De origem guatemalteca e residente no México, o cineasta norte-americano Julio Hernández Cordón é um habitué de festivais internacionais. Um dos seus longas anteriores, Te Prometo Anarquia (2015), estreou mundialmente no Festival de Locarno e teve exibições nos eventos de Toronto e San Sebastián, isso para citar apenas alguns. Compra-me um Revólver (2018), que chega nesta quinta-feira, 30, aos cinemas brasileiros, fez uma carreira não menos repleta de passagens por importantes vitrines, como a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes 2018, a Mostra Horizontes no Festival de San Sebastián 2018 e a Mostra Latino-Americana do Festival de Mar del Plata 2018. Além disso, por conta dele, Julio concorreu ao prêmio Fênix de Melhor Direção. A trama dá conta de uma menina (interpretada por uma das filhas do cineasta) que vive com o pai sob o jugo de um cartel mexicano, cujos domínios não comportam a presença de mulheres, a não ser como prostitutas. A protagonista, então, precisa se esconder atrás da fachada de menino para sobreviver a esse meio frequentemente atravessado pela fábula. Conversamos com Julio por telefone para saber um pouco mais de suas inspirações e de seus desejos com Compra-me um Revólver. Este Papo de Cinema exclusivo você confere agora.
Há muitos filmes que falam dos carteis mexicanos, dessa brutalidade infelizmente cotidiana oriunda da criminalidade. Porque te interessava a perspectiva infantil e feminina?
Primeiro, porque sou pai de duas meninas, inclusive ambas aparecem no filme. No começo, minha ideia era fazer uma adaptação/homenagem de As Aventuras de Huckleberry Finn, livro de Mark Twain que adoro. Todavia, durante o processo, decidi mudar isso por vários motivos. Gosto muito do romance especialmente porque ele oferece essa mirada infantil no concernente à tratativa de questões complexas e obscuras. Me pareceu importante ter uma pegada mais sugestiva, menos violenta, ancorando a minha abordagem na ternura.
Os tons de fábula mediando a selvageria também são parte desse esforço?
Sim, com certeza. A ideia era fazer algo como naquelas histórias em que as crianças acabam matando a bruxa no fim das contas. Gosto muito também de O Senhor das Moscas, outra obra de referência. Meu desejo era realizar um filme que pudesse servir de homenagem às coisas que me encantavam enquanto eu era criança e pré-adolescente, por isso há esse tom de fábula que surgiu quase instintivamente. Outra referência foi a turma de meninos perdidos do Peter Pan. Na minha infância escutava essas histórias em discos gravados, algo bem comum à minha geração.
Como foi o trabalho com sua filha Matilde, cujo desempenho é comovente?
Como Matilde é minha filha, já tínhamos uma relação de intimidade, carinho e cumplicidade. Foi uma decisão bastante complexa efetivamente colocá-la como protagonista, algo que englobava não fazer testes e, posteriormente, não ensaiar para evitar deixa-la insegura. Comecei o trabalho com a Matilde no momento da filmagem, exatamente na preparação da primeira cena. Tive muita sorte dela ter um talento nato para a atuação e, além disso, de que se comprometeu de maneira muito forte com a trama e a personagem. Ela gostava de entender realmente o que se passava com Huck e não duvidava de minhas indicações. Foi bastante corajosa. Matilde assumiu esse compromisso exemplarmente. Escrevi o roteiro pensando nela, sobretudo porque minha filha é muito maternal comigo.
Seu filme anterior, Te Prometo Anarquia, tem um quê de libertário. Já neste aqui o privilégio é o lirismo melancólico que circunda a menina. Mas ambos são atravessados pela violência. Como realizador guatemalteco-mexicano, te parece incontornável a brutalidade como catalisadora?
Vivi a realidade de uma das zonas mais violentas da América, chamada Triângulo do Mal, que compreende El salvador, Honduras e Guatemala, onde provavelmente acontecem mais assassinatos do que em qualquer outro lugar. A Guatemala, minha terra natal, passou por um conflito armado que durou 36 anos. Vivo atualmente no México e sou consciente do poder que o crime organizado detém por aqui. Pode acontecer algo com você não necessariamente em virtude da ideologia politica, mas porque está no lugar errado e na hora errada. Podem desaparecer contigo, sem deixar vestígios. É uma espécie de roleta russa à população civil. Tento ser honesto, sincero e contar histórias que tem a ver com essa realidade que me parece importante abordar enquanto sujeito que vive nesse lugar.
Boa parte das plateias internacionais relaciona cinema latino-americano à violência. Todavia, seu filme oferece outras tintas. Como percebe essa expectativa vinda de plateias estrangeiras?
A América Latina e a Central comportam cinemas diversos. Há muitas maneiras de criar e de abordar os mesmos fenômenos. Respeito todas as formas, mas, no meu caso, falo de coisas para exorcizar meus próprios medos, não penso tanto nisso do público e dos festivais. Minha prioridade é fazer um que tipo de filme que me agrade, que não me envergonhe de compartilhar, com o qual se possa estabelecer um diálogo. Na Europa falam muito sobre violência latino-americana, tornando-a exótica. Porém, acho importante dizer que Europa e Estados Unidos financiam e são coniventes com essa realidade, a fomentam por meio do consumo das drogas, nutrem a violência mexicana. Gostaria de trazer esse diálogo à tona. Não é justo que o México, e sua população civil, pague o preço do consumo mundial de narcóticos. É importante pensar de onde vem o dinheiro, que interesses mantém o México no centro dessa produção.
Qual a sua relação com o cinema brasileiro?
Sou fascinado por Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980), filme emblemático mundialmente, não apenas na América Latina. Gosto muito de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009) e recentemente assisti ao último filme do Marco Dutra e da Juliana Rojas, As Boas Maneiras (2017). Gosto também da atmosfera e da atitude do personagem Zé do Caixão. Não conheço tanto o Brasil. Estive somente em Curitiba, onde conheci realizadores com coisas em comum. Sinto falta de estudar mais a filmografia brasileira, pois me surpreendi com essas pontes de diálogo possível. O Brasil tem suas próprias dinâmicas e necessidades, é quase como uma grande ilha dentro da América Latina.
(Entrevista feita por telefone, numa ponte Brasil/México, em maio de 2019)