a coisa foi acontecer faltando apenas dez minutos pra terminar. Foi pelo cansaço. A Fátima virou pra mim, nesse instante, e disse: “agora sim você entendeu quem é o Ubaldo”. Foi a grande descoberta da minha vida. O ator e o personagem estão interligados, são a mesma pessoa. O personagem, então, é gratificante porque te ensina muita coisa.

 

Esse silêncio do Ubaldo transparece também nas imagens da série.
Eu não tinha percebido isso. O Ubaldo simplesmente não fala.

Allan Souza Lima, ao centro, durante as filmagens de “Cangaço Novo”

E tu cai. Durante o primeiro episódio, o Ubaldo cai várias vezes no chão. É jogado da moto, de cima do carro, pra fora da casa. Ele precisa cair tantas vezes até conseguir se levantar?
Não tinha pensado nisso. Nossa, é verdade. Imageticamente, faz todo o sentido. Me pegou de surpresa. Mas com certeza. O que me impactou foi esse silêncio, como você alertou. Eu não falo quase nada no começo. São coisas muito pontuais. Foi algo que me agradou. E, sim, ele só cai. Não sem motivo. Tem alguma coisa ali. A pessoa que cai demais, uma hora vai ter que levantar. Ele não vai entregar para a vida.

 

Allan, além de intérprete, você também é diretor. Como foi esse trabalho com o Aly Muritiba e com o Fábio Mendonça, os realizadores de Cangaço Novo?
Eles entenderam, desde o início, o que a gente tinha para entregar, porque também fizeram a preparação com a Fátima Toledo. Em alguns momentos estavam presentes, ali do nosso lado. E isso foi um pedido nosso. Tinha um receio, pois cada um tem suas particularidades, e tenho as minhas manias num set. Pensei comigo mesmo: “espero que entendam o meu processo”. Então, terem participado da preparação, garantiu que entendessem como chegar até nós. Teve uma vez que pedi a um deles: “se temos uma cena de angústia, pelo amor de Deus, não vem gritando!”. A grande virada do Ubaldo se dá no terceiro episódio. E nesse dia, lembro do Fábio chegar em mim e pedir: “economiza hoje, ok?”. Ia ser um dia inteiro no set, sob um sol agonizante, ou seja, sabia o quão extenuante aquela jornada seria. No primeiro take, no entanto, não aconteceu. Virei pra ele e disse: “me deixa. Vou entrar no personagem e só vou sair no final da diária”. E virei, literalmente, o Ubaldo. Começamos a conversar aos berros um com o outro, porque a cena era de muita porrada, dedo na cara de todo mundo, era um momento de mata ou morre. Eu virei aquele cara. É sobre isso que acredito.

Bastidores das filmagens de “Cangaço Novo”

Cangaço Novo. Acabou o cangaço? Teve que vir um novo cangaço? Ou ele sempre esteve presente, e só agora está sendo redescoberto?
Sempre esteve presente. Por acaso, calhou da série contar essa história. Interior é isso, principalmente no nordeste. Infelizmente, é um Brasil que não deu certo. O que mais acontece são esses políticos que roubam na cara dura, assaltos a banco sempre existiram. A região geográfica não permite um maior controle, a militarização inexiste. É muito fácil você chegar, meter bala, invadir qualquer banco e se mandar. O contexto dessa história se passa alguns anos atrás, mas continua sendo o mesmo. O cangaço retrata uma realidade antiga que continua lá. E o Brasil precisa ver esse novo ponto de vista. Não tinha percebido isso. Mas a fotografia carrega isso. É um sertão que poderia ser em qualquer lugar do mundo. Tem um arquétipo da aridez, mas podia ser no meio da neve. Se torna universal por isso.

Entrevista feita ao vivo em agosto de 2023, durante o 51o Festival de Cinema de Gramado

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.