Bruna Linzmeyer é, como toda artista que se preze, uma inquieta. Alçada ao posto de mocinha de novela da Globo, não se acomodou nessa posição, e logo estava assumindo novos riscos e ousando por caminhos que estrelas com a sua popularidade geralmente evitam. Após ter trabalhado com cineastas consagrados, como Jeferson De, Neville de Almeida, Daniela Thomas e Cacá Diegues, se aproximou das novas gerações, participando de curtas-metragens de realizadores estreantes, e voltou a flertar com a televisão – esteve no elenco da recente versão de Pantanal (2022).
Agora conquistou atenção internacional com Cidade; Campo (2024), que estreou no Festival de Berlim, e com o ainda inédito Baby (2024), cujas primeiras sessões foram na Semana da Crítica do Festival de Cannes. Um dos principais nomes do elenco do drama dirigido por Juliana Rojas, a atriz esteve presente no Festival de Gramado, ocasião em que conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Olá, Bruna. Quem é a Mara? Como ela se encaixa dentro do universo de Cidade; Campo?
A Mara, minha personagem, é uma veterinária. Isso é algo que antecede ao filme, não se vê em cena, mas é importante na sua construção. Ela não trabalha com bicho, só em laboratório. Mora em São Paulo, e tem essa oportunidade, junto com a namorada, de ir viver no campo. É a Flavia quem recebe essa herança, com casa e animais. Elas decidem se mudar para o interior, e começam a entender esse tipo de vida, como é o trabalho no campo, que não é nada fácil.
No decorrer da história vão se deparando com os fantasmas que habitam elas mesmas, aquela terra, o universo em que vivem e essa sociedade na qual chegamos. Acho, também, que há uma história de suporte e de amor entre as duas, da Mara com a Flavia, que é vivida pela Mirella Façanha. No momento em que a minha personagem decide ir embora, ao mesmo tempo em que deixa a amante sozinha – e isso é muito pesado, foi uma decisão difícil – também impõe um limite, algo importante para ela. “Desse jeito não consigo, preciso de um espaço”, é o que passa pela sua cabeça.
Elas formam um casal, são uma dupla, mas também são indivíduos.
Exatamente. É bonito adquirir essa consciência, algo que se torna claro, mas entende também a importância da união. Tanto que consegue retornar. As duas superam essas dificuldades e, no final das contas, são bem-sucedidas em retomar a conexão que possuem. Mesmo tendo que se afastar para que isso pudesse acontecer.
Imagino que já conhecesse o cinema da Juliana Rojas, uma cineasta que tem como hábito introduzir elementos sobrenaturais nos seus trabalhos. Qual sua reação ao ler o roteiro de Cidade; Campo?
Sou fã da Juliana, desde sempre. E amo o cinema fantástico. O horror, o suspense, sou atraída por esse tipo de história. Acho que a Juliana é uma das poucas pessoas que sabe conduzir essas abordagens, hoje, no Brasil. Tanto o roteiro de Cidade; Campo, quanto o filme pronto, tem muito mistério. Não tá tudo ali.
Tem muito antes. Tem muito depois. E tem também nos meandros.
Tem material pra gente enquanto fazedores, trabalhadores desse ofício. Colocar na tela só o necessário, e tem assunto para o espectador se projetar também. Esses espaços são preciosos no trabalho da Juliana Rojas. Pra mim, foi um roteiro que leio, assim como é um filme que assisto, e que permanece comigo. Ele remete a uma questão, uma imagem, uma dúvida, uma leitura. Acho isso difícil de ser feito, ainda mais tão bem quanto ela faz.
Cidade; Campo traz duas narrativas. Você está em uma delas, no Campo. Mas é um filme dividido. O quanto ele fala do Brasil de hoje, um país de opostos?
Tem uma camada, nesse filme, sobre o fim do mundo. Estamos vivendo um fim do mundo, que já está acontecendo. É algo em curso. Todos esses desastres que se dizem naturais, mas afetam a gente. Diretamente. Olha o que aconteceu com o Rio Grande do Sul nesse ano de 2024! E todas essas queimadas no resto do país? Tá tudo encaixado nesse momento, não são coincidências. Estamos passando por um fim do mundo.
O filme fala da precarização do trabalho, algo abordado mais na primeira parte, na Cidade, e da nossa dificuldade em lidar com o mundo no qual vivemos. Com a quantidade de pessoas que existem, a quantidade de alimentos que precisam ser produzidos para alimentar todo mundo, como lidamos com a terra. Toca nessas questões de uma maneira estrutural. Amo uma fala que diz: “daqui a pouco vamos acordar e vai ser tudo soja”. Vamos estar rodeados de soja.
Quando fomos filmar, em Dourados, no Mato Grosso do Sul, uma cidade fronteiriça com o Paraguai, o que percebemos lá é que as florestas eram ilhas. Era soja de um lado, milho do outro, e tudo muito seco, muito quente. Quando tinha vento, derrubava tudo, árvore, poste, porque não tem estrutura para conter a ventania. Nós vivemos isso enquanto estávamos lá. É um cenário devastador.
Parte da minha família, por exemplo, trabalha na roça. E enfrentam intoxicação crônica por causa do uso de agrotóxicos. Síndrome do Pânico. Muitas são as doenças que vêm do excesso de veneno e da falta de cuidado que temos ao lidar com isso. Essa é uma questão pertinente. Cidade; Campo não é necessariamente sobre isso, mas traz essas questões para o debate. Mais uma coisa para levarmos para casa e conversar a respeito depois da sessão.
Cidade; Campo, antes de chegar aos cinemas, passou por festivais como os de Berlim e de Gramado, tendo sido premiado em ambos. Qual a importância destes eventos?
Tudo o que vivemos em Berlim foi emocionante. Os ingressos esgotaram em todas as sessões. Ninguém esperava por isso. Eu, Mirella e a Fernanda Vianna fomos reconhecidas na rua, para você ter ideia. “Uau, que coisa louca”, era só o que a gente pensava. Isso de pessoas gringas virem falar conosco – gente de lá, não brasileiros – foi inesperado. Bem especial, mesmo. Até ganhamos um prêmio, que foi uma catarse.
Nunca imaginei experimentar tanta emoção. E um reconhecimento que valorizou, principalmente, o trabalho da Juliana Rojas, o percurso dela. O cinema que faz, o mistério que propõe. O que sustenta com seus filmes.
Depois passamos pela Colômbia, e foi outra relação. Estar na América Latina, a maneira como lidamos com o surreal e com o fantástico, é diferente. É um outro repertório de referências. Chegar ao Brasil nos deixou curiosas, e também apreensivas. Há cenas de suspensão, um certo incômodo. Dependendo de como você olha para o mundo, algumas cenas podem lhe provocar mais que outras.
Isso é legal de perceber quando você está na sala de cinema, observando as reações de quem assiste. E tem também essa vantagem de provocar nossa reflexão sobre quem são essas mulheres, como se relacionam, como vemos estas mulheres na tela.
Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2024
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