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Cidade Pássaro :: “A ideia de se colocar no lugar do outro está na essência do cinema”, afirma Matias Mariani

Publicado por
Bruno Carmelo

No 70º Festival Internacional de Berlim, o diretor Matias Mariani apresentou uma versão muito peculiar de São Paulo. Em Cidade Pássaro (2020), ela se torna a cidade dos arranha-céus decadentes e das ocupações na região central, por onde circulam diversos imigrantes e descendentes de imigrantes em condição desfavorável, criando novos laços afetivos em meio ao caos dos comércios e das avenidas.

No centro da trama está Amadi (O.C. Ukeje), músico nigeriano enviado pela família para buscar o irmão mais velho, que parou de dar notícias. Embora tenha uma noiva esperando por ele no país africano, Ikenna (Chukwudi Iwuji) desaparece em São Paulo, e nem os amigos mais próximos conseguem encontrá-lo. Através dos pequenos indícios deixados pelo irmão, Amadi precisa refazer seus passos, numa cidade que desconhece, onde não fala a língua. O Papo de Cinema conversou com o cineasta sobre o drama aclamado na Berlinale:

 

Matias Mariani com o elenco de Cidade Pássaro. Foto: Divulgação / Berlinale

 

É surpreendente encontrar um roteiro escrito a doze mãos. Como foi esse processo?
Foi um processo bastante intenso, ao longo de oito a dez anos, desde a primeira versão do roteiro. Então muitas pessoas acabaram passando por ele nesse sentido. Mesmo assim, a maioria delas entrou para fazer a versão final, quando formamos um grupo de roteiristas. Foi algo parecido com o conceito de writers room, tendo muitas pessoas trabalhando juntas e dando ideias. Isso é pouco usual no cinema, porque somos obcecados com a teoria do autor e a ideia do cinema de arte. Algumas pessoas ficam quase decepcionadas de saberem que tanta gente colaborou ao filme. Mas o fato é que me senti muito bem nesse formato, e gostaria de repetir para os próximos filmes. Por causa dessa configuração, fiquei à vontade para abordar assuntos que eu não conhecia a fundo, nem dominava totalmente. Nada é melhor do que poder contar com pessoas que, além de terem esse conhecimento de causa, também são grandes contadoras de história por si só. Outra ideia seria chamar consultores de roteiro ou pessoas que “tiram dúvidas”, mas senti que eu queria a contribuição narrativa dessas pessoas, não apenas de informações.

Você fala sobre abordar temas que não dominava por completo. Aqui em Berlim, várias perguntas do público tocavam na questão do lugar de fala de um homem branco. Isso te preocupava em relação ao filme?
Eu me preocupei muito com isso no processo todo. Eu me sinto confortável com o filme nesse sentido. Foi extremamente importante a gente ter uma equipe de roteiristas e colaboradores de muitas áreas diferentes, que de fato trouxeram essa diversidade ao filme. Isso foi essencial para tornar Cidade Pássaro o que ele é. Além disso, nosso próprio tema consiste na experiência de ser estrangeiro. Em grande medida, essa variedade de visões e de posições foi benéfica por isso: eram diversos estrangeiros em relação aos mundos uns dos outros. Isso gerou uma familiaridade de todos com a sensação do personagem principal. A ideia de se colocar no lugar do outro está na essência do cinema, e não podemos abrir mão disso. Uma maneira de fazer isso é tendo contribuições muito diversas.

 

 

A arquitetura de São Paulo é retratada de maneira muito especial, como algo opressor, absurdo. Parece um cenário de ficção científica.
Acho interessante a relação com ficção científica, porque o gênero me interessa muito, especialmente na literatura. Durante a adolescência, minhas primeiras paixões literárias foram Philip K. Dick, Kurt Vonnegut etc. Eles me formaram enquanto artista. Então existe uma vontade de enveredar por esse caminho. Além disso, a ficção científica tem uma profunda ligação com a ideia do estrangeiro. O espectador é sempre um estrangeiro ao mundo que se abre para ele. O formato da imagem em 4:3 vem muito da preocupação em como retratar São Paulo. Eu e o Léo Bittencourt, o diretor de fotografia, quebramos muito a cabeça para tentar entender como abrir a cidade para o filme. São Paulo tem muitas linhas verticais, por ser uma cidade verticalizada. A partir do momento em que adotamos esse formato, conseguimos acessar a cidade de uma maneira que não vínhamos conseguindo até então. Passamos a explorar mais as linhas verticais, e dentro do formato próximo do quadrado, toda a geometria salta aos olhos. O formato scope imita muito o olhar humano e nossa capacidade de ver em ângulo muito grande. Ao mesmo tempo, pensamos muito nos close-ups. Se fizéssemos algo normal, com a pessoa no meio do quadro, seria um retrato qualquer. Mas ao posicionar o rosto em um dos cantos desse quadrado, ou deixando bastante teto no enquadramento, você gera uma construção geométrica.

A música tem grande importância no filme, especialmente aquelas não faladas em português. Como definiu o uso da trilha e das músicas compostas pelos próprios personagens?
Bom, a trilha não tem nada de tipicamente brasileiro! O filme tem pouca música brasileira. Eu queria ter uma noção da música como linguagem que flui entre os irmãos desde que eram muito jovens, e que continua na memória de um e do outro. Quando tocam juntos, tem a ver com a tentativa de reconexão, uma cumplicidade e nostalgia do passado. A trilha precisava falar ao mesmo tempo sobre ser Igbo, mas ter um componente simples, infantil, como algo que criaram juntos quando eram crianças.

 

 

No início, o personagem central parece ser Ikenna, mesmo ausente, porque tudo gira em torno dele. Aos poucos, existe uma passagem de bastão ao irmão mais novo.
Essa é a parte mais pessoal do roteiro para mim. Venho de uma família muito unida, e cheia de expectativas em relação às pessoas mais jovens. Eu e meu irmão também lidamos de formas muito diferentes com isso. Havia uma tentativa minha de colocar isso no roteiro. Sou muito ligado à ideia de rastros, e o meu documentário A Vida Privada dos Hipopótamos (2014) também abordava isso. Acho interessante pensar que rastros as pessoas deixam depois de passarem por um lugar, sejam rastros digitais, na Internet, ou então fotos, músicas. Eu e os roteiristas quebramos muito a cabeça ao pensar o que poderia ficar pelo caminho, o que Ikenna teria esquecido na casa de alguém. Ele também é um homem desapegado, que passa pela vida das pessoas e deixa uma fumaça por trás. Era interessante construir isso através dos objetos, das imagens e das ideias que deixava.

Qual é o papel da matemática teórica no filme? Fiquei surpreso com a importância desse tema na trama.
Eu me interesso muito por esse assunto, especificamente pela questão da aleatoriedade. Os encontros e desencontros geram quem somos ao longo da vida, e a matemática é uma ótima maneira de ver isso. Um estrangeiro numa cidade se torna uma pessoa mais sujeita aos ventos da aleatoriedade do que nós durante o dia a dia. Por outro lado – e talvez isso seja um pouco cabeçudo demais -, sempre que tentamos criar um simulacro do universo, através de um jogo de computador ou através de uma linguagem, que é uma forma de simular o mundo, a aleatoriedade desaparece. Não se consegue ter uma linguagem aleatória, nem um jogo de computador aleatório. É uma característica intrínseca à nossa realidade, mas não está presente em nenhuma das coisas que criamos baseadas na nossa realidade. Ikenna busca não estar sujeito à aleatoriedade, enquanto Amadi precisa aceitar que as coisas podem ser do jeito que são.

 

O.C. Ukeje, Chukwudi Iwuji e Indira Nascimento. Foto: Divulgação / Berlinale

 

Como vê a importância de lançar este filme sobre identidades no Brasil turbulento dos nossos dias? Como encontrar meios de viabilizar e distribuir um filme como esse?
Acredito que, por mais que seja o momento em que precisamos muito de política em todos os âmbitos, incluindo a política no sentido mais prático e pragmático, com o cinema político, também precisamos defender a política da subjetividade. Precisamos ser fiéis para não perder a subjetividade de grupos sociais que estão sendo invisibilizados nesse momento. Nesse sentido, o filme é político pela batalha de continuar criando personagens subjetivos que não necessariamente compactuem com a visão que o governo faz do Brasil hoje em dia. Então isso é especialmente necessário. Quanto ao cinema, sou bastante pessimista. Acredito que vamos entrar num período bem negro do nosso cinema – já entramos, eu diria. Mas a roda do cinema tem uma inércia muito grande: ela demora bastante para colocar em movimento, e vai demorar bastante para ser parada. O fato é que ela vai ser parada, e o efeito disso será sentido com força dentro de um ou dois anos. Mesmo que hoje a gente conseguisse reverter, o mal já está feito. Isso vai afetar o filme no sentido que os editais de distribuição estão todos fechados, os incentivos em relação à cota de tela estão sendo colocados em dúvida. O acesso do brasileiro ao nosso cinema vai ser ainda menor, sem dúvida. Ao mesmo tempo, o cinema não vai acabar: as pessoas vão continuar fazendo filmes, mas os danos estão feitos e precisamos trabalhar para minimizá-los agora e, no futuro, revertê-los.

 

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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