Entre os dias 09 e 19 de setembro, o Brasil se torna a capital latino-americana do cinema fantástico. A 12ª edição do Cinefantasy vai apresentar 119 filmes, entre curtas e longas-metragens, de 34 países diferentes. O público em Fortaleza poderá assistir aos títulos presencialmente no Cineteatro São Luiz, enquanto os demais espectadores do país terão acesso à seleção completa por meio das plataformas Innsaei.TV e Spcine Play. E uma das grandes novidades desta edição é o fato do festival contar pela primeira vez com curadoria e júris 100% femininos, conquista pessoal da diretora da programação, Mônica Trigo. Ao lado de Eduardo Santana, idealizador do Cinefantasy, outra peça fundamental para a realização do evento, ela conversou conosco remotamente sobre a necessidade de oxigenar um festival de cinema fantástico por meio desse “conteúdo com representação simbólica e afirmativa”. Mônica e Eduardo falaram sobre essa mudança de paradigmas, os desafios do online e os aprendizados que servem para tornar a programação ainda mais atrativa e rica. Confira neste Papo de Cinema exclusivo.
Entre tantos, quais os principais desafios para fazer o Cinefantasy 2021?
Mônica: Entendo que o maior desafio foi montar uma equipe colaborativa. Temos poucos recursos. Como todo o Brasil, sofremos com o desmonte do audiovisual e também com a falta de investimento público. Para qualquer festival brasileiro, me parece que o maior problema é essa falta de perspectiva de investimento em leis de incentivo. O valor à disposição é sempre muito pouco. Por exemplo, estamos com o projeto na Lei Rouanet, mas não há perspectiva de captação. Difícil. Mas, também há o desafio de ter os filmes. Com a pandemia, muitas produções ficaram suspensas. E no Brasil, com o desmonte da Ancine, as nossas produções estão muito comprometidas. Não sei o que será das próximas edições de festivais no Brasil. Acredito que seremos obrigados a nos repetir.
O Cinefantasy ganhou outra dimensão a partir de 2020 com o online. E qual foi a principal experiência que vocês tiraram disso para a edição deste ano?
Eduardo: O interessante é que fizemos 2020 em formato híbrido. Tivemos exibições presenciais em drive-ins, em São Paulo, Fortaleza e Manaus. Essa experiência do online teve uma importância enorme para atingirmos novos públicos. Geralmente abrangíamos apenas São Paulo e o entorno da cidade. No momento em que você coloca online, isso expande as coisas. Acabamos atingindo um público que não tem possibilidade de sair de sua cidade para conferir presencialmente as sessões na capital paulista. Essa novidade do online com certeza permanecerá nas próximas edições, não tem como parar, né, Mônica?
Mônica: Pois é, o online democratiza os conteúdos. Isso é um fato, como também é a ausência dos relacionamentos, algo que faz muita falta. Geramos negócios na última edição presencial que fizemos. Produtores, realizadores e outros atores da indústria se encontraram e a gente viu depois de dois anos a pré-estreia comercial desses filmes. Esse tipo de dinâmica fica muito impactada. Não imaginávamos que a pandemia fosse durar tanto tampo e eu fiquei impressionada com os números do online. No começo, não acreditei nos números que alcançamos. Tivemos uma valoração de mídia espontânea enorme, valor inimaginável para um evento pequeno como o nosso. Certamente, se tivéssemos mais poder de investimento, faríamos algo muito maior.
Em 2021 vocês têm uma equipe curatorial e de júri completamente feminina, posicionamento vanguardista que combina bem com a própria liberdade e inovação presentes em alguns filmes fantásticos. Como isso surgiu?
Eduardo: O Cinefantasy começou em 2006, teve uma pausa considerável e voltou em 2016. Mas, em 2018 a Mônica assumiu a direção do festival. Ela é quem trouxe isso para o evento.
Mônica: Para falar a verdade, eu ficava incomodada com os festivais de cinema fantástico, no geral, inclusive com o Cinefantasy, porque o cinema fantástico é fundamentalmente masculino. Me perguntava: “onde estão as mulheres?” Onde estão essas diretoras?”. Elas estão invisibilizadas. Tivemos muita dificuldade ao criar uma mostra apenas com filmes de mulheres, simplesmente porque não havia filmes. Comecei a conversar com as pessoas e articular as coisas. Quase não existe mulher filmando no cinema fantástico. Decidimos, então, potencializar a mostra dedicada a elas. Circulei por todos os lugares possíveis, estados, espaços de formação, justamente para falar disso. Deu um resultado enorme. De 2018 para 2019 tivemos um aumento de inscrição de 200% de filmes dirigidos por mulheres. Entendemos que era um caminho: pautar espaços de difusão de conteúdo com representação simbólica e afirmativa.
E, imagino, devem ter sofrido muitas críticas negativas…
Mônica: Nossa, tomamos porrada de todos os lugares possíveis e imagináveis. As pessoas faziam críticas horríveis. Diziam que o festival estava se descaracterizando, questionavam a existência das mostras LGBTQIA+ e do cinema negro. Falavam que isso tudo tinha de estar na transversalidade do horror e da ficção científica. Aí pensei: “ah, é assim? Agora mesmo é que vamos ter cota” (risos). Criamos a mostra Fantástica Diversidade, colocamos cota – todas as mostras precisam ter, no mínimo, um filme brasileiro. E na edição passada criamos a mostra para realizadores negros. Mas, essa discussão foi acalorada nas redes sociais. O pessoal dizia que o Cinefantasy não era mais fantástico, mas plural, como se isso fosse ruim. Eu achei muito bom. Por outro lado, começamos a receber contatos de cineastas mulheres. Identificamos que era necessário dar voz a elas. Foi assim que nasceu a versão feminina. Como eu estava falando com muitas mulheres, e não cabiam todas na curadoria, tivemos a ideia de aproveitar as demais nos júris.
Eduardo: Não apenas curadoras e juradas, pois as atividades formativas também são desenvolvidas por mulheres. São seis debates, apenas feitos por mulheres.
Mônica: Sem contar que a Daniela Távora, artista gaúcha, é responsável pela ilustração da edição 2021. Aí resolvemos parar, por mais que eu ainda sentisse falta da representação indígena. Queria os povos originários com seu cinema fantástico. Porém, não tínhamos grade. Mas, fomos salvos pela Graciela Guarani. Ela fez a curadoria do Brasil Fantástico, e o Brasil que ela nos apresentou foi indígena.
Eduardo: É importante ressaltar que é a primeira vez num festival fantástico que essa dominância feminina acontece. É um pioneirismo do qual muito nos orgulhamos.
Mônica: Além disso, estou muito feliz neste ano por conta da representação dos filmes latinos. Até então tínhamos uma quantidade pequena de filmes latinos no festival. O relacionamento com a Fanlatam (Aliança Latino Americana de Festivais de Cinema Fantástico) trouxe uma quantidade significativa de filmes latino-americanos. Eles representaram mais de 50% das inscrições.
Ouvindo vocês sobre essas mudanças, fiquei pensando uma coisa aqui. O cinema fantástico está muito associado à imagem do Nerd homem. E, infelizmente, vemos com frequência fermentando nesse meio preconceitos, racismo, homofobia e misogonia. Como vocês enxergam esse público com o qual dialogar, inclusive, a partir dessas pautas afirmativas?
Eduardo: Escutamos uma frase ótima da Helena Ignez: “o cinema já é por si só fantástico”. Isso é maravilhoso. Sobre o público. Tínhamos antes um festival bem de nicho, com um público tradicional, de rock, de games, de quadrinhos, e que não queria discutir muito as questões fora da caixinha. Mesmo que grandes mestres, tais como George A. Romero, tenham sempre colocado questões político-sociais em seus filmes. Boa parte do público não enxergava isso. Mas, acredito que esse público já entendeu que o recorte do Cinefantasy é o cinema fantástico, mas dentro do mundo de hoje. E, aos poucos, fomos ampliando o leque. Estamos tirando o fantástico da caixinha do horror e mostrando novas possibilidades.
Mônica: O papel que cumprimos com o festival é gerar uma inquietação. Antes, pessoas com posicionamentos reprováveis estavam mais escondidas. Hoje, elas se sentem orgulhosas disso. Nosso papel é também mostrar que o cinema fantástico não precisa ser mal feito, além de trazer a discussão sobre questões importantes. Queremos mostrar o que está sendo feito de fantástico em outras searas. E se isso está gerando discussão e debate na internet, acho que estamos cumprindo um papel legal. Quando decidimos fazer um festival feminino, sabíamos que haveria reações adversas. E já estão acontecendo. Causar esse tipo de incômodo é importante para gerar reflexão.
E qual é o filme imperdível da edição 2021 na opinião de vocês?
Mônica: O meu é um curta-metragem brasileiro chamado O Verbo se Fez Carne, do cineasta indígena Ziel Karapotó, porque nunca o fantástico e a sociedade brasileira estiveram tão bem representados. É um filme que sintetiza no que o Brasil vem se transformando.
Eduardo: Pela primeira vez, trabalhei nos bastidores. Não acompanhei as curadorias e não assisti aos filmes ainda, por uma questão de respeito à direção da Mônica e às curadoras. Resolvi não assistir antes os filmes, ou seja, não tenho conhecimento e vou descobrir os filmes junto com os demais espectadores.
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