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Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (2019) é o primeiro longa-metragem dirigido pela brasileira Renée Nader Messora, aqui em conjunto com o português João Salaviza, para quem já havia feito assistência de direção. Além da expertise cinematográfica, foi essencial a sua ampla vivência pregressa com os índios Krahô, com os quais desempenhou diversas atividades após uma visita em 2009. Atualmente, ela faz parte do coletivo Mentuwajê Guardiões da Cultura, que reúne cinegrafistas e fotógrafos indígenas a fim de utilizar o audiovisual como ferramenta para a autodeterminação da identidade cultural dos inúmeros povos nativos. Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos foi o grande vencedor em 2018 da mostra Um Certo Olhar, uma das mais importantes do Festival de Cannes. Prestes a estrear o filme em solo brasileiro, a cineasta nos concedeu esta entrevista, em que fala sobre o processo de filmagem e a necessidade de trazer visibilidade à heterogeneidade da cultura indígena. Confira o Papo de Cinema.

 

Vocês chegam agora, com longa premiado, para ajudar a quebrar o estima do “filme de índio”….
Pois é, há olhares que desejam homogeneizar, a qualquer custo, os cerca de 300 povos indígenas, como se fossem todos uma coisa só. Na verdade, são tão diferentes entre si quanto um francês de um italiano ou um brasileiro de um argentino. A vontade era nos aproximar da subjetividade, especificamente a Krahô. Queríamos estar perto do Ihjãc, perceber as coisas junto com ele. Não tínhamos a pretensão de dar conta da aldeia ou de um povo inteiro. Esse é um jeito de fazer filmes de temática indígena que talvez não seja muito explorado. Há as produções de viés etnográfico e as grandes aventuras dos descobridores, nas quais o índio é relegado a ser uma entidade profética. Tentamos estar ao lado deles, trazendo ao filme o que era importante para o Ihjãc, quebrando um pouco esses estereótipos do que é ser indígena no Brasil. Eles podem usar celular, jogar futebol e pintar unha. Isso não significa perda cultural.

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Que tipo de benefícios gerou o fato da equipe se restringir a, basicamente, vocês dois?
Vínhamos de um processo muito cansativo, o primeiro longa do João, no qual fiz a assistência de direção. Foi uma jornada super longa, estendida por meses, entre o primeiro e o ultimo dia de filmagem, com duas pausas mais consideráveis. Quando fomos filmar o Chuva, sabíamos que esse modelo não funcionaria. O tempo, para estar na aldeia e filmar do jeito que queríamos, não permitiria a produção com uma equipe. Na verdade, também não nutríamos muita vontade de dividir isso com quem não tinha passado por aquilo que passamos. Ao contrário do que muitos pensam, não foi tão complicada a filmagem. Claro, houve limitações, mas até o fato de sermos uma equipe enxuta permitiu as saídas criativas. No fim das contas, me parece, acabamos trabalhando num modelo ideal.

 

O privilégio é a vida da aldeia. Secundariamente vem a jornada do protagonista. Era essa a ideia desde o princípio, colocar a trama do Ihjãc enxertada nessa pulsão etnográfica?
Não tem muito como separar as coisas, elas andam juntas. É complicado ir contra as dinâmicas da aldeia e as coisas têm de ser amarradas. Tentamos seguir os rumos do espaço. Sempre soube que a escolha do protagonista determinaria todos os demais papeis. Nunca conseguiria filmar outra esposa e falsear que ela era companheira dele. Todas as relações que filmamos são reais. A única liberdade é o pai morto. O pai do Ihjãc está vivo. Essas raízes que o filme tenta fincar na terra da realidade acabam mostrando a comunidade atrelada à história do protagonista. Várias ideias surgiram do que vimos durante as filmagens. Não tem nada absolutamente mentiroso nesse sentido. Mas, também, muitas coisas aconteceram nos nove meses e foram incorporadas nessa narrativa.

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Com o parceiro João Salaviza

O quanto a concepção inicial difere do resultado em Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos?
Tem uma ideia fundamental do roteiro que mudou. O ponto de partida à concepção foi a história real de um dos jovens do meu trabalho anterior na aldeia. Ele teve uma desavença com o pajé e alegou que foi enfeitiçado. Se ficasse na aldeia, iria morrer. Mesmo com esposa e filho, acabou permanecendo um ano na cidade, tentando encontrar solução. Com um mês e meio de filmagem, o Ihjãc mencionou que estava sentido que o irmão viraria pajé. Aquilo deu um clique. Pensamos que seria mais profundo isso do que o feitiço. A mudança trouxe implicações. Essa foi uma diferença importante. Sempre estivemos abertos aos cruzamentos com a realidade. Curioso, mas já na montagem, peguei o roteiro para dar uma lida e vi que filmamos a sequência final exatamente como previmos.

 

Seu trabalho pregresso com os Krahô, que não era de cunho cinematográfico, mas político, por assim dizer, foi de certa forma essencial?
Foi essencial para estabelecer essa relação de intimidade e confiança com a aldeia. Lá vive uma comunidade muito grande, com pessoas que nos adoravam e umas que não gostavam da nossa presença. Normal. Porém, esse trabalho prévio plantou as sementes que possibilitaram os vínculos. Foram muitos anos de atividade anterior, sem impor modos de trabalhar, tentando perceber o que era interessante àquela comunidade. Meu questionamento era como poderia contribuir, a partir do cinema, com essa coletividade.

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João e Renée em Cannes

O filme foi premiado em Cannes, uma das mais importantes vitrines do cinema. Qual o peso que esse prêmio teve para a visibilidade do filme e, por conseguinte, da tribo Krahô?
Foi importante chegar ao festival mais importante do mundo carregando um Brasil silenciado, apagado, um país sem voz, que não é escutado. Foi essencial mostrar esses corpos e espíritos. Ihjãc apresentou o filme na sua língua, falada por cerca de 3500 pessoas no mundo. Isso tem um peso simbólico muito grande. É preciso ampliar os leques dos Brasis possíveis, quebrando as monoculturas. Nesse momento tenebroso, os direitos dos povos indígenas, conquistados a duras penas, vêm sendo diariamente ameaçados. Desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência, eles estão sendo decapitados. A estreia do filme nesse momento também possibilita ampliar o debate, até porque essas pessoas continuarão existindo.

 

(Entrevista concedida por telefone, numa ponte Rio de janeiro/São Paulo, em abril de 2018)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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