Nascido em Brasília, no Distrito Federal, Michel Queiroz passou a infância em Salvador e teve formação profissional e artística no Rio de Janeiro. Hoje, no entanto, mora em Goiás. Ou seja, é um artista brasileiro. Graduado em Vídeo, Edição e Artes Visuais na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, dedicou-se desde cedo ao exercício da criação em videoarte, instalações e fotografia, sempre atento ao ativismo de gênero. Suas instalações Não Binário #1 e Não Binário #2 ocuparam diferentes espaços da capital carioca. Sua estreia no cinema se deu com o curta-metragem Capim-Navalha (2021), que passou por diversos festivais de norte a sul do país. O projeto se encarregava em direcionar seu olhar às pessoas transvestigêneres que vivem, que habitam e “re-existem” na Chapada dos Veadeiros, no interior do Goiás. A mesma proposta foi retomada no longa Capim-Navalha (2023), que foi exibido no Festival Mix Brasil e no Rio Festival de Gênero & Sexualidade no Cinema, e passou por outros eventos similares ao longo do ano até chegar à mostra competitiva do 18º For Rainbow: Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero de Fortaleza, no Ceará. O curioso é que, após essa temporada, o longa deverá voltar à pós-produção e ganhar uma nova versão para o circuito comercial. Na conversa inédita e exclusiva, que você confere abaixo, nós falamos sobre esse e outros assuntos. Confira:
Como surgiu o convite para estar no 18º For Rainbow?
Olha, o convite foi por meio da seleção, mesmo. Mandei o filme e acabou que foi selecionade, fiquei muito feliz com a notícia. Na ocasião estava em um outro set, e ter que parar e fazer todos os trâmites para garantir nossa participação foi meio que no susto, mas que bom que deu certo. E a coisa foi rápida, tipo, me chamaram no whatsapp e já saí correndo pra comemorar! Foi uma delícia!
Tua relação com o For Rainbow não é de hoje, certo?
Pois é, o curta Capim-Navalha tinha participado há alguns anos, e foi uma experiência muito legal. Quando me avisaram que o longa havia sido selecionade, comentaram da inclusão anterior do curta e do link entre os dois projetos. Foi uma felicidade muito grande estar em Fortaleza, presencialmente, apresentando nosso filme e conversando com as pessoas. O lance de exibir na tela do Dragão do Mar é muito forte. Sabe, tenho essa coisa do cinéfilo de querer a melhor projeção, ver no cinema mesmo. Isso é muito bom.
Qual a importância de um festival como o For Rainbow?
Olha, são muitas camadas. A representatividade, a diversidade e, principalmente, essa luta de marcar o nosso território. Essa comunidade, da qual faço parte, é muito ampla. É uma resistência aos governos retrógrados, aos políticos, ao conservadorismo, à bancada evangélica. Festivais LGBT são importantes social e politicamente, e até mesmo economicamente – afinal, o pink money está aí – pois a gente está fomentando tudo isso. Outro fator importante é que, aqui em Fortaleza, estamos saindo da região Sudeste. É muito importante ter esse outro olhar.
Capim-Navalha propõe essa saída dos eixos mais óbvios. Como foi encontrar esses personagens?
Foi a realização de um sonho particular de tornar concreto esse trabalho audiovisual, ainda mais por estar em um território no Centro-Oeste, em Goiás. Isso é muito importante. A Chapada dos Veadeiros é um lugar belíssimo, é um Goiás profundo. São muitos espaços a serem desbravados, e lá é gigante. Sair do ciclo Rio-São Paulo e estar numa, digamos, região periférica – e, nesse sentido, me refiro à potência do periférico, afinal, até mesmo o Brasil é periférico perante o audiovisual como um todo – então a gente está num esforço de resistência. O cinema goiano, e mesmo o do centro-oeste, precisa ser visto e valorizado. Não nasci lá, vim do Sudeste, mas é o meu lugar, onde escolhi para viver e onde irei continuar trabalhando com o audiovisual.
Uma coisa bonita que percebemos em Capim-Navalha é que, apesar dos dados e dos relatos por vezes duros, o filme não se exime em abordar a emoção. Como foi dosar esse diálogo entre o racional e o mais íntimo dos entrevistados?
Muito interessante isso que você falou. Essa dosagem vem da dor e do prazer, algo que venho falando de forma consecutiva, porque realmente era algo que queria que permeasse a narrativa. Foi um aprendizado, vou te dizer. Não tem uma fórmula, é algo que só se aprende tentando. Teve muita entrega. E quando falo pesquisa, parece algo meio duro, engessado, acadêmico. Mas é esse processo de mergulho, de se envolver mesmo. Todas as conversas que tive com cada pessoa, como foi chegar na vida de cada um deles e delas. Foi um aprendizado mútuo, mas principalmente para mim. E ter que traduzir para a minha equipe. Todo mundo chorou em um momento ou outro. Falamos sobre temas difíceis, de vulnerabilidade, suicídio, assédio, até mesmo de morte. São coisas que estão além dos dados puros e frios. A própria expectativa de vida dessas pessoas é muito baixa. E, além disso, há ainda o prazer de ser quem a gente é. Dessa reafirmação. Que não é fácil. Dentro do cerrado, deste território da Chapada, que traz também uma outra perspectiva.
Para onde vai o Capim-Navalha após essa passagem pelo For Rainbow?
Muita vontade de capinar por outras chapadas e desbravar novos espaços. Agora mesmo acabei um set em Cuiabá, na região da Chapada dos Guimarães. Temos a Rafa Luz e a Luisa Lamar como protagonistas. Essa última é cuiabana, multiartista, babadeira. Fomos atrás da experiência dela na chapada. Tem várias camadas que vinham do Capim-Navalha, e outras coisas mais que a Luisa trouxe. Saímos do Veadeiros e fomos para o Guimarães. Quem sabe depois não vamos para a Diamantina? Ou a Das Mesas? Tenho esse plano de estar nestes territórios, que são exuberantes e lindos, mas que exigem uma baita resistência, contra as queimadas. E trazendo essa territoriedade corporal dos gatos, das gatas e dos personagens também. A ideia é que o Capim continue, tem muito ainda pela frente. Vamos ver!
E o próprio Capim-Navalha segue em transformação.
Pois é. Lancei esse filme em 2023, passamos por diversos festivais. Ganhamos dois prêmios no FICA, interior de Goiás. No DIGO também fomos premiados. Agora, porém, estamos numa etapa que pretendemos re-estrear ele. O For Rainbow vai ser o nosso último festival. E vamos voltar para a pós-produção, pela Lei Paulo Gustavo de finalização. Ou seja, teremos uma edição extra com correção de cor, vamos trabalhar novamente na montagem, e até com uma homenagem à Meujaela Gonzaga, que participou de todo o processo, mas que fez sua passagem no ano passado. Ela merece muito. Foi nossa diretora de arte, de drone, making of. Vamos mexer também na trilha. Estamos agora com uma distribuidora, queremos levar o filme no melhor formato possível para o público em geral.
Como você vê o atual cenário do cinema LGBTQIAPN+ brasileiro?
Temos filmes icônicos, né? Tanto ficção quanto documentários. Festivais como o Mix Brasil e o For Rainbow são importantes justamente porque possibilitam essa visão mais ampla. Pra gente acompanhar como esse tema vem sendo trabalhado por diretores e diretoras. Mas este é um cenário de resistência. Veja o For Rainbow, que está na sua décima oitava edição. São quase vinte anos de luta, passando por governos tenebrosos, por pandemia. Porém, é importante que esses eventos focados na temática LGBT dialoguem também com outros festivais, de outras camadas identitárias, etnográficas. A diversidade é enorme, por isso é tão importante ocupar essas janelas. O Brasil é imenso. Temos o Norte, o Nordeste, o Sul, o Centro-Oeste. Toda atenção que o tema conseguir angariar nestes outros espaços precisa ser valorizada. Pra que se consiga atingir todo o público possível, e não somente na nossa comunidade. É muito importante.
Entrevista feita ao vivo em Fortaleza, durante o 18º For Rainbow, em junho de 2024
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