Ricardo Martensen e Felipe Tomazelli são colegas há anos – melhor dizendo, há décadas. Os dois se conheceram ainda na faculdade, e tempos depois, firmaram sociedade na mesma produtora. Depois de trabalharem por anos em curtas-metragens, publicidade e outros projetos audiovisuais, finalmente estão estreando, agora, com um longa-metragem: o documentário Cine São Paulo (2017), que passou pelo É Tudo Verdade – o maior festival do gênero na América Latina – e foi premiado na França, no Festival Internacional de Cinema Latino-Americano de Biarritz, entre outros lugares. Aproveitando o lançamento do filme nos cinemas, nós conversamos com os dois diretores, para saber um pouco mais sobre esse projeto. Confira!
Olá! Como vocês chegaram a tomar conhecimento da história do Cine São Paulo e do Seu Chico?
Ricardo Martensen: Pois então, essa história começou em 2011 – ou seja, há quase dez anos. Naquela época, estava fazendo parte do Circuito SESC de Artes. Era um ônibus que partia numa turnê pelo interior do estado, em São Paulo. Tinham músicos, teatro, muita coisa. A minha função era ir na frente, visitando as cidades que iriam nos receber, e perguntava sobre cultura, o que faziam nessa área em cada lugar. Como você pode imaginar, vinha todo tipo de resposta, até “cultura da cana, da laranja” (risos). Quando cheguei em Dois Córregos, no entanto, foi diferente. Pois todo mundo com quem falava dizia que precisava conhecer com o seu Chico e o centro cultural da cidade, o antigo Cine São Paulo.
Então até esse momento você não o conhecia? Ele veio por uma recomendação de outros moradores da cidade?
RM: Exatamente. Fomos até ele, e após o conhecermos melhor, decidi fazer um minicurta, bem superficial e rápido, quase uma reportagem sobre o cinema e sobre ele. O que nos chamou a atenção sobre esse senhor era essa luta dele por aquele cinema. Isso ficou na minha memória. Era um lugar muito interessante, e também um personagem bacana. Mas e a história, qual seria? Quatro anos depois, conversando com o Felipe, meu sócio na produtora, num brainstorm por novas histórias, voltamos ao seu Chico. Assim, decidimos procurá-lo novamente, até para saber se estava vivo, como estavam as coisas por lá. E foi um caso de muita sorte, pois ao me apresentar, interessado em saber sobre o andamento do lugar, ele nos contou que ia começar a tal reforma. Isso deu um estalo na gente. Tínhamos, enfim, a história que estávamos procurando. Tanto que estávamos lá no primeiro dia de trabalhos.
Felipe Tomazelli: Estávamos bem no começo da nossa parceria, escrevendo vários projetos juntos. O Cine São Paulo era apenas mais um destes tantos, tanto que fizemos três curtas antes, e só agora estamos no primeiro longa. Desde o princípio, sabíamos que tinha material aqui. O Ricardo chegou dessa primeira viagem com algo muito legal, que desde cedo me interessou. Mas era preciso trazer a raridade desse personagem, pois ela nos ficou muito clara desde o começo.
Isso tudo em Dois Córregos, uma cidade que tem uma ligação muito bonita com o cinema brasileiro, não é mesmo?
RM: Pois então, trata-se de uma cidade muito cinematográfica, tanto que foi cenário do longa Dois Córregos (1999), do Carlos Reichenbach. É, afinal, um lugar singular. A estação de trem foi reformada, tem um pequeno museu, sem falar desse cinema que funciona como centro cultural. Para uma população de 27 mil habitantes, está um pouco acima da média até, de acordo com os padrões brasileiros. Nenhum de nós dois conhecia bem a cidade, mas a partir desse primeiro contato começamos a ir de tempos em tempos. E o filme foi nascendo assim, aos poucos. Estávamos interessados na força dessa pessoa que quer deixar um legado, mesmo já na sua parte final da vida. E quer deixar um cinema para a cidade. Poderia ser uma igreja, uma loja, e tendo que lidar com muitos problemas, inclusive com a pressão da própria família. Como um prédio de 1910, com esse valor histórico, cultural e afetivo, pode depender única e exclusivamente do ato heroico de uma única pessoa para continuar existindo?
O filme é co-dirigido por vocês dois. Como se deu essa divisão de trabalho?
RM: A gente tem uma produtora, a Trilha Mídia. Já fizemos dois curtas, documentários para marcas, instituições. Agora estamos atrás de parceiras, buscando novos projetos. Esse primeiro longa foi feito muito na raça, até para abrir outras portas. O projeto, em si, tinha essa questão da urgência. Sem edital, nem nada. Tinha que sair correndo, pois a obra não iria nos esperar. Era a história que nos faltava. Nós sempre trabalhamos muito em dupla. Faço a fotografia, ele o áudio, mas a direção é toda conjunta. É uma sintonia muito forte. É o que também possibilita produzirmos, até pela questão orçamentária.
Além da questão financeira, quais foram as maiores dificuldades que enfrentaram nessa realização?
RM: Num dado momento das filmagens, percebemos que a vistoria, a passagem do bombeiro, para aprovar se a reforma estava pronta ou não, seria um momento de tensão. Não sabíamos o que iria acontecer, se seria aprovado ou não. Mesmo assim, fomos, filmamos, registrando tudo. E aconteceu que o bombeiro reprovou. A nossa relação com o Seu Chico, que estava sendo muito boa até então, se deteriorou. O caixa dele, depois de oito meses de obras, já tinha estourado. Nem o aluguel da prefeitura ele estava recebendo. Era uma situação tensa. E ele acabou colocando a culpa na gente, por acreditar que o bombeiro havia sido mais rígido por causa das nossas câmeras. Mas não ficamos chateados, muito pelo contrário.
Ao invés de ser um problema, foi um novo fôlego?
RM: Achamos interessante incluir isso na trama. Colaborou com a metalinguagem que estávamos procurando. Por que não incluir as dificuldades ao fazer o filme? Em termos narrativos, foi interessante que isso acontecesse. Tinha potencial estar dentro do filme. Mas, em termos de produção, a falta de dinheiro nossa, estava sempre nas nossas preocupações. Estávamos sempre em comunicação com ele, mas a própria cidade de Dois Córregos fica a mais de 200 km de São Paulo, e esse deslocamento era complicado. Foi tudo muito difícil.
FT: Na verdade, desde o começo percebemos que fazíamos, de certa forma, parte do filme. Ficou claro para nós que também éramos parte daquele processo. O que seria essa reforma, se não estivesse sendo filmada? A partir do momento em que pisamos nesse cinema e começamos a registrar esse processo de reforma, tudo se transforma. Como se colocar no filme? No momento da vistoria do bombeiro, havia um espaço possível de ser tensionado. Ao invés de minimizar, pensamos que precisava acontecer diante da cama. O seu Chico é uma pessoa muito educada, polida, e de certa maneira trabalhamos diversas cenas que provocávamos que aquilo acontecesse diante da câmera, uma reação mais extrema da parte dele. Achávamos essencial, até como metalinguagem. Portanto, existia uma janela, mas também contradições. Principalmente num documentário, que envolve o real.
Como ficou a relação de você com o seu Chico após o encerramento das filmagens?
RM: Costumamos dizer entre nós que fizemos o filme com a percepção de que o cinema, aquela sala, como se fosse o útero e a prisão do seu Chico. É onde ele vive, mas também não consegue fazer um movimento de desapego. Ele fala sobre isso. Esse amor e obsessão por aquele lugar ao mesmo tempo o motiva a seguir, mas também o coloca em uma posição de solidão. Tanto que não saímos do cinema, tudo foi feito em locação, nem sequer mostramos a cidade. O que acontece é que isso produzia nele esses fantasmas, acabava criando inimigos imaginários. E entramos nesse jogo, como se fôssemos alguém que merecia ser combatido a partir de determinado momento. Ele entrava a todo instante nesses embates, e um deles acabou sendo com a equipe. Mas logo caiu em si, percebeu que realmente o pedido do bombeiro era essencial, e a situação foi contornada. Foi um momento pontual, que queríamos explorar mais, mas logo a relação voltou ao normal. Hoje, ele é mais do que grato por tudo que fizemos.
Cine São Paulo passou pelo É Tudo Verdade, o mais prestigioso festival de documentários do Brasil, e foi premiado em Biarritz, na França. Vocês esperavam tamanha repercussão?
RM: Bom, esse é o nosso primeiro longa, né? Não sabíamos muito o que esperar. O processo de montagem foi muito lento, também pela falta de dinheiro. Por outro lado, como acabamos fazendo tudo, deu tempo de maturar o filme. Com isso, mudamos muita coisa. Mas, no final, já não tínhamos noção de como estava. Quando foi selecionado para o É Tudo Verdade, havia sido chamado antes para o AFI Docs, e isso foi um alívio, saber que tudo aquilo não havia sido em vão. Foi uma confirmação de que havíamos trilhado o caminho certo.
O Cine São Paulo ainda existe? Como continuou a saga do seu Chico após o término das filmagens?
RM: A pré-estreia do filme, na semana passada, para você ter uma ideia, foi lá! A prefeitura de Dois Córregos está nos ajudando com a distribuição. A sala estava completamente lotada, todo mundo muito emocionado. Teve gente de Uberlândia que andou mais de 500 km para estar lá naquela sessão! Era um filme sobre um cinema sendo visto no próprio cinema. Uma experiência muito única. O Cine São Paulo segue como centro cultural da cidade, e se chama Nilson Prado Teles, que era o pai do seu chico! Hoje, no entanto, incorporaram o nome Cine São Paulo, por causa do filme. Olha que bacana. E tudo que acontece por lá, oficinais, teatro, filmes, passo no Cine São Paulo. Tudo que acontece de cultura na cidade, acontece naquele lugar.
Em tempos como os atuais, com a crise da Ancine e o acesso ao cinema sendo discutido como tema da redação no Enem, o que um filme como esse tem a dizer ao Brasil?
RM: Boa pergunta. A gente, inclusive, com esse lançamento, temos encarado não como uma simples estreia, mas como uma campanha para debater e discutir. Debatemos por diversas cidades de São Paulo o acesso a cultura como todo. Fomos a Dois Córregos, exibimos em Jaú, e sempre com bate-papo após a sessão. Achamos fundamental essa discussão, justamente nesse momento que temos sido taxados, ameaçados, de fato. A importância desses templos de acesso a cultura precisa ficar em evidência. Melhoramos muito a nossa produção, no Brasil, nos últimos anos. Estamos em todos os principais festivais do mundo, mas a população brasileira não assiste a esses filmes. É urgente a nossa categoria, o audiovisual como um todo, lutar para que os filmes cheguem até esse público. Só vamos conseguir ter força, inclusive política, quanto mais esses filmes estiverem nas vidas dessas pessoas. É uma discussão muito urgente. Trazendo o público para as salas de cinema, conseguimos mostrar a importância da cultura. As pessoas nem sabem que os filmes estão sendo produzidos, e para a maioria isso não quer dizer nada, pois nem ficam sabendo. Esperamos que esse filme possa ser uma pequena ferramenta dentro desse cenário, para resistirmos juntos.
Cine São Paulo é um retrato muito preciso do Brasil de hoje.
FT: Acho que, por questão de conjuntura, o filme se torna central nesse debate. Poderia ser a luta isolada de um senhor, mas acaba sendo maior do que isso. Fala de uma perspectiva que está sendo ameaçada. Uma coisa é um governo que coloca a cultura em risco, outra coisa é colocá-la como inimiga. Não dar atenção, é do jogo. Mas dizer que a cultura é perigosa para esse projeto de poder, coloca a discussão em um outro patamar. Existe demanda para se ir ao cinema, mas as políticas públicas não atendem. É a música dos Titãs: a gente não quer só comida. Aprendemos, nos educamos, criamos empatia com histórias. E contamos esses relatos. Nesse sentido, o Cine São Paulo dialoga fortemente com o tema trazido pelo Enem. Acho que, dentro desse contexto, o ele se torna uma grande ferramenta de debate e estímulo, e resistência.
(Entrevista feita por telefone em novembro de 2019)
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