Continente (2024) é o mais novo longa-metragem do cineasta gaúcho Davi Pretto. Nele, Amanda decide voltar para casa, acompanhada do namorado, o francês Martin, depois de 15 anos morando no exterior. Eles chegam à grande fazenda de sua família, localizada em uma vila isolada nas planícies do sul do Brasil. Lá, Amanda encontra seu pai em coma e uma tensão crescente entre os trabalhadores. A morte iminente do dono da fazenda colocará Amanda, Martin e a única médica do local no centro de um acordo entre o povoado e a fazenda.
Premiado no Festival do Rio 2024, Continente é aquele tipo de filme que vai se revelando aos poucos, diante dos quais é preciso atenção e sensibilidade. Para saber um pouco mais sobre a opção pelo horror rural para contar essa história que também evoca alguns dos nossos fantasmas sociais, o Papo conversou com Davi Pretto e o resultado você confere logo abaixo.
O que mais te atraiu na utilização do horror para contar essa história?
As possibilidades do gênero foram instigantes para olhar de outra maneira, especialmente, ao histórico de violência que também está presente no meu longa anterior, o Rifle (2016). Porém, agora tento enxergar esse universo por aspectos diversos. Eu sabia que tinha de abordar esse assunto frontalmente. O desafio era fazer de uma maneira não meramente violenta. Para mim, a violência no filme é ambígua, às vezes é desejável, repugnante e assombrosa. O horror permitia me aproximar de um modo específico dessas imagens tão violentas.
Seu filme vem sendo associado a Desejo e Obsessão, da cineasta francesa Claire Denis. Essa obra do começo dos anos 2000 foi uma referência efetiva?
A Claire Denis faz parte da minha vida. Em 2011 houve uma retrospectiva completa dela em Porto Alegre, com cópias em película. Eu era relativamente jovem, havia saído recentemente da faculdade e pude estar a dois metros de distância dela debatendo esses filmes. Me marcou muito, foi quando descobri o cinema da Claire Denis. Com certeza Desejo e Obsessão se manifesta bastante no meu filme. Outro cara que é muito importante para mim é o Kiyoshi Kurosawa, que tem alguns trabalhos cujo gênero é indecifrável. Às vezes uma comédia vira um horror. Outra referência é o Takashi Miike. Fiz uma retrospectiva do cinema dele no CCBB em 2001. Dele, o Audição (1999) é muito significativo para mim nesse sentido, pois começa como comédia romântica e descamba para o gore. Amo esse tipo de cinema feito por gente que desafia os limites do gênero. Acho isso instigante. O cinema tem de ser livre, assim como os gêneros também precisam ser livres.
No filme você brinca com dois arquétipos: a jovem que volta para a terra natal e o forasteiro que poderia servir como uma desculpa para diálogos expositivos. E você foge dos clichês comumente atrelados a esses arquétipos, ou seja, há uma aproximação e um distanciamento desses modelos…
É uma boa ponderação. Primeiro, acho que o cinema de gênero tem esta potencialidade de abordar determinados assuntos a partir de arquétipos que as pessoas conhecem. Isso é imediatamente instigante. No meu filme há elementos evocativos por si só: a casa da fazenda no meio do nada, o vilarejo no meio do nada, a pessoa que regressa, etc. O gostoso era abordar tudo isso de outras maneiras. Há a familiaridade do elemento, mas a possibilidade de brincar com as expectativas. Por exemplo, há quem enxergue a Amanda como uma óbvia final girl e no final ela ganha outro contorno.
O personagem francês também responde a isso…
Pois é, já o personagem francês atende a uma arquétipo que também me interessava: o do europeu que vai para um lugar distante no sul global e enlouquece. Tem um filme do Glauber Rocha, O Leão de Sete Cabeças (1970), com uma figura assim. Mas também subvertemos expectativas nesse sentido, a começar por não termos um europeu branco. Acho interessante a sensação de pertencimento e estrangeirismo dele ao longo do filme. Por um lado, é sempre estrangeiro. Mas, por outro, ele descobre a qual lugar ele pertence naquilo tudo, apesar do pesadelo do qual faz parte.
Voltando ao horror, ele é um gênero associado ao incontrolável, mas a sua abordagem é muito rigorosa, inclusive quando o sexo surge como potencialidade de determinado ponto em diante. Esse paradoxo era intencional?
Isso nasce do desejo de que a violência seja ambígua. Era preciso que ela fosse, em alguma medida, desejável. O sexo tem muito a ver com essa ideia, pois ele também pode ser violento. A humanidade às vezes se utiliza do sexo para a violência. Tem algo ali entre esses limites que é o lugar do não dito. Acho isso poderoso e sintomático de como dominamos uns aos outros e sobrevivemos. Era isso que me interessava.