Nascida no Rio de Janeiro, Carla Ribas é uma das mais conceituadas atrizes nacionais. O problema é que são poucos os brasileiros que sabem disso. Ela afirma que seu habitat natural é o palco, onde estreou em 1995 com a peça Édipo Rei, dirigida por Moacyr Góes. Mesmo ali começou tarde, tendo suas primeiras aulas de atuação após os 35 anos de idade. Mas o sucesso não demorou, e logo vieram outros convites. Em 2001 aparecia no especial Brava Gente, da Rede Globo, e em 2004 marcou presença como coadjuvante de O Outro Lado da Rua, ao lado de Fernanda Montenegro. De lá pra cá já foram mais de 20 peças, duas novelas e mais de dez projetos diferentes na tela grande, entre longas e curtas. Entre estes está o premiadíssimo A Casa de Alice (2007), pelo qual ela, vivendo a personagem-título, foi reconhecida nos festivais de Guadalajara, Miami, Rio de Janeiro e São Paulo, entre tantos outros. Foi por esse desempenho também que concorreu como Melhor Atriz no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, considerado o Oscar da produção cinematográfica nacional. Desde então, no entanto, já se passou quase uma década, período em que Ribas voltou-se, mais uma vez, para o teatro. Mas quem estava com saudades dela, pode se acalmar. Já em cartaz no elogiado Campo Grande, em que mais uma vez vive uma mulher forte, até o final de ano deve marcar presença também no aguardado Aquarius, que acabou de obter uma recepção calorosa no Festival de Cannes.
Olá, Carla. Tudo bem? Confesso que foi uma grande e boa surpresa reencontrá-la em Campo Grande. O que mais lhe atraiu na Regina?
O que me atraiu na Regina é essa situação dela de não ter chão, de não ter onde pisar, de estar totalmente desestruturada. Enfim, é uma pessoa sem identidade, que precisa se encontrar. Por mais doloroso que possa parecer, este é um processo muito bonito, pois muita gente passa por isso, mais cedo ou mais tarde em algum ponto da vida. E é tão dolorido… É preciso ter força pra continuar, e ela sabe disso, pois em nenhum momento se joga na cama, tá disposta, de cabeça erguida, tentando juntar seus pedaços. Possui uma incrível energia de contenção. É um personagem muito bonito, dona de uma complexidade rara, sem ser óbvio. São tantas coisas que acontecem com ela que seria impossível deixá-la passar.
Você me deixou de queixo caído com A Casa de Alice. Se o Brasil tivesse uma indústria forte de cinema, esse seria o tipo de papel que mudaria a vida de um intérprete. Mas pelo contrário, você passou um tempo afastada das telas. O que aconteceu?
O público em geral até pode pensar como você, mas tenho que lhe confessar que mudou a minha vida, foi um verdadeiro divisor de águas. Vamos combinar, há poucos personagens bons de fato para atrizes da minha idade. E tem outra coisa que pode até parecer um pouco arrogante, mas a real é que não faço qualquer filme que me chamam. É preciso ter algo a mais. Não vou perder o meu tempo e nem destes profissionais fazendo algo pela metade. Então, para ter esse tipo de resultado, como todo esse alcance, a entrega tem que ser total. E quando isso acontece, pra mim ficam sequelas muito violentas. Eu levo os personagens pra casa. Por isso que preciso confiar no diretor, pois será ele que vai me dar as condições de fazer o meu melhor. Então, penso o seguinte: ou é alguém consagrado, cujo trabalho já conheço, ou um jovem, de uma geração nova, com uma cabeça cheia de ideias e disposto a fazer um trabalho de qualidade. Penso que poder emprestar o meu nome e o meu talento para que tais projetos consigam acontecer já é um presente e tanto. Mas não é gratuito, tem a ver com muito esforço, pois se vou projetar o trabalho de um menino desses, também me interessa fazer parte. Sem falar que faço muito teatro, o palco é o meu verdadeiro chão, então pode dizer que sou um pouco chatinha…
Por A Casa de Alice você foi premiada nos festivais do Rio, de São Paulo, de Guadalajara e indicada ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e ao Prêmio Guarani. Você esperava esse tipo de retorno?
Costumo dizer que A Casa de Alice me levou a todos os continentes, menos o africano! Até na Ásia, em Kuala Lumpur, eu fui premiada! Quando isso aconteceu, liguei para a Fátima Toledo, que foi minha preparadora, e disse: “até os Kuala-lumpenses estão nos reconhecendo!” Isso é fantástico! A Fátima foi fundamental naquele trabalho! Te confesso que, naquele ponto da minha vida, não esperava jamais por um presente como aquele. Eu não tinha nenhuma familiaridade com o cinema. Tinha feito apenas duas participações pequenas. Achei que nunca daria certo nesse meio. Foi a Fátima que me chamou, ela já estava envolvida com o filme. Fui até lá, fiz vários testes… corri muito atrás. A Fátima dava instruções de como eu tinha que agir, o que tinha que fazer, como falar, e entre eles ninguém podia elogiar, pra que não subisse o ego na cabeça. Ou seja, não tinha a menor ideia do resultado. Mas lá no fundo a gente sente. Comecei a perceber o carinho intenso de toda a equipe comigo. Achei que vinha coisa grande por aí. Que viria uma repercussão bacana, quem sabe? Mas Festival de Berlim? Nunca imaginei!
Sua participação em Campo Grande também oferece nuances insuspeitas, a Regina se transforma muito durante o filme. Como é construir esse tipo de personagem, tão multifacetado?
A Fátima não acredita muito em construir um personagem. E com ela eu me entrego por inteira. Não há link de uma cena para outra. É como se fosse uma sequencia de curtas-metragens. Não queria construir a má, inimiga das crianças, tinha que trilhar um outro caminho, a mais sutil possível. Quanto mais misterioso e complexo for o personagem, mais interessante fica. Não é uma questão de construção, tem que ter percepção, confiar na intuição do personagem, é preciso apostar na sutileza e deixar vazar o suficiente para revelar, sem ilustrar. Vai vazando um pouquinho por vez. O segredo é cada momento, cada instante é diferente, são várias facetas do mesmo personagem. A Regina não é maniqueísta, mas ela está nesta jornada do herói, aquela do final do filme é completamente diferente da que vimos lá no começo da trama. E o espectador sente que houve essa mudança, ainda que nada fique muito explícito.
Além de Campo Grande, você está também no aguardado Aquarius, que foi exibido há pouco no Festival de Cannes. O que pode nos adiantar sobre esse projeto?
Quando assisti a O Som ao Redor (2012), fiquei enlouquecida. Acho que o Kleber (Mendonça Filho, o diretor) tem uma pegada completamente original, que não se vê nem no Brasil, nem no mundo. Ele é muito expressivo, tem uma assinatura completamente original. Quando soube, pelo Facebook, que ele estava fazendo testes para um novo filme, escrevi para o produtor pedindo uma oportunidade. A Sonia Braga é a protagonista de Aquarius, a história é a dela, todos os demais personagens são periféricos. Porém, diferente da maioria do elenco, eu me coloquei à disposição do diretor de forma total, abri minha agenda por completo para me encaixar no cronograma dele. Assim, acabei indo várias vezes a Recife, e o Kleber é uma pessoa encantadora, que trabalha com uma equipe que é uma família, as pessoas são extremamente carinhosas, acolhedoras. Foi uma experiência incrível, adorei ter feito parte. Não vi o filme ainda, por questões de trabalho não pude ir a Cannes. Mas pelas críticas pude mais ou menos intuir o que o Kleber fez, dando a mesma pegada do Som ao Redor, só que indo mais fundo!
Chico Teixeira, Sandra Kogut, Kleber Mendonça Filho são realizadores consagrados, ainda que de carreiras não muito longas. Como você escolhe seus parceiros de trabalho?
Pra mim isso é mais importante que o personagem ou o texto – sou ruim de ler roteiro! Acho que quem vai dizer o que é o filme é o diretor, a diferença está na pegada dele. Quem assina o trabalho é o mais importante. Mutum (2007), o primeiro longa da Sandra, ganhou o prêmio de Melhor Filme no Festival do Rio em 2007, no mesmo ano em que ganhei como Melhor Atriz pelo A Casa da Alice. Olha só que coincidência! Ali nos conhecemos, e eu era muito insegura, foi a assinatura da Fátima que me deu certeza de que poderia fazer aquela personagem. No teatro é diferente, quem viu, viu, e quem não viu, não verá jamais. Se acertou, ótimo, mas se errou é só pensar no dia de amanhã e tentar fazer melhor. Já no cinema não tem disso. Uma vez feito, tá pronto, ficou para sempre. Depois o filme vai para a Netflix, está lá no Now, fica para o resto da vida! Tem que tomar muito cuidado com suas escolhas! A assinatura da Fátima, que trabalhou com a Sandra no Mutum, me deixou encantada. O mesmo que senti com o Kleber ao ver pela primeira vez O Som ao Redor. Ou seja, amei. O Karim Ainouz é outro cara que gosto muito do trabalho. Amo O Abismo Prateado (2011), a minha taxista é incrível. Foram poucas cenas, é só uma participação, mas não vou esquecer nunca! Esses são caras que podem me chamar apenas para uma ponta, que estarei lá pronta, amarradona, disposta a tudo para, junto deles, termos um trabalho de qualidade.
Campo Grande fala de um problema grave do Brasil, sobre os menores abandonados e a paternidade irresponsável. Como você imagina que o público em geral irá receber o filme agora que ele está entrando em cartaz?
Eu diria pra você que o país que a gente conhece, com a invisibilidade que tem na sociedade e no governo, essas pessoas só se tornam visíveis quando praticam a violência. Ou seja, eu diria que muitos vão comprar de imediato a reação inicial da Regina. Tipo “não é problema meu”, sabe? Estamos agora em plena Avenida Paulista, na cidade mais rica do país, e as pessoas passam por essas crianças e ninguém as vê, são invisíveis. Depois, quando uma tragédia acontece, todo mundo se arrepende por não ter feito nada. Sinceramente, talvez esteja sendo um pouco romântica, mas começo a achar que esse olhar pode estar mudando. As pessoas estão se conscientizando da importância que é cuidar dessa crianças desde pequenas. São atitudes assim que são responsáveis pela mudança de olhar, por despertou essa consciência. Acho que Campo Grande, ainda que tenha sido feito há dois anos atrás, chega ao público em um momento muito pertinente. Afinal, estamos também falando do empoderamento da mulher. Pois a Regina não é de ficar parada, ela foi pra Campo Grande, colocou o garoto debaixo do braço e seguiu em frente. O filme tem também essa coisa de obra, muitas construções por todos os lados, como se tudo estivesse sendo refeito. E esperamos que seja feita uma grande faxina no país. Talvez estejamos no início de um movimento para que um país melhor surja, um que a gente se orgulhe.
(Entrevista feita por telefone direto de São Paulo em 31 de maio de 2016)
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