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Com distribuição da Pandora Filmes, chega aos cinemas brasileiros no dia 12 de novembro o documentário Casa (2019), filme que venceu o prêmio da crítica do Olhar de Cinema 2019, também exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do mesmo ano. No filme, a cineasta baiana Letícia Simões empreende uma potente exumação da história de sua família, colocando-se em cena como personagem em registros que contemplam da investigação dos arquivos às conversas reveladoras com a mãe e a avó. De certa forma, embora guarde uma considerável carga de intimidade, é um filme que acaba escrutinando como essas três mulheres de gerações diferentes lidaram com questões vitais, algumas delas universais. Conversamos com Letícia durante a realização do Olhar de Cinema de Curitiba, em 2019, na manhã seguinte à estreia do filme. Ela falou conosco sobre gênese do projeto e as dores e delícias de mergulhar num processo tão árduo quanto pessoal. Confira mais este Papo de Cinema exclusivo por aqui!

 

Casa surgiu da vontade de fazer algo sobre sua família ou essa possibilidade se impôs enquanto você buscava um tema para um próximo filme?
Olha, no início, queria fazer uma investigação de relações familiares. Na verdade, a ideia era, de certa forma, entender a construção social a partir da minha família. Muito ingenuamente, pensava que minha família era única, que, por exemplo, meus avós e minha mãe eram figuras que tinham passado por situações que ninguém passou (risos). A primeira filmagem foi uma entrevista com minha avó sobre o pai que ela não conheceu e, adiante, a respeito do movimento rumo a Salvador para tentar encontrar a mãe. O primeiro argumento do Casa era especificamente sobre isso. Foi um ano de processo, escrita e investigação. Aí, aos poucos, fui entendendo que me interessava mais o jogo criado nos vínculos entre eu, minha mãe e minha avó. Depois, o que começou aparecer como indagação na forma como se bordava isso tudo era, principalmente, como eu deveria me colocar no filme.

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Você não iria se colocar no filme inicialmente?
Não iria me colocar, de jeito nenhum. Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e Sérgio Machado, mentores do laboratório do roteiro do qual eu participava, sempre me perguntavam em que momento eu me colocaria. Eles diziam ser confortável estar com a câmera, questionando, registrando, etc. Depois de um ano de laboratório de roteiro, eu tinha de apresentar um corte do filme. Nele, eu já figurava como personagem. Até mesmo a decisão de não mais segurar a câmera, de apoiá-la nos espaços físicos da casa, se deu ao longo desse pensamento provocado pelas indagações deles. Qual seria meu lugar nas relações que desejo filmar? Qual é o meu recorte diante disso?

 

Imagino que diante dos arquivos familiares você descobriu muitas coisas. Como equilibrar-se entre a filha e a cineasta? Como ter objetividade para saber que, talvez, algo profundamente emocionante para a mulher não serve cinematograficamente à realizadora?
Foi um processo esquizofrênico, tortuoso e doloroso (risos). Para mim, enquanto filha, a abertura dos arquivos foi o ponto mais alto e forte. Tive de lidar com uma porção da vida que sequer sabia existir. Ao mesmo tempo, foi bem difícil porque os arquivos não podiam ser o mote principal. Foi um processo complicado esse de entender o tamanho e o peso de cada coisa dentro da espinha dorsal. Durante muito tempo, briguei com as cartas, porque me perguntava se elas não seriam muletas. Questionava muito o Eduardo, o montador, se não deveríamos prescindir das cartas. Foi um extenso caminho até entende-las como essenciais. Assistir ao material bruto também foi bem difícil. A chave quanto a isso somente virou quando estabeleci certa fronteira na minha cabeça entre a realizadora e a personagem.

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Letícia com a mãe

Que são lugares completamente diferentes…
Claro, percebi que a Letícia personagem precisaria ser tratada com as ferramentas do roteiro, inclusive pensando em arquétipos. Eu tinha muito em mente que a minha mãe não podia cair no arquétipo da vilã. Até porque se existe uma personagem vilanesca nesse filme sou eu, né? A doida que decidiu pegar uma câmera para registrar aquilo tudo.

 

Embora carregue a responsabilidade pela câmera, às vezes parece que você é levada pela dinâmica a se esquecer dela, como na cena da ceia natalina...
Acho que o filme também se dá, numa instância muito abaixo de todas as outras, evidentemente, nesse processo de alguém que está descobrindo como filmar. A extensão disso é perguntar-se qual o cinema que desejo fazer enquanto realizadora. Nesse sentido, lidar com a câmera foi muito difícil. Para estar em cena, precisava abrir mão do controle de coisas bem básicas, tais como foco, enquadramento e o quê exatamente vai acontecer. É quase uma jornada kamikaze. Na cena que você citou, aquela dinâmica foi tão exaustiva que efetivamente perco controle mais explicitamente. Ali, quando o que acontecia acaba se impondo, perco momentaneamente o foco como realizadora.

 

É claro que com a câmera ligada, instintivamente, a gente cria um corpo cênico, mas, em algum momento específico você percebeu que sua mãe estava basicamente performando?
Sim, demais (risos). Para mim isso fica claro na sequência do asilo, com ela chegando a olhar à câmera. Fui percebendo o quanto ela gostava de performar e ser filmada. Deliberadamente, certos conflitos e situações tiveram graus elevados porque todos sabiam que havia uma câmera ali, quase no sentido de “agora posso contar minha verdade” (risos). Isso realmente somente aconteceu porque todos tinham consciência de ser filmados. Nessa parte do asilo, por exemplo, vejo a minha avó com muito mais vivacidade do que ela de fato tinha naquele momento da vida. Aquela cena só existiu daquela forma, com aquela energia e intensidade, porque a câmera está ligada

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E o que a sua mãe achou do filme?
Ela não assistiu ainda. Ela não quer ver (risos). Tentei muito que ela assistisse, mas minha mãe tem um problema bem sério com a autoimagem. Isso é contraditório, porque ela se sente confortável atuando. Chegou o momento em que eu disse que, eticamente, precisava que ela soubesse o que acontece no filme. Fiz uma rádio novela, contei tudo que acontecia, sequência por sequência. Alguns dos comentários dela entraram no corte final. Para ela foi difícil abrir os arquivos, não por ter de lidar com a memória, mas pela dificuldade de se ver, de testemunhar a passagem do tempo. Minha mãe não tem espelho em casa. Para ela é muito tortuoso ser uma mulher de mais de 70 anos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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