Jesuíta Barbosa surgiu como um corpo estranho em Tatuagem (2013). Estranho, porque até então o público não o conhecia. A visibilidade decorrente do sucesso proporcionou a esse ainda jovem um lugar cada vez mais especial no cinema brasileiro da atualidade. Rapidamente, foi cooptado por outros cineastas célebres da nossa produção, estrelando mais longas-metragens. Logo vieram os primeiros convites televisivos. A telinha realmente não dorme no ponto quando o assunto é o surgimento de novos talentos com tanta envergadura. Jesuíta agora chega aos cinemas com Malasartes e o Duelo com a Morte (2017), filme selecionado para a mostra competitiva do 27º Cine Ceará, no qual interpreta esse personagem que condensa, por sua esperteza e capacidade de safar-se em meio a brincadeiras, o espírito do homem brasileiro. É uma responsabilidade e tanto, até porque grandes nomes, tais como Amácio Mazzaropi e Renato Aragão, o encarnaram antes. Confira nossa entrevista exclusiva com o ator, feita aqui em Fortaleza após a primeira exibição pública do filme, na qual ele discorre sobre a construção do novo Malasartes e, entre outras coisas, as convergências fertilizantes das culturas brasileiras.
Como foi apresentar Malasartes praticamente em casa, já que você foi criado no Ceará?
Por um lado, é um conforto ter a família na plateia, ser na minha cidade, mas, por outro, isso dá um pouco de ansiedade, porque que tenho vontade que o filme seja efetivo, que o público assista e que essas pessoas muito próximas gostem dele. Acho que tem um compromisso, não compromisso desconfortável, mas o compromisso de apresentar o filme aqui. É um longa-metragem tão bem orçado, meu primeiro como protagonista (estou em 80% das cenas). Quero que as pessoas gostem. É um compromisso, mesmo, de que o Malasartes seja bem quisto.
É sua primeira produção grande, diferente das independentes, às quais você está mais acostumado. Como é conceber especificamente o Pedro Malasartes, uma figura tão emblemática?
Esse filme tem uma nuance toda dele, mas realmente está mais perto do cinema industrial que a gente tem, com bom orçamento, vai ser bem distribuído, essas coisas. Ele possui um resgate muito legal que é o da cultura popular. Não é sempre que a gente resgata histórias, mitos ou personagens ícones da cultura brasileira. O Malasartes vem com essa beleza de retratar o interior, especificamente uma figura não vista tipicamente no cinema, esse herói muito diferente. Acho isso bonito. Quando fiquei sabendo da minha escolha para fazer o personagem, comecei a estudar, a ler coisas, a entender que ele é um tipo mitológico que remonta à Invenção do Brasil, à descoberta das Américas. É lá que surge essa figura que vem da cultura impositiva europeia sobre os povos que viviam aqui. Malasartes é um sobrevivente, alguém que precisa se dar bem, senão será massacrado.
Tem, também, a questão espiritual…
Pois é, no filme há diversos aspectos espirituais que remetem à religião imposta, ao cristianismo imposto aos povos indígenas, às tribos que aqui viviam. Já o meio rural, no filme, é simbolizado pelo personagem de Milhem Cortaz, que tem horror da irmã casar com o Malasartes, porque ele é um pé rapado. Então, o filme possui essas metáforas que depois a gente consegue destrinchar. Com o tempo, entendi que Malasartes é quase um espírito brincante, como tantos da cultura popular. Aqui no Nordeste, de onde eu venho, temos também essas personagens: Mateus, o nosso palhaço brincante, o Papangu, etc.
Tipos praticamente folclóricos...
Quando o brasileiro, o ser humano aqui dessas paragens, de repente dá a pausa, entra no ócio e decide brincar. Estabelecemos um diálogo profundamente espiritual quando aceitamos o tempo do ócio. Mas foi a partir dos personagens brincantes que eu já conhecia, inclusive figuras da minha cidade, tidas como loucas, como um homem chamado ”Neto Doido”, que fala sozinho, que pensa no ritmo diferente, mas que é extremamente inteligente. Para o filme, teorizamos tudo isso. Há um estudo em cima dessa possibilidade que é Malasartes, pois ele nunca é uma certeza, já que está à margem das possibilidades. Existem diversos tipos de Malasartes, este apenas um.
O Malasartes zomba das instituições. Religião, casamento, tudo vira brincadeira. Ele condensa esse espírito do desbunde…
Realmente, este filme é um desbunde. Malasartes quer se divertir acima de qualquer coisa, e acha isso bonito. Na maioria do tempo, o ser humano criou uma capacidade de se automutilar, de sofrer. A razão criou esse lugar. O Malasartes é a negação disso, ele é contra o sistema, contra a moral e essa coisa dos bons costumes. É um ser brincante. Nós, os atores do filme, recorremos muito à infância, porque nela temos um compasso muito diferente do da vida adulta, na qual a gente vira essa “coisa” cheia de métodos e rotinas. Nesta produção, Malasartes tem 21 anos, mas acho que fugimos até disso. Ele é um menino brincando de viver, procurando a liberdade, indo contra a razão. É um caminho, um caminho possível.
Como foi trabalhar o seu sotaque caipira, mais próprio do interior de São Paulo, que é bastante verossímil?
Você está sendo muito gentil (risos). Era uma questão importante essa do sotaque. Precisávamos fazer um bem do caipira do sudeste, mas tem uma hora que aparece uma nuance nordestina. A trilha do filme tem forró. Que bonito isso. Essa convergência me interessa mais do que limitar. Estamos num país em que as culturas convergem, as pessoas viajam. O sudeste é muito rico, inclusive de cultura nordestina. Então, criamos um personagem que puxa o “R”, mas que tem um pouco do Nordeste. Faço questão de defender o meu sotaque. Seja projeto de cinema ou de televisão, sempre digo que não preciso negá-lo. Sim, porque se criou essa regra de neutralização, ou de que você precisa falar mais parecido com o paulistano, mas nego isso. É o contrário, a gente precisa misturar, mesmo.
Verdade, pois se você faz uma novela com sotaque nordestino, parece que fica subentendida a necessidade de criar um plano de fundo para explicar porque que tem o personagem nordestino…
Tem realmente de criar esse pano de fundo, como você chama, às vezes com a família, ou explicando que ele veio do Nordeste. Por que tenho de explicar? Isso pode ser um subtexto, tipo a avó dele tinha esse sotaque e o menino pegou. Repito: tem que tirar um pouco essa ideia de neutralização de sotaque e valorizar mais a ideia de convergência cultural.
Você é um ator em franca ascensão. Fez televisão e faz cada vez mais cinema. Então, automaticamente, vai sendo alçado à categoria de celebridade. Qual o lado ruim de ser colocado nessa espécie de panteão?
Digo que a fama é um lugar muito sorrateiro, bastante próximo da ideia de poder. O poder tem uma curvatura que sempre pede por mais um pouco, então primo por não me colocar nesse lugar que prioriza a soma de poder, porque ali eu perderia minha raiz. Facilmente você entra num espaço egoísta bem desconfortável. Esse lugar que se criou de celebridade sobrevive mais da imagem, no sentido de rosto ou fotografia, do que do trabalho. Quero tanto trabalhar, que não posso perder tempo com isso. Quero ainda aprender muita coisa. Se entrar nesse lugar de fama e celebridade, não vou conseguir.
(Entrevista feita ao vivo em Fortaleza, durante o Cine Ceará, em agosto de 2017)
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