Diretor e roteirista, Renato Barbieri é cineasta, porém sua formação foi em Psicologia, pela PUC-SP. Seus primeiros passos profissionais, no entanto, foram na área do audiovisual, com a produtora Olhar Eletrônico, ao lado de nomes como Fernando Meirelles e Paulo Morelli. Em 1992, no entanto, fundou sua própria produtora, da Gaya Filmes, alternando trabalhos entre o cinema e a publicidade, a ficção e o documentário. Entre os trabalhos com os quais já se envolveu estão Atlântico Negro: Na Rota dos Orixás (1998), pelo qual foi premiado no Festival de Vitória e indicado ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro – o Oscar da produção nacional – e o drama As Vidas de Maria (2005), estrelado por Ingra Liberato. Agora, ele combina estes dois elementos – as visões documentais e ficcionais – e entrega ao público Cora Coralina: Todas as Vidas, filme que foi exibido na sessão de abertura da Mostra Melhores do Ano SESC, em São Paulo, no início do ano, e somente agora chega aos cinemas de todo o país. A gente aproveitou, claro, para conversar com o realizador e saber um pouco mais sobre esse projeto. Confira!
Renato, como surgiu o interesse de levar a vida de Cora Coralina ao cinema?
Essa é a sexta biografia que faço. Esta é, afinal, uma das linhas que venho trabalhando, a dos filmes biográficos. A ideia de se fazer o filme surgiu a partir de um convite. O Marcio Cury, que é um produtor tradicional aqui em Brasília, um cara com uma história muito importante e que é meu parceiro de muitos anos, chegou até mim com a proposta. Já havíamos feito outros longas, programas de televisão também, então nos conhecemos bem. Foi ele, junto com o neto da Cora, o Paulo Salles, que me procurou. E ele me disse: “quer dirigir?”. Bom, algo assim a gente não recusa, né? Já conhecia, a Cora, claro, mas dos anos 1980, quando ela se tornou conhecida. Naquela época, eu fazia parte de um coletivo paulista, o Olhar Eletrônico. Ao todo, éramos uns 11 diretores. Foi mais ou menos no mesmo período que podemos chamar do boom da Cora. Ela se tornou conhecida aos 90 anos, é uma loucura! E só por causa de uma crônica sobre ela escrita pelo Carlos Drummond de Andrade. Depois disso, todo mundo foi atrás dela, queriam saber quem era essa senhora, conversar com ela. E nós também, é claro. Por isso fizemos uma matéria especial a respeito dela. Eu, como parte do grupo, participei, não era o diretor, mas estava bem envolvido. E me apaixonei por ela, li todos os livros. Então, quando o convite chegou, tudo se encaixou.
Na sua filmografia, podemos encontrar longas de ficção e também documentários. Em Cora Coralina: Todas as Vidas, no entanto, você combina os dois formatos narrativos. Como foi esse processo?
De fato, venho trabalhando, nos meus filmes, há muito tempo com a ficção inserida no documentário, como uma ferramenta, um recurso para contar a história. A primeira vez que fiz isso foi com A Invenção de Brasília (2001), um especial para a televisão. Ali já foi possível organizar reconstituições históricas, com atores, para narrar fatos verídicos. Então, já vinha trabalhando com esse formato há um bom tempo. Outro momento muito importante foi com Araraquara: Memórias de uma Cidade (2013), filme que fiz sobre a cidade onde nasci, no interior de São Paulo. Lá, como em qualquer cidade pequena, tinham os mitos que dominam o imaginário local. Aquelas histórias que toda criança ouve. Nesse filme, pude usar atores locais, e fiz ficção a partir destes personagens históricos. E deu tão certo que decidi: agora, vou fazer ficção pra valer! E a transição de um gênero para outro para mim sempre foi muito tranquila, sem solavancos, então me pareceu natural combinar estes dois elementos. Nem chamo de “docudrama” o Cora, por exemplo, pois foi automático. Fui aprendendo fazendo, integrando uma coisa na outra. Quando você se dá conta, já está dentro. Cora Coralina: Todas as Vidas me permitiu ser ainda mais radical. Fiz meio a meio, com o maior núcleo ficcional que já tive em mãos, em um documentário. Isso possibilitou que não somente os fatos, mas também o elemento poético, que é fundamental para a história da Cora, também estivesse muito presente.
Cora Coralina: Todas as Vidas é livremente baseado no livro Raízes de Aninha, de Clovis Brito e Rita Elisa Seda. Como foi teu primeiro contato com essa publicação e como foi tua relação com os autores?
Quando veio o convite, o Márcio e o Paulo já vieram com o livro debaixo do braço. Foi ali meu primeiro contato com o livro, não o conhecia antes. Eles, no entanto, o conheciam e o admiravam. Então, a primeira coisa que fiz foi ler o livro inteiro, e não só a obra que a Cora havia escrito. Foi quando descobri coisas sobre ela que não conhecia. Sempre associei Cora à Cidade de Goiás, por exemplo, mas não sabia que ela havia passado metade de sua vida no estado de São Paulo! Isso foi super importante para dar um norte ao filme. Quanto aos autores, eles foram incríveis. Mas não se envolveram com o roteiro. A participação deles foi mais como fonte, mesmo. Entrevistei os dois, fazem parte do elenco do filme, com falas preciosíssimas. A Rita, como é paulista, ajudou a desenvolver esse lado da Cora que não conhecíamos. Já o Clovis, por ser goiano, foi fundamental para alinhar os detalhes sobre a história e separar o que havia ocorrido, mesmo, e o que era apenas lenda.
E o trabalho de pesquisa para realizar o filme? Como se deu essa parte?
Fomos além do livro, é claro. Raízes de Aninha tem uma pegada biográfica, no sentido histórico, e o meu filme é muito mais poético. Por isso digo que é inspirado, mas não é espelho, não se trata de uma adaptação. Bebe dessa fonte, como principal, mas fomos adiante. Fomos atrás de muitas referências históricas, fizemos dezenas de entrevistas, levantamento dos personagens e como trabalhar com cada um deles. Esse período ocupou todo o desenvolvimento do projeto, uns dois anos, empregado em trabalho de campo, visitando as locações e falando com as pessoas. Tive que fazer um mergulho muito grande, uma coreografia, alinhando também com todo o material videográfico que conseguimos levantar. O museu de Cora Coralina, por exemplo, é muito organizado, tinha tudo reunido, e isso nos ajudou muito. Sem falar que tem também muita gente viva, que se revelaram uma fonte preciosa.
Falando nisso, como os familiares de Cora Coralina reagiram ao filme?
A família gosta muito do filme, sabe? Além de se emocionarem com essa oportunidade de reencontro com a Cora, eles também ficaram sabendo de coisas que não tinham conhecimento sobre ela. Afinal, o fato de ser parente, filho, irmão, não quer dizer que seja um pesquisador, certo? A filha caçula, Vicência, que é a única ainda viva, gostou muito. Todos eles, ficaram muito emocionados. Um deles até chegou a mim e disse: “nossa, achei que seria uma chatice, aquelas reportagens cansativas, mas ficou tão bonito”. Foi engraçado, mas também emocionante, receber esse retorno deles.
Houve também um trabalho com atores. Temos atrizes conhecidas dando voz à Cora Coralina. Como foi feita essa seleção e qual era a principal orientação dada a elas?
Boa pergunta. Primeiro, assino o roteiro com a Regina Pessoa, que é daqui de Brasília. E isso desde o princípio foi algo que nos guiou, a polifonia coralina. Várias vozes, várias mulheres, todas as vidas, todas as mulheres de Cora, as vozes de Cora. Esses conceitos que habitam dentro da obra e da mulher que ela foi. Por isso trouxemos Zeze Motta, Maju Souza, Camila Mardila, Tereza Seiblitz, Beth Goulart… várias mulheres, todas bem diferentes entre si, mas, no meu entendimento, atrizes com muita integridade. Isso era fundamental. Com a Walderez de Barros, por exemplo, foi incrível. Até me assustei com ela, de tão impressionante que era vê-la como Cora. A conheci no set, e quando a vi pela primeira vez, enxerguei a Cora de imediato. Essa coisa da integridade, que traz a figura verdadeira, entende? São atrizes com muita conexão consigo mesmo e com a arte. Ao escolhê-las, eu já sabia que minha Cora estaria bem representada.
O filme tem também um papel de redescoberta. De apresentar Cora Coralina a um novo público. Você tem percebido este tipo de retorno?
Ontem mesmo tivemos uma pré-estreia, aqui em Brasília. Foi um monte de gente, de todas as idades. E o que me parece é que o filme está se comunicando bem com esse público mais jovem. Temos muitos fatos históricos, é verdade, mas o lado poético também deserta atenção. Há uma leveza na narrativa, uma fluidez, e isso é muito legal. Algumas sessões especiais geraram uma certa emoção coletiva muito interessante. Acho que o filme tá sendo um bom veículo para aqueles que não conheciam a Cora, e a partir de agora vão mergulhar no mundo dela de uma maneira bem forte e inteira.
(Entrevista feita na conexão Porto Alegre/Brasília em dezembro de 2017)