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Abelardo Barbosa, comumente conhecido como Chacrinha, foi uma das grandes figuras da televisão brasileira. Alguns exaltam sua natureza revolucionária, pois criadora de paradigmas quanto aos programas de auditório, tanto diante quanto atrás das câmeras (dispositivo que ele adorava trazer para o jogo de cena). Chacrinha: Eu Vim Para Confundir e Não Para Explicar (2020), documentário assinado por Cláudio Manoel e Micael Langer, dupla também responsável por Simonal: Ninguém Sabe o Duro que Dei (2009) – ao lado de Calvito Leal –, aborda de maneira sintética a vida e a obra desse sujeito que buzinava para candidatos de fraca capacidade vocal, atirava bacalhau para a plateia que se regozijava com sua irreverência e se valia de beldades ao fundo para cativar ainda mais a audiência. Infelizmente, por conta das restrições da pandemia e dos compromissos de ambos (que estão no set preparando um novo projeto), não conseguimos falar com Claudio Manoel e Micael Langer juntos. Submetemos a ambos, separadamente, as mesmas perguntas e o resultado você confere agora, em mais este Papo de Cinema exclusivo.

 

Quais os critérios principais para a escolha dos depoentes? O que norteou essa seleção?
Cláudio Manoel:
Pessoas que pudessem testemunhar sobre o Chacrinha em termos familiares, pessoais e profissionais, ou seja, por convívio, em primeiro lugar. Quem estava disponível, vivo, obviamente. Também ampliamos o escopo ao Stepan Nercessian, que tinha vivido o Chacrinha na ficção, a alguns artistas que tinham participado do programa dele numa época em que existiam muitas histórias de permuta. Chamamos Luciano Huck e Gugu Liberato como representantes de um setor que o Chacrinha ajudou muito a construir, até porque é um aspecto pouco abordado esse do palhaço workaholic.  
Micael:
Os critérios são pessoas que tiveram importância, relevância, contemporaneidade e que pudessem nos ajudar a entender quem foi esse fenômeno da comunicação brasileira.

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A cantora Wanderléa emoldurada por Micael e Cláudio – Foto/divulgação

 

Existe alguma divisão de tarefas entre vocês? Alguém fica mais ligado a determinada área ou os dois acabam decidindo praticamente tudo juntos?
CM:
Não, eu e Micael discutimos conjuntamente tudo. Ele é o cara mais das referências audiovisuais, pois tem uma bagagem imensa, mas de resto a gente troca ideia sobre tudo. Temos em comum isso de descobrir a narrativa através do que as pessoas vão contar, não partimos de algo armado, queremos nos surpreender à medida que as coisas andam.
M:
Os dois acabam decidindo praticamente tudo juntos. A gente já tem uma parceria de mais de 15 anos, então temos um método de trabalho definido.

 

O filme de vocês se aproxima, linguisticamente falando, de uma vertente jornalística, afinal de contas há um privilégio da informação. Esse discurso com mais convergências do que divergências, inclusive entre as falas, também era uma premissa?
CM:
É um documentário. A gente tem não apenas um privilégio à informação, mas também à pesquisa. É um tipo de documentário que pretende ser uma biografia audiovisual, diferentemente de alguns mais conceituais, tais como o Alô, Alô Terezinha! (2009), do Nelson Hoineff, que eu acho brilhante, porque pega um aspecto periférico. Nosso filme tem um resgate mais histórico e menos opinativo. Não temos nada de reverenciador, até porque falamos do jabá e da questão patronal com as Chacretes. Elas foram colocadas, pois encontradas e testemunhadas, não foram inventadas. Ficção tem mais licença para isso. No longa de ficção existe um conflito familiar de mãe rejeitada e dos filhos abandonados pelo fato do Chacrinha ser workaholic, e os documentos não mostram isso. Chacrinha sempre foi próximo da esposa e os filhos viviam desde muito cedo sua rotina. Essa colocação da ficção é uma opinião. Ela tem essa permissão. Um documentário também tem permissões. Mas, meu tesão é ser o mais fortemente documental, no sentido de fiel à informação, até porque já fiz muita invenção e caricatura na minha vida.     
M: A gente costuma costurar a história através dos depoimentos, então não chegamos com muitas certezas, apenas com dúvidas e aí os próprios relatos vão contando isso. Na verdade, claro que pode haver divergências, é até melhor, até mais interessante do ponto de vista da narrativa quando temos divergências. Mas, por outro lado, há um fio condutor, que são essas convergências, justamente. Podemos ter três pessoas contando a mesma história, elas podem ter detalhes que não batem, mas têm que estar contando a mesma história. Então, tem a vertente jornalística porque documentário tem que ter essa vertente jornalística, é inerente ao formato. Estamos contando a história.

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Claudio Manoel e Luciano Huck – Foto/divulgação

 

Embora haja a sinalização de algumas controvérsias, o filme é bem mais laudatório do que questionador. O tom era esse desde o começo ou vocês foram o incorporando à medida que os depoimentos desenhavam melhor essa figura?
CM:
 Não acho que o filme seja laudatório, sob hipótese alguma. Ele traz questões, mas não pretende ser questionador. Ele não tem uma má vontade com o personagem, mas também não tem qualquer compromisso com ele. Não conhecíamos o Chacrinha. Temos um respeito por sua dimensão. O Chacrinha é uma das maiores figuras do imaginário pop, do audiovisual, do show business brasileiros. Ele é um hiper tropicalista. Se você antipatiza tanto com o personagem ao ponto de buscar formas de desconstruir o mito, é uma onda sua, válida, claro. Não temos como premissa endeusar ninguém e muito menos demonizar ninguém. A ideia é achar uma grande história e/ou um grande personagem e ser mais digno e fidedigno para lidar com essa responsabilidade de contar essa história.  
M:
A gente não parte do princípio que alguém é bandido ou herói antes de começar o filme. É difícil não ter um discurso laudatório a respeito de um cara que foi foda para caralho, que teve essa importância. Então, não partimos do princípio que ele era nem herói nem vilão, e essa construção foi feita a partir, justamente, dos relatos, dos registros históricos, da própria vivência que tivemos com a vida dele. É um tom laudatório porque ele merece um tom laudatório. Se ele tivesse sido um pedófilo, a gente ia mostrar que ele foi um pedófilo. E claro, ele seus problemas, tinha suas idiossincrasias, mas nada que desabonasse a figura como um todo.

 

Os filhos do Chacrinha deram acesso aos arquivos do pai ou isso não foi necessário, talvez até mesmo não cogitado?
CM:
Fomos contratados pela Media Bridge (produtora) e já pegamos uma boa pesquisa feita para a ficção. Intensificamos coisas que achamos que não tinham sido abordadas em outras plataformas, principalmente essa questão do produtor, do cara que estrutura a carreira naquele produto e aquilo se torna a vida dele. Obviamente, para viver tudo intensamente acaba abduzindo mulher e filhos. Chacrinha fazia quatro programas semanais, dois no Rio de Janeiro e dois em São Paulo, fora a escritura das colunas para jornal. Tem um quê de fundador de um tipo de formato, que é esse camarada vendedor e atração. O Chacrinha apresenta muitas inovações, lança muita gente boa no mercado. Poucas pessoas foram tão importantes à música brasileira como ele.   
M:
Os filhos deram, que a gente saiba, todo acesso, todo apoio. Entrevistamos até a viúva.

 

O que de mais importante vocês não sabiam sobre Chacrinha previamente que acabaram descobrindo sobre o Velho Guerreiro no processo?
M:
Muita coisa! Que ele trabalhou quase a vida inteira sem um pulmão. Então, aquela energia toda que demonstrava era apenas com um pulmão, ao longo de toda carreira. E várias outras coisas… Que ele era um péssimo patrão, a gente acabou de falar de coisas que o desabonasse. A Rita Cadillac fala que ela somente foi assinar a carteira muitos anos depois de ter começado, praticamente a carreira inteira ganhou um salário mínimo. Ele explorava os cantores que iam lá se apresentar, explorava no sentido de que as pessoas tinham que fazer um jabá, os playbacks com ele, os shows pelos subúrbios, tudo em troca de aparecer no programa. Então tinham várias coisas que vão compondo essa personalidade de um ser humano, alguém tridimensional que não é apenas uma coisa ou outra. Tem várias coisas que a gente se surpreendeu e o que dá gosto de fazer documentário é quando você justamente vai conhecendo isso, e não quando você já chega com uma ideia pré-concebida, que você já sabe tudo do cara, aí não tem muita graça fazer.

 

“O Chacrinha apresenta muitas inovações, lança muita gente boa no mercado. Poucas pessoas foram tão importantes à música brasileira como ele”.  

 

A montagem do Rafael Paiva foi essencial para encontrar o tom do discurso principal ou este já estava bem alinhavado pelo roteiro?
CM:
Existe um dito, muito dito, no setor audiovisual, de que Deus é editor. Acho que edição é grande parte do produto. O Rafa tem a grande vantagem de ser muito fácil, calmo e caprichoso. Ele dá um tom importante. A gente tem uma ideia, um roteiro, mas se trata de uma trilha, um alinhavo. O filme mesmo é feito na ilha de edição. Sempre estávamos juntos, mas ele preparava tudo e apresentava ideias. Realmente foi uma contribuição fundamental.
M:
O Rafael foi fundamental não apenas para isso, pois um cara um super parceiro, que comprou a história desde o começo e, com todas as limitações que a gente encontrou no caminho, foi um cara imprescindível para conseguir encontrar essa história. Ele foi muito importante mesmo.

 

Cláudio, você que já fez parte de alguns projetos de imensa amplitude popular, realmente sente que esse tipo de alcance, obtido imensamente pelo Chacrinha, ainda segue marginalizado por uma ala mais intelectual?
CM:
Acho que existe uma ala da intelectualidade que sempre teve um nojinho (sic) para algo de consumo de massa. Por mais que falem do povo, digam que amam o povo, acabam tachando de várias coisas pejorativas aquilo que o povo consome. Tem essa ideia de que se você percebe a massa como mal instruída e ignorante, você também desconfia de quem essa massa gosta. Há vários exemplos na cultura brasileira de gente que acabou cultuada apenas depois de virar tradição, como o Luiz Gonzaga, tido antes como vulgar, apelativo, de baixa qualidade e que depois virou gênio. Renato Aragão, que levou o cinema brasileiro nas costas durante décadas, nunca foi devidamente reconhecido. Tem isso, sim. Nós do Casseta e Planeta, quando deixamos de ser de consumo para poucos, também vivemos isso. Mas, não importa. As pessoas não deixam de gostar de você, de apreciar seu trabalho, se determinada bolha torce o nariz. E o que pouco importa fica desimportante.

 

Vocês conseguiram todos os depoimentos / depoentes que queriam ou algum ficou de fora por qualquer contingências e/ou impossibilidade?
CM:
Houve um desejo de conseguir Roberto Carlos, mas ele é um cara difícil por conta da sua agenda.
M:
Você sempre, nesse processo, acaba não conseguindo alguém, porque tem tempo limitado para fazer as entrevistas. Mas, a gente tem certeza que, com os depoimentos que conseguimos, deu para contar uma história legal. Teve um depoimento que eu, particularmente, fiquei sentindo muita falta, que foi o do Denilson Monteiro, biógrafo do Chacrinha. Por questões de correria e tal, acabamos não fazendo e depois, quando nos ligamos nisso, vimos que tínhamos como contar. Claro que seria mais rico com a presença dele, realmente. Se eu pudesse determinar um cara que a gente gostaria de ter entrevistado e não entrevistou, é o Denilson.

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Diriam que o documentário de vocês é complementar à ficção protagonizada pelo Stepan Nercessian? Vocês estabeleceriam algum diálogo entre os filmes?
CM:
Ficção é uma coisa, documentário é outra. Ficção tem ponto de partida, licenças. Acho o personagem da ficção um pouco melancólico, sorumbático demais, mas entendo que pegar um lado mais, digamos, humano, pouco mostrado, aquele que existia embaixo do palhaço, pode revelar isso. Tenho reparos à visão da ficção sobre a questão familiar, principalmente sobre a relação que o Chacrinha tinha com a mãe. Pelo que pesquisamos, ele não repele a mãe após o abandono do pai. Pelo contrário, pois passa a adotá-la. A cena da mãe entrando clandestinamente na casa do Chacrinha para conhecer os netos também não é factual. Isso não é uma crítica minha, é a constatação de que os formatos possuem abordagens diferentes. Você pode fazer o que quiser com a ficção. Com documentário também, mas nós tentamos ser o mais factuais possível. Buscamos não inventar narrativa, mas encontrá-la.
M:
A gente não vê muito diálogo, a não ser o personagem principal, porque o filme tomou muitas liberdades criativas. Nada contra. Particularmente, tenho uma posição pessoal sobre essa questão de filmes que retratam tanto momentos históricos como personagens reais. Acho que algumas coisas podem ser problemáticas, como por exemplo no filme de Pearl Harbour. Quando o moleque de 15 anos vai ao cinema ver ele, acha que a história aconteceu daquele jeito. Então, quando as pessoas assistem a um filme baseado em fatos ou em biografias, a pessoa efetivamente acredita em tudo que está vendo. Acho que, nesses casos, tem de haver um cuidado muito grande com a fidedignidade. Como nos debruçamos sobre o que aconteceu, percebe algumas coisas, discrepâncias, que entendo, dentro do ponto de vista de um roteirista, pode ficar mais interessante.  Um bom exercício seria assistir ao documentário e depois à ficção, porque você vai perceber as escolhas feitas. É algo até interessante, quando você tem dois produtos que tratam da mesma coisa e aí você percebe essas particularidades de cada formato.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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