Os dois são estreantes. Mas estão longe de serem novatos. Marcelo Caetano e Kelner Macedo respondem pela força que move o impressionante Corpo Elétrico (2017), um dos grandes filmes brasileiros deste ano. Premiado nos festivais de Guadalajara (México) e Los Angeles Outfest (EUA), foi selecionado também para o de Roterdã (Holanda), Pavasaris (Lituânia), Hong Kong (China), Inside Out Toronto (Canadá) e Turim (Itália), entre outros. No Brasil, foi convidado para a sessão de abertura do 12o Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, em julho. E agora está finalmente em cartaz, como uma das principais estreias dessa semana. O longa é o primeiro assinado por Caetano como realizador, após ter se envolvido em alguns dos títulos mais marcantes dos últimos tempos, como Aquarius (preparador de elenco), Mãe Só Há Uma (diretor assistente), Boi Neon (ator), Tatuagem (diretor assistente) e Depois da Chuva (primeiro assistente), entre outros. Kelner, por sua vez, tem aqui sua grande oportunidade como protagonista, após curtas e projetos para a televisão. E foi com os dois que conversamos com exclusividade, na capital paulista, um dia após à primeira exibição no país. Confira!
Um dos pontos fortes do Corpo Elétrico é o roteiro. Foram três roteiristas, certo? Como ele foi construído?
MC: Foram três etapas de roteiro, na verdade. O Hilton Lacerda fez o primeiro tratamento, comigo, lá no início do projeto. Só que essa versão mudou bastante desde então, e o Hilton, por conta de outros compromissos, não conseguiu acompanhar. A versão que foi filmada acabou não tendo muita intervenção dele. Mas manteve uma série de diálogos construídos em parceria, por todo o tempo que nos conhecemos – somos amigos há mais de dez anos, afinal. Essa discussão sobre liberdade, amor, não construir análises morais. Ter uma frontalidade com o personagem, sem julgá-lo. Isso é uma coisa que aprendi com o Hilton. Mas, em termos de estrutura narrativa, tem pouco dele. Foi aí que o Gabriel Domingues entrou, pra me ajudar a escrever essa versão final. Sem contar que o roteiro foi muito construído também na sala de ensaio.
Lembro das pré-estreias de Deus é Brasileiro (2003) e de Tatuagem (2013), quando os jovens Wagner Moura e Jesuíta Barbosa, respectivamente, despontaram para a fama. Agora é a vez de Kelner Macedo, não? Como o Corpo Elétrico entrou na tua vida?
KM: Como uma grande surpresa. Fui fazer teste para o Aquarius, filme que o Marcelo fez a produção de elenco. A gente se conheceu durante este teste. Acabei não pegando aquele papel, mas ele me convidou para esse outro, pois achou que poderia ter o perfil para fazer o Elias. E pediu para eu fazer uma improvisação – foi quando tudo começou. Isso foi em 2015, e permanecemos em contato por mais de um ano – as filmagens do Corpo Elétrico só foram acontecer em 2016. Durante esse tempo tivemos uma série de outros testes e conversas, até conseguir entender que poderíamos fazer esse trabalho juntos.
Uma coisa que chama atenção é a naturalidade das atuações de Corpo Elétrico. Como foi esse preparo com os atores?
MC: Foi tudo à base do improviso, mas com muito ensaio. Pra mim, improviso é uma coisa muito séria. Peguei a estrutura do roteiro e fui levantando cena a cena com os atores. Vou fazendo provocações, e a partir das respostas, anoto o que é dito. Eu mesmo preparo meu elenco, não trabalho com um preparador à parte. Uso muito a minha experiência como assistente de direção. Desde o Tatuagem tenho trabalhado perto dos atores. Foi assim também no Boi Neon e em outros filmes que fiz. Tenho uma facilidade e um interesse muito grande em trabalhar com o elenco. No Corpo Elétrico, olhando agora, acho que dediquei pouco tempo ao restante da equipe, mas como era, na maioria, gente que já havia feito vários curtas comigo e sabiam como funciono, então foi tranquilo.
Uma cena que demonstra bem essa questão do “improviso controlado” é a da saída da fábrica. Como ela foi feita?
MC: Primeiro, levantamos quais seriam as questões de cada um daqueles personagens. Quais eram as proximidades entre eles, quem era amigo de quem, quem teria interesse em quem. Mapeando quem eles são. Aí a gente foi pra rua e fez várias vezes, até acertar.
Então foi exaustivo também para os atores, não?
KM: Foi tudo muito novo. Todo o processo do Corpo Elétrico, na verdade. Diferente de tudo que havia feito em cinema até então, alguns curtas e projetos para a televisão. Esse é o meu primeiro longa. Então, foi uma descoberta. Essa cena, em específico, demandava uma certa coreografia. A gente precisava estar muito ligado no que ia acontecendo. Precisava estar conectado um no outro para a coisa rolar.
Tinham marcações, por exemplo?
MC: Sim, todos os movimentos estavam marcados. Fizemos um ensaio primeiro na sala, e depois fomos para a rua. A cena inteira tem uns sete minutos, mas no filme acabou com 4 minutos e meio, no máximo 5. Tivemos que tirar um pouco do início e também do final, pois estava muito longa. Levamos uma noite inteira marcando essa cena na rua. Filmei, fiz as anotações necessárias, e depois mandei um e-mail para a equipe – sou conhecido pelos e-mails enormes que escrevo. Foi uma verdadeira bíblia, que dizia: “a cena é essa”, com as fotinhos de todo mundo, do jeito que queria, indicando o que cada um deveria fazer. “Estudem aí, e no dia tal vamos fazer de novo, quantas vezes forem necessárias, até acertarmos”. No dia combinado, repetimos muito – no total, foram mais de oito horas até ficar do jeito que queria. Foi um dia inteiro só para essa cena. Vinte e três takes no total.
Já falamos do Tatuagem, do Boi Neon, tem também O Som ao Redor, filmes que se percebe a influência no Corpo Elétrico. Mas para os atores, que tipo de referências receberam?
MC: Passei uma lista de filmes para assistirem, e conversamos muito sobre virais, coisas de internet que me interessavam. O viral é a produção do povo mais imediata em termos de audiovisual. Fiz uma pasta chamada “viral é vida”, e fizemos um cineclube. Ficamos vendo por horas a fio virais de todos os tipos. As travestis se filmando, operários bêbados, famílias no fim de semana, pessoas transando… fizemos uma série de estudos sobre essas auto-representações. Mas tinham, também, é claro, filmes que considerava importantes tematicamente, ou mesmo pela estética. Gosto muito do Maurice Pialat (1925-2003), e introduzi o Aos Nossos Amores (1983), que foi essencial para mim e para esse filme que queria fazer, pois mobilizou muito o direcionamento que tomei de encenação, de mise-en-scène. Vimos muito Almodóvar, como A Lei do Desejo (1987), vimos Um Estranho no Lago (2013). Não é uma postura arrogante da minha parte, mas tendo a achar que as pessoas veem poucos filmes, e quem quer trabalhar com cinema tem que ver muito! Tem que ter repertório de possibilidades. Não adianta os diretores e preparadores ficarem reclamando, dizendo que os atores são teatrais, se não há base para se trabalhar. No Tatuagem, por exemplo, a gente fazia cineclube todas as noites. Tinha que oferecer tons diferentes para os atores saberem o que poderiam e queriam fazer.
Você cita A Lei do Desejo, Um Estranho no Lago, Tatuagem… são filmes que brincam muito com o corpo dos atores, com sexo e nudez. Já o Corpo Elétrico não se vê muita nudez. Não se tem o corpo masculino de frente. Isso foi proposital?
MC: Tem nudez no filme. Mas é mais subliminar. Nunca foi pensado, nem como uma questão, muito menos um problema. Descobri que isso poderia ser uma questão ou um problema quando fui ao Ventana Sur, que é um mercado na Argentina, e um distribuidor francês uó me disse: “mas falta pau nesse filme”. E falei: “mas tem tanto corpo, né?” São tantas possibilidades. Por isso que digo que nunca foi uma questão.
KM: E nunca foi um problema mostrar ou não. O set de filmagens era muito libertário.
MC: Filmamos paus, por exemplo. Mas, na dinâmica da montagem, não era uma coisa que me interessava. Acho, no fundo – e isso é uma análise de agora, não foi pensada – que tem uma coisa de um corpo misterioso, do corpo erótico, mas não necessariamente explícito.
Kelner, o que é o Corpo Elétrico?
KM: Difícil responder isso. Acho que é um filme sobre gente de verdade. Tem muitos discursos sobre a classe burguesa, gente rica, e esse é sobre gente normal, o povo mesmo. Operários, pretos, bichas. É um filme que dá pinta. E é um ato político. O mínimo possível de pinta que você der já é um ato político diante de tanto retrocesso. Estão querendo passar por cima da gente como um caminhão demolindo uma casa para construir um prédio. Acho que o Corpo Elétrico é um espaço de grito, de dar voz a essas pessoas e a esses corpos que estão sedentos de desejo. É sobre o medo que a juventude acabe. E é também uma celebração dos corpos, da liberdade, dos desejos.
Esse era o filme que você queria fazer, Marcelo?
MC: Esse foi o filme que eu fiz, e é o que queria fazer também. Sempre quis fazer um filme livre, não programático, não vinculado a nenhum tipo de agenda estética ou política. Queria fazer algo que surgisse do meu encontro com essas pessoas. E este é o filme que consegui fazer.
E sobre a questão da representatividade? Corpo Elétrico foi pensado nesse sentido?
MC: Não é um filme de representação. Nenhum daqueles personagens está ali para representar os operários, ou os negros, ou as bichas. Discordo desse tipo de leitura que algumas pessoas estão tendo sobre o filme. É, sim, sobre encontros, daqueles corpos naquelas situações propostas. Eles até podem ser lidos dessa forma, porque o filme é um espelho, e cada um pode ver o que quiser. Eu, como quem criou a criatura, dou essa liberdade. Mas a minha posição é sobre pessoas e personagens que foram criados em conjunto comigo e com os atores, e não se colocam como representantes de absolutamente nada. Mas podem ser lidos assim, porque temos uma ausência enorme neste sentido. Negros, bichas, travestis, operários. Em quais lugares eles são olhados enquanto indivíduos, como sujeitos?
E tem também a forma como estes tipos são sempre vistos…
MC: Exato, é a reiteração da representação. Operários são vistos sempre da mesma forma, atores negros fazem testes sempre para os mesmos papeis. Tem um determinismo, um fatalismo na sociedade brasileira, e o cineasta fica no meio dessa encruzilhada. Então, não me proponho a representar. Não é minha proposta. Mas pode ser, sim.
Corpo Elétrico teve uma repercussão incrível, principalmente no exterior. Vocês já imaginavam que isso poderia acontecer?
MC: Estou muito feliz com a recepção. Acho que tanto quando é elogiado como quando é criticado, é levado à sério. Pra mim, isso é o mais importante. Brinco dizendo que não quero boas críticas, quero bons textos. Desejo que o filme seja objeto de reflexão da minha parte para as pessoas, que consigam sentir a partir dele. Acho que tudo que aconteceu até agora está além do que esperava – até porque espero sempre muito pouco de tudo (risos). Mas isso é mais uma defesa do que uma característica, creio. E estar, enfim, no Brasil, é uma viagem completamente diferente. É outra pegada. Várias camadas políticas estão surgindo. E elas não existiam nas exibições fora do país. Isso é fato. Assim como leituras que os estrangeiros colocaram, aqui, não aparecem. Eles tem um olhar muito colonialista sobre o nosso corpo. Sobre nosso excesso de intimidade.
Como assim? Que exemplos você pode citar a respeito disso?
MC: Na Lituânia, no debate, me perguntaram se era normal se tocar tanto assim no Brasil. Teve uma pergunta lá, aliás, que mexeu comigo. Um homem, branco e heterossexual, se levantou na plateia e perguntou se o que ele havia visto na tela tinha se sucedido também entre a equipe e o elenco. A gente tem uma carga emocional brasileira muito forte. Aqui, no entanto, penso que as pessoas pulam essa parte e vão direto para outros contextos.
Como você tem percebido todo esse movimento, Kelner?
KM: Tem sido muito bonito. Quando a gente faz um filme, não fica muito pensando no produto que ele vai se transformar. Agora, que está pronto, tem vida própria. O que tinha que ser feito está ali. Não sofro assistindo, acho que está tudo no trabalho, exatamente como tinha que ser feito. Resta torcer para que o máximo de gente veja e, gostando ou não, que surjam discussões e questões sejam levantadas a partir dele.
E como será a vida após Corpo Elétrico?
MC: Nossa, tem muita coisa. Nesse exato momento estou escrevendo o roteiro de um novo longa, o meu segundo como diretor, e cujo título provisório é Baby. A gente foi contemplado pelo Hubert Bals Fund, que é o fundo de desenvolvimento do Festival de Roterdã, e vamos participar de uma consultoria com eles. Estão acompanhando o projeto, que vai estar aberto a uma coprodução internacional. Estamos estudando possibilidades, mas as filmagens devem ocorrer no final do ano que vem. É uma produção minha com o Ivan Mello, que foi produtor associado do Corpo Elétrico. E tem também o novo do Kleber Mendonça, Bacurau, que fiz a produção de elenco, e deve ser filmado só no ano que vem, também.
(Entrevista feita ao vivo em São Paulo em agosto de 2017)
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