Filha do diretor Sérgio Rezende e da produtora Mariza Leão, não é de espantar que corra cinema no sangue de Júlia Rezende. Realizadora que começou na televisão, pegou o mesmo projeto e fez dele sua estreia na tela grande, com a adaptação da comédia romântica Meu Passado Me Condena (2013). Depois de uma sequência – devido ao grande sucesso do longa anterior – e de uma adaptação de um campeão de bilheteria estrangeiro – Um Namorado para Minha Mulher (2016), releitura do argentino Um Namorado para Minha Esposa (2008) – ela agora se aventura pela primeira vez em um terreno não muito familiar: o thriller social. Estamos falando do recente Como é Cruel Viver Assim, a história de quatro amigos que se reúnem para organizar um sequestro e, com isso, mudarem de vida, apesar de nenhum ter a menor aptidão para o mundo do crime. Como se percebe, o humor segue presente, mas de forma bem mais comedida. E foi sobre esse novo trabalho que a cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Oi, Julia. A primeira vez em que conversamos foi na época do lançamento do Meu Passado Me Condena. O que mudou no teu cinema de lá até Como é Cruel Viver Assim?
Acho que muita coisa. Em 2013, no meu primeiro longa, as escolhas técnicas, acima de qualquer coisa, eram muito instintivas. Estava entendendo como filmar, onde colocar a câmera, de que maneira me relacionar com tudo. O Como Cruel é Viver Assim é um filme que resulta de um amadurecimento dessas escolhas. Questões de linguagem, e de estética também. A minha relação com os atores, a minha intimidade com a câmera, em deixá-la à serviço do elenco, é bem mais fluido, orgânico eu diria. Penso que a maior mudança foi neste sentido. Mas há também o desejo de tratar de outros temas, de ter uma filmografia diversificada. Esta é uma busca que tenho no meu trabalho, essa vontade de passear pelos gêneros.
Neste filme você volta a trabalhar com atores parceiros, como o Marcelo Valle e o Silvio Guindane, mas também se aproxima de outros, como a Fabiula Nascimento. Como foi combinar esse elenco?
Ah, foi bom demais. O projeto chegou até mim pelo Marcelo, aliás. Estávamos gravando a série Meu Passado me Condena, acho que em 2013, se não me engano, e ele me levou o texto. De cara vi que tinha que ser um longa. Me apaixonei pelo texto. Só que estava envolvida com outros projetos, e ele acabou montando antes no teatro, com um outro elenco. Enfim, acho que consegui, neste filme, reunir atores que admiro muito. A Fabiula, por exemplo, é uma atriz fenomenal. A Debora Lamm também, vinha desejando trabalhar junto com ela há muito tempo. E também pela oportunidade de reunir esses ídolos, atores míticos como a Zezeh Barbosa, Otavio Augusto… foi uma conjunção muito especial. E, claro, tudo isso é mérito do texto, do roteiro do Fernando Ceylão. Todo muito que lia, queria fazer. Foi muito agregador.
Como é Cruel Nasceu Assim nasceu nos palcos. O que você mudou nessa adaptação para o cinema?
A peça se passava toda no mesmo cenário, na lavanderia, e eram só os quatro protagonistas. Quando decidimos adaptar para o cinema, a primeira coisa que percebemos foi que seria preciso ampliar os cenários e os personagens. A mãe do primo, por exemplo, só era citada. Trouxemos para o filme esse universo da periferia. Quando chegamos em Nilópolis, entendemos que eles pertenciam àquele lugar. A busca por locações foi muito em cima disso. A casa do Velho, tinha que ser um lugar meio abandonado, mas que já havia sido grandioso. Queria encontrar essa paisagem, de uma periferia urbana que tivesse uma identidade própria.
Quais os maiores desafios de transformar uma trama que é basicamente sobre o antes, e não sobre o durante? Como manter o interesse do público em alta até o final?
O filme é inteiro sobre essa expectativa. Sobre o sonho de realizar uma coisa grandiosa. O Ceylão costuma dizer que é um certo Esperando Godot tupiniquim. São personagens vivendo um momento de esperança. O sequestro é uma oportunidade de mudar de vida, e para cada um funciona de um jeito diferente. O Vladimir quer ser respeitado, conquistar um lugar ao sol, ter uma notoriedade. A Regina quer parar de servir e começar a ser servida. A Clívia é a mais ingênua, achando que com isso vai se casar, ficar ao lado do homem dos seus sonhos. E o Primo tem esse desejo de independência, quer sair da casa da mãe superprotetora, por quem se sente oprimido. É um filme com o qual as pessoas se identificam. Estamos sempre sonhando com alguma coisa. O momento pelo qual estamos passando no país é muito desesperançoso. Esses personagens são um pouco espelho dessa situação. Foi ganhando esse contorno, à medida que o tempo ia passando. Talvez, lá atrás, não tenha nascido assim, mas hoje é inevitável fazer essa relação.
Como esse filme se aproxima dos teus longas anteriores?
É um pouco difícil para mim ver essa relação. Talvez você possa responder melhor do que eu (risos), pois tem mais distanciamento. Enfim, acho que a gente nunca escapa daquilo que somos. E tem uma coisa que se repete em todos os meus filmes que é a maneira de tratar os personagens. A questão do humor, também. Nunca enxerguei esse filme como uma comédia, mas como um drama com humor. Essa busca é resultado de um trabalho muito grande que procuro desenvolver com os personagens. O sequestro, em si, pouco importa. Poderia ser qualquer coisa. E eles todos vivem uma dificuldade de foco muito grande. Começam planejando o quartinho onde o cara sequestrado vai ficar, e daqui a pouco estão falando do xampu que tem cheiro de melancia. São personagens que se perdem. Os diálogos são parênteses que não se fecham. Isso é interessante, é algo que gosto de trabalhar em cima.
Você é filha do Sergio Rezende, e geralmente trabalha com a tua mãe, a Mariza Leão. Como essa relação com teus pais influencia o teu modo de fazer cinema?
Acho que, com meu pai, aprendi o respeito e a importância dos atores. Quando era assistente dele, lembro muito de assistir aos ensaios, às leituras. Ele tem um profundo respeito pelo ator. Espero ter aprendido isso com ele. Realmente, acho que os atores são sagrados num set de filmagem. Acho que isso é muito importante. A relação de parceria que temos é maravilhosa. Com a minha mãe, que atua como produtora ao meu lado, é até mais próxima. Conseguimos, até por trabalharmos muito juntas, delimitar bem o espaço de cada uma. Sabemos até onde ela vai, o que é competência minha, e aceitamos que temos opiniões divergentes. Conseguimos encontrar uma dinâmica que funciona para nós.
Como é Cruel Viver Assim estreou no Festival do Rio do ano passado, e somente agora, quase um ano depois, está chegando aos cinemas. Parece que o filme se tornou até mais atual depois desse tempo, não?
Exato. O que é um mal sinal, pois indica que estamos afundando, vivendo uma crise que só piora. As pessoas estão completamente sem expectativa alguma. Quando isso vai melhorar? Não sei se o filme transmite esperança, mas pelo fato de ter humor, trata de tudo isso com alguma leveza. O humor pode ser uma lente muito inteligente para provocar empatia com as pessoas, para tratar de um assunto que tem importância, sem que se de conta, sem torná-lo entediante. Ameniza o peso da questão. Talvez, se fosse um drama forte, sobre pessoas desvalidas, chegaria no público de uma outra forma. Então, a minha torcida é para que o público consiga se conectar nesse nível, da graça com reflexão.
(Entrevista feita por telefone na conexão Porto Alegre / Rio de Janeiro em agosto de 2018)
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