Heloísa Passos é uma diretora de fotografia com extensa folha de serviços prestados à produção brasileira, premiada nacional e internacionalmente. No 50º Festival de Brasília, competiu na mostra principal com seu primeiro longa-metragem na direção, exatamente Construindo Pontes, que recebeu o prêmio IDFA de melhor pitching no DocMontevideo, em 2016. No filme, ela retrata a difícil aproximação com Álvaro, seu pai, proeminente engenheiro cujo apogeu profissional aconteceu durante a Ditadura Civil-Militar. Além de abismos pré-existentes, se deflagram outros em meio às tentativas de diálogo, exatamente porque ambos se encontram lotados em lados ideologicamente contrários. Heloísa refuta os anos de chumbo, evocando barbáries para taxar de nefasto o jugo militar. Já Álvaro, de certa forma beneficiado pelo regime ávido por aumentar os investimento em infraestrutura, utiliza o eufemismo “revolução” para se referir ao que começou com o golpe de 1964. Heloísa nos atendeu gentilmente para este Papo de Cinema que você acompanha agora, falando sobre dificuldades e o atual clima político-social do Brasil. Confira.
Em Construindo Pontes, nos aproximamos de uma relação que nunca foi fácil. Para você, inicialmente, era mais importante a intimidade ou a discussão partindo da História?
A pergunta é muito boa. O coração do filme é a nossa relação. Todavia, é impressionante a quantidade de coisas acontecendo na realidade. Filmei o Construindo Pontes em 2016. No dia em que me propus a mostrar ao meu pai fotos da estrada Belém-Brasília, ele disse que queria ver o Jornal Nacional. Aí aparece aquilo da condução coercitiva do presidente Lula. Existe uma abertura tanto do meu pai quanto minha, no sentido de estabelecer e seguir o que queríamos fazer. Eu, falar de estradas; ele, ver o Jornal Nacional. Isso tem força no filme. Demorei um pouco a entender que o coração de tudo era a nossa relação, até porque começo pesquisando aquelas quatorze cachoeiras desaparecidas. O Super-8 que ganhei de presente acessa a memória afetiva, as conexões familiares e minhas perdas.
Você concorda que o filme se ancora numa crise mais ideológica que geracional?
Essa crise é, sem dúvida, ideológica. Há muitas camadas em Construindo Pontes, mas não dá para dizer que é um filme geracional. Existem pontos de vista divergentes, semelhante ao que acontece em idades distintas, não apenas no núcleo familiar entre pais e filhos. No trabalho também se veem discordâncias ideológicas. Isso tange à visões de mundo diferentes. Não apenas no Brasil, mas na América Latina como um todo, resistem um machismo e um racismo estruturais. Isso é pouco discutido. É preciso enfrentar, entender o outro e dialogar. Não partir à intolerância.
Como se deu, no âmbito pessoal, essa construção artística permeada pelo desgaste emocional?
Não tomo isso como desgaste. Labor, trabalho é gastar energia para criar coisas que interessam, alocadas no prazer. E o prazer está ligado a questões intimas. Embora determinados processos sejam realmente dolorosos, eles levam a várias dimensões. É um processo de movimento. O que mais me fascina no cinema é o tempo. Sem o filme, eu não teria esse tempo parar estar em Curitiba com meu pai, discutindo “N” assuntos, inclusive alguns que não estão no corte final. Sinto que tudo isso faz parte de uma trajetória de amadurecimento pessoal, como cineasta e mulher, tanto que nem sei dimensionar o tamanho dela. Durante 25 anos como diretora de fotografia e diretora de curtas-metragens, acredito que esses métodos me deixaram mais forte. Sinto gratidão ao cinema, apesar da trabalheira.
Por que no Construindo Pontes há uma necessidade de justificar ausências e permanências, de expor determinadas escolhas formais e éticas?
Porque tal necessidade é fruto de uma busca. Não considero esse um filme de processo, mas de descoberta. Permaneci totalmente aberta ao acaso, por exemplo, àquilo de ir à ponte que meu pai construiu, de ouvir o que ele tinha a dizer. Compartilhar essas escolhas é uma forma de realizar esse primeiro longa pessoal, no qual descubro coisas na companhia de uma pessoa próxima, mas cujo pensamento é tão diferente. Há um esforço grande da mulher e da cineasta Heloísa. Cinema e vida se misturam completamente. Ali está todo junto. A partir do momento em que existe câmera, há representação, um pensar anterior à falar desses objetos cinematográficos. Brinco com meu pai que, se entrássemos para o Big Brother Brasil, eu seria “gongada” no primeiro dia e ele ficaria até o fim, pois é de sua natureza determinar como quer fazer algo.
Que contribuição você acredita oferecer, especificamente, ao clima político-social que o Brasil vive hoje, vide a centralidade da disputa ideológica no seu filme?
Acredito que o exercício da democracia e do diálogo. Pode existir conversa, desde que as partes se aceitem. O acirramento dos ânimos é fruto da falta de afeto, paciência e tolerância. Nas pré-estreias do Construindo Pontes tem se falado muito do perdão, embora isso não seja algo, a meu ver, profundo no filme. Voltando à História, a Ditadura Civil-Militar não prestou devidamente contas e isso gerou uma herança nefasta. Temos uma frágil democracia, sintoma de violências não esclarecidas como deveriam. Vivemos momentos tenebrosos, marcados por heranças de arbitrariedade. É preciso não desmontar essa, infelizmente, frágil democracia.
Você diria que Construindo Pontes é um filme de esquerda?
Minha posição ideológica é bem clara no filme. A do meu pai, também. Sou uma mulher de esquerda que, inclusive, questiona os governos de esquerda. É absolutamente imprescindível que isso aconteça. Como cidadã, é meu dever, bem como direito, questionar não apenas os governos como um todo, mas, sobretudo, os governantes de esquerda.
(Entrevista concedida pelo telefone, numa ponte Rio de Janeiro/São Paulo, em abril de 2018)