Nascido no Rio de Janeiro em 3 de junho de 1967, Marcelo Valle é um daqueles atores que, quando você o vê, tem certeza que o conhece, só não sabe ao certo de onde. Pois bem, essa situação está prestes a mudar com a estreia de Como é Cruel Viver Assim, longa que chega nessa semana aos cinemas, após ter tido suas primeiras exibições durante o Festival do Rio de 2017. Baseado na peça teatral de mesmo nome, conta a história de Vladimir – personagem de Valle – um cara que nunca deu muito certo na vida e decide apostar todas as suas fichas em um sequestro que, pelo jeito, tem tudo para dar errado. Com direção de Julia Rezende – com quem ele já havia trabalhado em Meu Passado Me Condena (2013) e também na sequência Meu Passado Me Condena 2 (2015), além da série de mesmo nome que foi ao ar de 2012 até 2014 – o filme conta ainda com participações de Fabiula Nascimento, Debora Lamm, Silvio Guindane, Paulo Miklos e Milhem Cortaz. E foi sobre esse projeto que o ator conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Olá, Marcelo. Como é Cruel Viver Assim nasceu no teatro, certo? O que mudou na tua interpretação ao mudar do palco para a tela grande?
Cara, esse projeto tinha no teatro há bastante tempo. E desde o começo, havia uma dificuldade na dramaturgia dele, pois era uma peça que contava com muitas imagens. Tudo acontecia num mesmo cenário, a lavanderia, mas havia muita narração, citavam-se vários personagens e lugares que não eram mostrados, apenas como referências. Enquanto estava fazendo a série com a Júlia, há alguns anos, mostrei a ela o texto e perguntei o que achava. Na verdade, minha intenção original era fazer uma série de televisão, pois havia muita coisa ali que poderia ser desdobrada.
Quem tomou a decisão de transformar o texto, pensado para o teatro, em cinema?
Foi a Júlia que quis fazer o filme. Só que acabamos nos envolvendo com outros projetos, e como ela estava ocupada, montei a peça. Acontece que a Júlia e a Mariza, a mãe dela e produtora, foram ao teatro, viram o espetáculo e reafirmaram o desejo de transformá-lo em cinema. Ali as coisas começaram a acontecer.
O que era importante manter no filme que já existia na peça?
O principal ponto que discutimos durante essa adaptação, eu, Júlia e o Fernando Ceylão, nosso roteirista, era como desenvolver os personagens. Isso era o que achávamos ser a melhor característica deles, essa possibilidade de falar do entorno, e não do ato em si. Eles são figuras que do assunto com muita facilidade, estão sempre entregues à essas vicissitudes do dia a dia. É uma trama que parece que não vai pra frente, fica dando voltas em si mesma. Por isso era muito importante trabalhar nesse limite. Foi um ano e meio desenvolvendo o roteiro. Iniciamos em 2014 com a peça, e as filmagens só foram acontecer no final de 2016. Foi sem pressa, com bastante calma, até ficar exatamente como queríamos.
Este, aliás, é o teu primeiro protagonista no cinema. Como foi encarar esse desafio?
Eu me preparei muito. Já tinha feito um processo de teatro, esse mergulho inicial, que me permitiu adaptar o personagem. A peça foi dirigida pelo Guilherme Piva, mas o filme tinha a Júlia na direção, então eram olhares diferentes. Com cada um dos dois fui entendendo um pouco mais sobre o Vladimir. Com a Júlia, o caminho que ela estava escolhendo para o personagem me foi revelado de uma forma muito tranquila, nada radical. Tive que me desconstruir, também. No teatro, a estética era mais pop, mais Tarantino, com cores mais fortes. No cinema, tive que aprofundar o personagem.
Fale um pouco sobre quem é o Vladimir, teu personagem.
O Vladimir é um pouco a alma do filme. Obviamente, são os quatro protagonistas, mas é ele quem conduz a história. Tem uma crítica social muito forte que ele representa, mas também um olhar mais delicado sobre esse homem que não acredita em si mesmo. Não quer realizar um ato de sobrevivência, quer é se destacar. É muito ego, vai do pior estado possível ao maior feito da sua vida. Não tem autoestima, mas ao mesmo tempo pensa no sequestro como a maior coisa que poderia fazer. E ele carrega nele outras discussões, como o machismo, por exemplo, pela forma como trata a namorada. Tivemos um trabalho forte ali, e acho que o resultado recompensou.
Você e a diretora Julia Rezende tem uma parceria de vários trabalhos. Como é trabalhar com ela?
A Julia é incrível. É uma diretora jovem, mas que já está no seu sexto filme. Fiz o primeiro dela, o segundo, e agora esse, que é o nosso terceiro juntos. E tem mais: a equipe é basicamente a mesma, também. O grupo é muito forte. Ela sabe o que quer, é muito estudiosa, conhece bem o set e faz a gente entender o caminho que quer seguir, ao mesmo tempo em que nos dá muita liberdade para improvisações. É um processo bastante colaborativo, o filme literalmente acontece no set. Em mais de uma vez já a percebi mudando posicionamento de câmeras, por exemplo, justamente para ir se adaptando ao que lhe parece melhor naquele momento. Está sempre aberta para tudo que vai acontecendo no decorrer das filmagens. E o melhor, ela vai junto com a gente, sabe ouvir, tem essa troca.
O Vladimir é um personagem que se esforça em ser correto, mas acaba vencido pela vida. Como defender uma figura como essa?
Na verdade, o que fiz foi me desconectar um pouco dele. Pois é assim que ele vive, e esse é um mal de hoje em dia. É o domínio da imagem, o que está lá fora. Ninguém mais olha para dentro, para si. As pessoas não querem apenas se satisfazer, mas, sim, provar para o outro. Ou seja, o que ele está fazendo não é para si, é para mostrar aos outros. E isso acontece com todo mundo atualmente. Este é um fator de identificação muito forte que o filme trás. Sem falar que é um cara humano. A gente vê Vladimires por aí o tempo todo, e temos um pouco dele em cada um de nós.
Como foi lidar com o humor do filme?
Tentei dar uma controlada no tom, para não ser nada escrachado. Era preciso ter um certo cuidado com as piadas, justamente para não enfatizar o lado cômico. A ideia era dar o tempo certo para o humor. Não fazer da desgraça dessa galera que a gente entende como uma porção da sociedade que é invisível motivo de risco, não fazer deles uma chacota. A Júlia falava muito disso, desde a pré-produção. Esse filme não é uma comédia, ainda que seja, sim, pois está no texto. Não podia ser tão leve, pois tinha que falar dessa dor. Essa, afinal, é a realidade do Brasil.
Apesar de ter começado em filmes mais dramáticos, como Madame Satã (2002) e Tropa de Elite (2007), você é identificado com a comédia. E o Como é Cruel Viver Assim parece estar no meio termo destes dois gêneros. Como foi encontrar o ponto certo dessa composição?
Olha, isso foi um exercício que faço muito no teatro, então não foi algo novo para mim. Talvez, no cinema, a minha trajetória tenha sido mais voltada para a comédia, mas nunca foi uma intenção. O Sem Controle (2007), por exemplo, já era assim, no meio termo. Agora, no teatro, sempre estive lá e cá. A minha companhia tem mais de 30 anos de atividades. Trabalhamos com muito humor, mas em cima de clássicos. Não é comédia, é humor. Dois grandes sucessos que fiz, que ficaram cerca de oito anos em cartaz, iam nessa linha. O A História de Nós Dois era a jornada de um casamento, do início ao fim, e nele eu terminava aos prantos. Era uma comédia romântica, mas tinha muito drama também. Era preciso dar a volta e convencer o público, pois havia aquela dor. E se não for assim, é vazio. A busca por esse ponto se faz quando se está atento. Não é fácil. Tem muito risco. E confiança, tanto na diretora como nos colegas de cena. Bons atores ao nosso lado ajuda muito, e isso, felizmente, a gente tinha neste filme.
Como é Cruel Viver Assim é mais sobre o antes do que sobre a ação em si. Como manter essa expectativa em alta durante toda a trama?
Isso foi muito importante para nós, principalmente durante a adaptação. A ação não poderia parar nunca, mesmo que nada, de fato, estivesse acontecendo. Tem uma hora, por exemplo, que a Debora e o Silvio vão atrás do colchão. O diálogo dos dois, se você prestar atenção, poderia se passar em qualquer lugar. Não precisava ser naquela loja. Mas criamos essa ação paralela para que a coisa se desenvolvesse, desse essa impressão da trama estar andando. Toda a função de arrumarem o quartinho para receber o sequestrado, era algo que nem tinha na peça, e nem era mencionado. Não dava em nada, mas os colocava em movimento. As informações subliminares que o público vai recebendo são importantes também, pois vão criando a tensão, indicam que a coisa está se aproximando do momento do crime. A ação vai informando. É meio que uma grande farsa. A situação vai piorando cada vez mais. O espectador já entendeu que isso não vai dar certo! Agora, o que vai acontecer com eles, não sabemos. E isso cria empatia com o público.
O que Como é Cruel Viver Assim tem a dizer no Brasil de hoje?
Tem tudo a ver. Primeiro, por abordarmos esse imperialismo do ego, que tá por todo o mundo, e não só no Brasil. E também por questionar essa impossibilidade das pessoas, apesar de desejarem, de não conseguirem viver do jeito que querem. É reflexo da falta de educação, de não receberem apoio de lado algum. São pessoas boas, não são ruins. Mas, apesar disso, estão planejando fazer uma merda. Isso é falta de educação, de orientação. As filmagens ocorreram há dois anos, e agora está mais atual do que antes. É assustador. A impressão é que não vai envelhecer! Mas vai que acontece um milagre e conseguimos bons governantes? Ainda assim, seria um filme que fala da condição humana, e isso sempre é importante.
(Entrevista feita por telefone na conexão Porto Alegre / Rio de Janeiro em agosto de 2018)
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