Do ponto de vista do interesse histórico, Currais (2019) tem um valor enorme. Por meio dele, os cineastas David Aguiar e Sabina Colares resgatam histórias dos campos de concentração proliferados pelo sertão cearense especialmente depois de grandes secas. Em busca de melhor qualidade de vida, famílias migravam para Fortaleza e cercanias, mas eram aglutinadas em formigueiros humanos nos quais a morte era um elemento constante e a dignidade humana sequer observada. Depois de exibido com êxito em vários festivais, tais como o Cine Ceará, o longa-metragem está chegando ao circuito brasileiro via O2Play. Para saber um pouco mais sobre essa produção que transita entre ficção e documentário – ao ponto de borrar as já nebulosas fronteiras entre essas possibilidades –, conversamos remotamente com David Aguiar e Sabina Colares. Falamos sobre o árduo processo de pesquisa, colaboradores imprescindíveis, a dureza de se deparar com um Brasil de ontem alimentando engrenagens nefastas do hoje e a trajetória para se chegar a uma linguagem despreocupada com fronteiras, senão para fundi-las. Confira!
Como surgiu o interesse de vocês por essa história silenciada?
David: Essa é uma pergunta muito importante e recorrente, sobretudo por conta do apagamento histórico. Minha família é do interior do Ceará, onde eu ouvia falar disso bastante. Sobre a seca de 1915, por exemplo, é algo muito falado. Ao mesmo tempo, exatamente por ser do interior, testemunhei modos de exploração do sertanejo. Posteriormente, me deparo de novo com o tema, mas na universidade, quando fui fazer mestrado. Eu e Sabina conversávamos sobre traços da formação de Fortaleza, cidade que possui uma periferia imensa e é constituída por movimentos migracionais. Percebemos que era importante investigar o tema. Descobrimos, por meio de um amigo nosso da cidade de Senador Pompeu, que existia uma pessoa considerada uma das últimas sobreviventes dos campos de concentração. Depois, acabamos sabendo que ela poderia ter um laço familiar comigo. Após o filme, acabei descobrindo num livro que meu bisavô fugiu de um dos campos do Ceará, em 1879, um dos primeiros registrados.
Sabina: Fomos a Senador Pompeu. Lembra que no filme há um personagem da estação falando recorrentemente da avó? Ela é exatamente essa senhora que queríamos procurar, mas quando chegamos lá soubemos de seu falecimento.
David: Entretanto, ali descobrimos a história da Caminhada da Seca, também chamada de Caminhada das Almas, que foi algo absolutamente transformador.
E vocês chegaram a fazer a caminhada?
Sabina: Tínhamos tantas curiosidades, mas também várias dúvidas. Quando chegamos a Senador Pompeu, muitas pessoas diziam que a gente tinha de fazer a caminhada. Mas, ela não é uma tarefa fácil, pois bastante íngreme, repleta de declives e em pleno sertão brabo, com aquele sol que parece que vai matar a gente. Ao longo do caminho, as paradas retomam o que foi esse acontecimento dos campos. A caminhada era feita antigamente, a fim de permitir uma reflexão sobre os lugares de concentração. É como se fosse uma peregrinação religiosa. Gosto de dizer que a pessoa não volta a mesma de uma jornada dessa, seja do ponto de vista espiritual ou social. É uma circunstância que te toma. Milhares de pessoas caminhando, ofertando água e pão às almas dos que morreram de fome. Tudo aquilo era mais importante do que imaginávamos. Ali tem elementos vitais para saber o que é o Brasil hoje. As edificações atualmente em ruínas não foram erguidas para os campos de concentração, mas eram obras dos ingleses visando a construção da ferrovia e da barragem locais. Visitamos esses lugares, pensamos em fazer um curta, mas logo decidimos realizar um longa. Firmamos o pacto de empreender uma longa pesquisa. E ela durou quatro anos.
E o que mais chama a atenção no filme de vocês são os aspectos formais que o distanciam de uma lógica meramente informativo-jornalística. Como elaboraram essa linguagem tão instigante? Vocês não parecem preocupados com fronteiras entre ficção e realidade.
David: Vou te dizer que a Sabina puxava a sardinha para o Abbas Kiarostami (cineasta iraniano) e eu para o Pedro Costa (cineasta português). Realmente não nos preocupamos com fronteiras. Estávamos diante de um fenômeno histórico, social e econômico. Pensamos primeiramente a nível do fenômeno, que pedia uma metodologia quase científica. Precisávamos de determinada linguagem e formos a descobrindo na medida em que colhíamos as informações desse corpus. Até que conseguimos bater o martelo e definir a linguagem híbrida, compreendendo o fenômeno por meio das imagens. Definido isso, tudo foi se acarretando. No primeiro encontro do Rômulo Braga com o Valdão, por exemplo. Falamos para o Valdão que tínhamos um amigo curioso quanto àquela história.
Sabina: Nessa primeira vez que visitamos o Valdão, havia uma vaquinha que ficava na frente da porta dele. Como colocar isso no filme? Se tratava de um senhor extremamente feliz, vivendo numa pobreza absurda, mas com um coração gigante que te faz sentir pequenininha. Essas coisas foram nos atravessando e ajudando a formar a linguagem. Aqueles personagens reais precisavam estar o máximo no filme, mas, ao mesmo tempo os vácuos e apagamentos históricos precisavam ser preenchidos para construir uma dramaturgia compreensível, levando em consideração que há muito não respondido. Nosso objetivo não era fazer uma reconstituição de época clássica. Aí encontramos subsídios nos cinemas de referência. E a pesquisa determinou a nossa estratégia de abordagem do real.
E como foi o trabalho com os atores?
Sabina: Acreditamos que nem a Zezita Matos e o Rômulo desempenharam a função de atores, do ponto de vista clássico. Gostamos de dizer que eles foram performers afetados pela realidade. De certa forma, o Rômulo é um fio condutor a fim de reunir as lacunas e representar a busca que muitos empreendem à procura de respostas. Quando começamos fazer a pesquisa, entendemos que o próprio filme se tratava da busca que ainda persiste. O Ceará não sabe dessa história, Pirambu continua sem saber dessa história, então o apagamento persiste. Portanto, o Rômulo se configura numa espécie de documento do real, representando todas as pessoas que vão em busca.
David: Pegando esse gancho da Sabina, tínhamos sempre em vista que poucas pessoas conheciam essas histórias. Se fizéssemos um filme historiográfico, acabaríamos não revelando esses episódios, pois eles têm meandros. Percebemos a História por meio da visão crítica. E também nos questionávamos: o que dela está presente até hoje? De que forma reverbera? O autoritarismo e o fascino continuam aí. Queríamos abordar isso dentro da perspectiva das crises temporais e históricas. Os personagens mudam, mas uma vez aplicada a fórmula, as questões se repetem.
E todo esse itinerário é importante para lançar luz sobre os acontecimentos…
Sabina: Embora não abríssemos mão da linguagem, com isso de uma pessoa em processo de busca para representar o apagamento histórico, pensamos em todos os públicos, pois queríamos que o filme chegasse ao maior número de pessoas. Sabemos da importância social dele. Quando imaginamos o personagem do Rômulo, era alguém que surgia e desparecia, imergindo e emergindo. Tinha essa onda na minha cabeça. Depois, acabou ficando mais presente, mas originalmente era um condutor. Quando começamos a fazer a pesquisa, nos deparamos com coisas medonhas.
David: O Rômulo costura a história, mas não é um narrador. Nossa preocupação é que ele não narrasse a história dos campos de concentração, mas desse conta da própria afetação diante do que estava vivenciando. Quando ele se encontra com os personagens, essa narração vem à tona. E aí ficamos neste limiar: onde começa o fato e onde termina a ficção? Usamos a expressão “encontro” com base numa ideia do cineasta francês Robert Bresson. Previamente, avisávamos ao Rômulo que ele iria se encontrar com o personagem tal, sem dizer a ele praticamente nada. Fornecíamos apenas alguns indícios, mas deixamos que ele construísse uma estrada própria.
Sabina: Muitas das questões que ele levanta, são dele mesmo. Direcionamos apenas uns 30% das perguntas. O restante veio do próprio Rômulo em performance. Sabíamos que ele tinha de ser pouco dirigido, até para que não se chocar enquanto o ator com o personagem real. Tanto que quis usar seu nome no filme: Rômulo Romeu.
Gostaria que vocês falassem um pouco da contribuição do Petrus Cariry como diretor de fotografia, haja vista que a composição visual do filme é bem mais próxima da ficção do que necessariamente do documentário.
David: Conversamos com o Petrus e ele propôs rodar o filme em scope (tela larga). Achamos ótimo. Geralmente documentário é standart, com câmera na mão ou num tripé na diagonal de alguém sentado dando testemunho. A proposta visual já começava com a janela.
Sabina: A intenção de chamar o Petrus foi porque ele conhece muito o sertão e consegue tornar o espaço também um personagem, basicamente pela forma como fotografa e olha o entorno. Um dos nossos objetivos era justamente que o sertão fosse um personagem.
David: Antes de filmar com as pessoas, visitamos alguns prédios e fizemos decupagem. O local em que cada personagem foi entrevistado não foi à toa. Mas, era importante também estar atento àquilo que os fenômenos apresentavam e encontrar a melhor forma de reagir.
Sabina: O interessante é a experiência do próprio Petrus, que nunca tinha feito um trabalho como esse, tão arriscado em relação ao encontro com o real. Nos filmes dele, tudo é bastante controlado. O instigamos a tentar encontrar a beleza na falta de controle. Ele conseguiu transitar entre controle e não controle, usufruindo desse atrito.
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