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Cangaço Novo :: “Preciso encontrar na personagem um ponto de interseção comigo, e não apenas vestir máscaras”, afirma a atriz Alice Carvalho

Publicado por
Robledo Milani

Alice Carvalho pode ser chamada de novata, mas está pronta para conquistar o Brasil de surpresa. Vinda do Rio Grande do Norte, e nascida em 1996, começou a atuar profissionalmente aos vinte anos. Pouco depois, estava chamando atenção a nível nacional. Depois de uma participação na série Segunda Chamada (2019) e ter marcado presença em webséries, videoclipes e curtas-metragens, teve sua grande virada no Festival de Gramado de 2023, quando seus dois trabalhos mais importantes até o momento foram exibidos na Serra Gaúcha: o filme Ângela (2023), de Hugo Prata, que participou da mostra competitiva, e a série Cangaço Novo (2023), que teve seus primeiros episódios exibidos em uma apresentação especial. O longa já chegou aos cinemas – em breve estará disponível também nas plataformas de streaming – e o seriado de oito capítulos em sua primeira temporada estreou na Prime Video, logo conquistando uma posição entre os mais assistidos pelos assinantes. Se no drama que reencena a vida da modelo Ângela Diniz ela aparece como coadjuvante, nessa releitura moderna da violência que toma conta do nordeste brasileiro a garota surge como uma das protagonistas, conquistando de imediato as atenções. Foi sobre esses dois projetos que a atriz conversou com o Papo de Cinema, num bate-papo inédito e exclusivo. Confira!

Olá, Alice. Estou ainda impactado pela tua performance em Cangaço Novo. Quem é a Dinorah? Como surgiu essa personagem na tua vida?
Então, tenho uma forma de trabalhar que foi acentuada a partir do processo desenvolvido em parceria com a Fátima Toledo. Foi a primeira vez que trabalhei com uma preparadora de elenco tão exigente. Mas uma coisa que já existia para mim era uma composição de personagem que não fosse apenas vestir máscaras. Preciso encontrar um ponto de interseção comigo. Sempre fiz isso de uma maneira empírica. Quando começamos a trabalhar no Cangaço Novo, ao receber o texto, percebi que tinha coisas em comum com a Dinorah. Só que a minha resposta ao mundo, em relação a essas coisas, traumas e formas de ver a vida e as injustiças sociais, é diferente da dela. Ela resolve com violência. Claro, é um contexto diferente do meu. Tenho um movimento mais para dentro. O que aconteceu na sala de preparação, de mãos dadas com meus colegas, foi eu me permitir experimentar essa reação mais violenta. Colocando tudo para fora. Eu ouso dizer que eu, a Alice Carvalho, sou mais o Ubaldo do que Dinorah, enquanto que o Allan Souza Lima é mais Dinorah do que Ubaldo (risos).

 

Conversei com o Allan antes, e uma das coisas que me disse foi que, ao te conhecer, pensou que vocês não iriam se dar bem. Foi um embate explosivo, mas que acabou funcionando. Como se deu essa dinâmica?
Sou desesperadamente apaixonada pelo Allan. Viramos irmãos. Mas, confesso, nossa primeira preparação juntos foi difícil, pois era em cima de nós dois. A gente tinha que construir essa parada. Só que o lance do ódio inicial entre eles é porque existe um amor muito grande. E uma saudade, uma raiva por ele ter ido embora, o que teria acontecido com ele, e dele não saber nada a respeito dela. Tudo isso estava misturado. Lembro que Fátima olhou para nós e disse: “queria que cada um fizesse um pedido ao outro”. Não me recordo ao certo, mas acho que ele pediu “paz e serenidade”, ou algo do gênero, enquanto pedi que fossemos amigos até o fim. Foi um pacto que levamos a ferro e fogo. Dormíamos um ao lado do outro porque pedimos para a produção. Fomos vizinhos durante oito meses. Nesse tempo, tivemos só uma discussão, um desentendimento, mais no final. Quando estávamos estressadíssimos, e foi por uma besteira. Coisa de irmão, mesmo. Duas diárias depois estava tudo bem – mas pareceu uma eternidade.

Alice Carvalho e Ísis Valverde em cena de “Ângela”

Você está também em Ângela (2023), e numa composição bem diferente, feita de muitos silêncios. Esses dois trabalhos são complementares?
Ângela foi o meu primeiro longa-metragem. Foi um processo que vivi imediatamente após o término das filmagens de Cangaço Novo. Depois do fim das gravações da série, voltei para Natal, onde moro. Lá dirigi um filme que ainda vai estrear, um videoclipe pra banda Baiana System. E, após um respiro de 15 ou 20 dias, entrei no processo do Ângela, mais uma vez com a Fátima Toledo. O que foi maravilhoso, pois era a única pessoa que poderia me ajudar a me descolar daquele registro de violência. Virei totalmente a moeda. Pra além de me ver ao lado de gente famosa, ou contando a história de uma personalidade tão importante, existe para mim a realização de um desafio. Meu único objetivo com esse filme era ser o lado oposto do que havia feito dois meses antes.

 

No Cangaço Novo vocês tiveram dois diretores, o Fábio Mendonça e o Aly Muritiba. Como foi estabelecer essas parcerias?
Foi facílimo, pra te falar a verdade. Da mesma forma que os três irmãos – eu, Allan e Thainá Duarte, que faz a Dilvânia – tiveram um pacto de lealdade, também estabelecemos uma sintonia fina com os diretores. Eles são peça fundamental nisso. Porque, inclusive, também fizeram preparação de elenco com a gente, ao nosso lado. Passaram pelos mesmos exercícios com a Fátima. Realmente, a única coisa que fazia que a gente notasse a diferença era em que ponto estava a relação entre os irmãos. Porque nos quatro primeiros episódios quem dirigiu foi o Fabinho, e os quatro últimos foram o Aly. No início é estranhamento, os personagens se reencontrando, e na metade em diante já é outra coisa, os objetivos são outros. Essas dinâmicas é que permitiam saber quem estava no comando. Porque no resto era tudo igual. A unidade entre os dois era linda.

Thainá Duarte, Alice Carvalho e Allan Souza Lima em cena de “Cangaço Novo”

Cangaço Novo. Existe um cangaço que pode ser chamado de novo? Ou ele sempre existiu e agora é que está ganhando mais uma vez atenção?
Adorei essa pergunta. Entrei numa pesquisa, naturalmente em cima do cangaço clássico, que não começa com Lampião. Vem desde Jesuíno Brilhante, no século XIX. Estudei pra caramba o Frederico Pernambucano de Mello, que é a maior autoridade em cangaço que tem no Brasil de hoje. Mas, no Rio Grande do Norte, ali pelo final dos anos 1980 e início dos 1990 – não sei se estou certo com datas, mas acho que era isso – surgiu uma figura de um cara (que, inclusive, queria ser ator), chamado Valdetário Carneiro, um assaltante de banco e tinha um escudo ético quase mítico e que beirava o ficcional nos roubos que fazia. Ele tinha essa onda de roubar para compartilhar com os pares dele da zona rural, gente que tinha pouco acesso a água, alimentos, terra, enfim. É mais ou menos o lugar que o Amaro Vaqueiro, o pai de Dinorah, Ubaldo e Dilvânia, ocupa no Cangaço Novo. Há outras referências na série, por exemplo, o nome da nossa mãe é Valdetária. Coisas que fazem parte desse universo de inspirações. O novo cangaço, hoje em dia, é um termo que é até difícil de falar. O que se usa mais é ‘tática de domínio de cidades’. Pra que não haja nenhum tipo de injustiça com o movimento histórico e cultural que também foi o cangaço, para além do banditismo.

(Entrevista feita ao vivo em Gramado, RS, em agosto de 2023)

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.