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Como se percebe pelo título, Chico Ventana Também Queria Ter um Submarino (2020) é um filme muito especial. Esta coprodução entre Uruguai, Argentina, Brasil, Holanda e Filipinas foi premiada no Festival de Berlim, e chega aos cinemas brasileiros em 8 de julho de 2021, trazendo um encontro único entre o cinema fantástico e o cinema de aparência documental. Leia a nossa crítica.
O personagem principal é o jovem trabalhador de um cruzeiro, que descobre uma portinha improvável na embarcação, levando ao apartamento de classe média de uma mulher uruguaia. Enquanto isso, outra porta misteriosa conduz a uma aldeia isolada nas Filipinas. O que estes universos têm em comum, além de serem habitados por pessoas solitárias? O resultado é misterioso e repleto de imagens deslumbrantes. Nós conversamos com o diretor Alex Piperno sobre seu radical longa-metragem de estreia:

 

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O diretor Alex Piperno no Festival de Berlim

 

Em termos de gênero, considera o filme uma ficção científica? Um drama?
Não penso em termos de gênero enquanto faço o filme. Só me confrontava a essa pergunta, durante o desenvolvimento do projeto, quando precisava apresentá-lo para alguém. Acabava colocando “fantasia”, mas os gêneros são múltiplos. O filme tem elementos do cinema fantástico, é claro, mas acredito que estas categorias importam apenas na hora de pensar a melhor maneira de levar o filme ao público. Enquanto cineasta, não me fazia essa pergunta.

 

De que maneira quis construir estes três personagens fantasmas?
Mais do que imaginar como construi-los, fui levado por eles como “espectador privilegiado”, que é a posição do autor. Eu tinha certeza da vontade de ser surpreendido por eles ao longo dos segredos e mistérios do filme. No fundo, eu também vou descobrindo quem são estes personagens à medida que trabalho no projeto. Existe algo que aproxima os três: o fato de serem personagens periféricos, um pouco anônimos e solitários. Isso pode parecer triste, mas apenas significa que são capazes de observar de fora, e nós fazemos este caminho com eles. Esta posição do olhar em que eles se encontram me interessa bastante. Fazer cinema significa criar novas relações com o real e ressignificá-lo, então acreditava que os personagens poderiam fazer isso na condição de periféricos. Além disso, acredito que eles são personagens inocentes, desejando conhecer mais do mundo que se revela de modo não hostil. Isso vai criar alguns problemas a eles, é claro. Mas em geral, gosto que tenham tanta inocência quanto curiosidade.

 

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Chico Ventana Também Queria Ter um Submarino

 

Como preparou os atores para este mundo de fantasia sem estranhamento?
O filme é muito naturalista apesar de ser fantástico. Então eu não precisava introduzi-los num mundo fantástico; a questão era provocar as reações diante dos acontecimentos. Nenhum deles é ator profissional: Daniel Quiroga, o Chico Ventana, vem de um pequeno povoado na Argentina, bem distante de Buenos Aires. Nunca entreguei um roteiro para ele: eu apenas explicava o que queria de cada cena, para ele explorar o espaço físico. Com ele, o processo envolvia ações físicas. Já Inés Bortagaray, a mulher em Montevidéu, é escritora e roteirista, então mesmo sem formação de atriz, ela tem uma consciência muito clara do processo. Lemos o roteiro, conversamos bastante a respeito. Com Noli Tobol, o protagonista filipino, eu explicava a cena e sugeria o tema dos diálogos para eles se apropriarem disso. Mas eles faziam como achavam melhor.
Eu ficava atrás da câmera, dizendo as coisas que queria que fizessem. Eles sabiam que, enquanto ouviam a minha voz, não podiam parar de atuar, e precisavam tentar incorporar essas direções. Fui modulando o processo de acordo com a realidade de cada um, e com a abertura que eu tinha para indicar cada ação durante as tomadas. Além disso, uma coisa é a filmagem, e outra é a montagem. Na montagem, uso planos de outras formas, diferente daquelas filmadas. Por exemplo, às vezes eu uso a reação de um personagem combinada com algum elemento que não tinha nada a ver com aquele momento. Este material heterogêneo permite se recombinar de formas novas. Gosto disso porque posso me surpreender, mesmo na montagem.

 

Existe voyeurismo, seja na posição dos personagens, seja naquela do espectador?
São personagens que observam, então existe algo da dimensão do voyeur, mas estamos longe da perversão. Geralmente o voyeurismo está associado à perversão, mas não é o caso: são os personagens que se expõem e acabam integrando a cena, ao invés de observarem de fora. Quando efetuam estes movimentos de encontros e desencontros, não diria que são voyeurs, embora obviamente estejam associados à dimensão do olhar. Enquanto o espectador observa os personagens observando, ele observa a si próprio dentro daquele contexto. É diferente: finalmente, estamos observando a nós mesmos. Os personagens não se limitam a olhar, eles também efetuam ações e seguem em frente. Eu queria, com este filme, trazer imagens reais, como aquela do cruzeiro e do apartamento em Montevidéu, associadas por elos fantásticos. A ideia era trazer surpresa ao olhar do costume. O fantástico nasce do olhar novo a uma realidade conhecida. Isso é muito bonito. Esta busca me interessa muito mais do que o voyeurismo enquanto perversão, que me parece pura masturbação.

 

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Chico Ventana Também Queria Ter um Submarino

 

O filme tem impressionante rigor estético. Como quis unir espaços tão diferentes?
Essa era a principal preocupação durante o processo: determinar a estética, compreendida como a textura e o tema. De que maneira o enquadramento apreenderia o mundo? Então acabei adotando algumas premissas básicas: usar sempre a mesma lente 21mm, grande-angular, com planos fixos e composições internas de quadros dentro do quadro, com linhas diagonais. Os espaços seriam separados dentro do plano, com muitas atividades fora de quadro, que seria um espaço bastante ativo graças ao som. Além disso, teria a possibilidade de entrada e saída dos planos determinadas pelas portas, janelas e espelhos. Esta composição se tornou a forma natural e precisa de abordar os planos. Também era importante que lugares tão díspares quanto uma paisagem rural nas Filipinas, o interior de um barco abandonado e um banheiro fossem irmãos, vizinhos, porque no fundo correspondiam ao mesmo espaço. Era necessário filmá-los da mesma forma, tornando os personagens vizinhos, como se fossem variações do mesmo personagem.
Em paralelo, a maioria dos planos traz camadas na edição. Eu selecionava a melhor reação de um ator com a reação melhor de outro ator, e com o espaço de melhor iluminação, quando chovia, por exemplo. Eu podia estabelecer uma coreografia na edição para estabelecer ritmo das aparições. Eu modelava os planos, como cerâmica. O rigor decorre destas condições materiais com as quais trabalhamos. Um exemplo concreto: no momento que Inés busca Chico Ventana e sai do quarto, preocupada, ela sai pela direita do plano, cruza o corredor e sai do plano pela esquerda. Quando ela entra de novo pelo fundo da cozinha, e o Chico Ventana aparece pela direita do plano, eu percebi que pareceria um estupro se ele entrasse atrás dela, pelo mesmo espaço. Conversando com as mulheres do filme, me alertaram sobre essa possibilidade de leitura. Percebi que se deixasse Inés mais tempo fora do plano, e introduzisse um diálogo em off, a entrada dele não constituiria mais uma iniciativa dele, e sim a resposta a uma pergunta dela. Fui determinando as relações entre os materiais na montagem.

 

Foi particularmente difícil produzir e lançar uma obra tão ousada? A coprodução entre cinco países foi indispensável ao processo?
A coprodução foi a maneira que encontramos de viabilizar o filme que trazia alguns desafios de produção. Este é o meu primeiro filme como diretor e produtor, e como eu vivia na Argentina, a coprodução se fez naturalmente. Com o Brasil, a parceria nasceu no Ventana Sur, um mercado de cinema há anos atrás, quando os produtores brasileiros se interessaram pelo projeto. Aos poucos, ganhamos um fundo na Holanda, que entrou no processo. Sem essas parcerias, não teria sido possível filmar. Nos letreiros finais, você vê uma quantidade enorme de nomes, e isso reflete as dificuldades que encontramos como cineastas latino-americanos para concretizar filmes mais ousados em termos de produção. Sobre a recepção, fui muito marcado pela resposta das pessoas no Festival de Berlim, mas não tenho como comparar esta experiência de lançamento com outras, por ser meu primeiro filme.
No final, fomos selecionados em diversos festivais e vistos por muitos espectadores, o que me deixa muito feliz. Fico feliz de estrear com a Vitrine Filmes no Brasil. Sei que este não é um filme para o grande público, é claro que não é algo feito em Hollywood. Mas também acredito que este caráter ousado possa ser o elemento capaz de despertar interesse nos parceiros e nos espectadores. Para mim, o cinema tem a possibilidade de ser radical, e mais do que isso, tem a obrigação de ser radical, intenso, permitindo a exploração lúdica dos materiais. Muitos filmes ignoram esse potencial. Quando um projeto busca ser radical, ele pode se tornar um bicho raro, mas o bicho raro é o próprio cinema. No fundo, eu só coloquei um plano ao lado do outro: trabalho com espaços diferentes, mas o cinema tem a capacidade de juntá-los.

 

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Chico Ventana Também Queria Ter um Submarino

 

O filme traz pessoas solitárias em espaços vazios, presas a uma rotina. A pandemia de Covid-19 pode mudar nossa maneira de ler o filme?
Isso já não é problema meu. Não tenho nada a ver com isso. O filme está pronto, terminado, e a maneira como o interpretarem não me diz mais respeito. Já me sugeriram isso antes, em relação à Covid-19 e à nova leitura pós-pandemia. Talvez seja o caso, mas teria sido impossível prever isso, claro. Mas eu me pergunto: como isso muda o filme? Percebo a sintonia temática, mas o que muda de verdade? Não sei. É uma associação singela, curiosa, que eu não consigo fazer porque não penso mais no filme. Mas o que muda para o espectador, de fato, com a chegada da pandemia? Estou perguntando para você, de verdade.

 

A solidão e o isolamento se tornaram menos fantásticos, mais próximos da realidade.
Isso é terrível. Eu queria fazer um filme fantástico, mas acabou sendo um filme naturalista? Meu Deus, que horror! De repente, a nossa relação com a realidade muda por completo, e nossa relação com as representações é fragmentada. Assim, o fantástico emerge dentro da realidade. Existe algo bonito nisso, em meio ao pesadelo da pandemia: a possibilidade de romper com o cotidiano. Para mim, é muito difícil pensar no filme nestes termos, porque ele está bem concluído na minha cabeça. O importante é entender que, quando uma pessoa encontra uma porta fantástica, descobre que do outro lado não existe algo tão diferente do que aquilo que conhecia antes. Finalmente, Chico Ventana trabalha na mesma função que trabalhava antes, apesar de ter outro ponto de vista sobre o mundo. Nesse sentido, considero o filme otimista, por acreditar na possibilidade de abrir portas a algo diferente, ou de abrir as portas dentro de nós mesmos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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