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Em agosto, chegou ao Canal Brasil a série Nós (2020), criada por David França Mendes e Rodrigo Ferrari. À primeira vista, estamos diante de uma família tradicional: pai e mãe, casados, morando numa casa confortável, e sustentando os estudos da filha, uma garota prodígio. No entanto, este núcleo está longe de corresponder à estrutura patriarcal comum: tanto a mãe Lúcia (Fábia Mirassos) quanto a filha Manu (Maria Léo Araruna) são travestis. O pai, o renomado psicanalista Romeu (Fernando Eiras) enfrenta seus próprios conflitos de sexualidade e gênero, quando descobre o prazer de se vestir de mulher, escondido da esposa. Outros personagens, transexuais ou gays, entram naquela casa em busca de auxílio psicológico ou jurídico.

O resultado é surpreendente, não apenas pela qualidade do elenco (que também traz os ótimos Gustavo Falcão e Renata Carvalho), mas também pela direção precisa e sensível de Anne Pinheiro Guimarães. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com David França Mendes sobre este projeto nascido há oito anos, quando as imagens de personagens transexuais e travestis eram muito diferentes no audiovisual brasileiro:

 

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David França Mendes

 

Por que decidiu incluir tantas questões sobre orientação sexual e identidade de gênero numa única família?
Quase sempre as séries de televisão trazem apenas um indivíduo LGBT dentro de uma família cisgênero e heterossexual. Mesmo assim, a gente não chegou a esta configuração pela busca do ineditismo, e sim por escolhas de dramaturgia. A ideia original surgiu em 2012, o que parece ser um milênio atrás no que diz respeito a questões de gênero. O texto já era próximo daquele existente hoje, mas não trazia um mergulho tão profundo nas identidades dos personagens. Na época, o Rodrigo Ferrari e eu despertamos a atenção do Canal Brasil, mas demorou muito para conseguirmos o dinheiro. Quando a verba saiu, o panorama já tinha mudado muito. Em 2014 chegou a série Transparent (2014 – 2019), por exemplo. Percebemos que, quanto mais a gente demorasse para fazer, mais haveria o risco de a série estar velha, apesar de ser muito inédita quando foi criada. O outro ponto era o desafio de mergulhar na alteridade, já que a proposta vinha de dois autores cisgênero. O que sempre nos importou mais foi a questão da dramaturgia. Sempre buscamos o lugar onde haveria mais conflitos. Por exemplo, a última personagem criada foi a Dalila (Renata Carvalho), uma cliente transexual da Lúcia, com problemas jurídicos a resolver. Existe uma cena forte entre as duas, quando uma acusa a outra de transfobia, sendo duas mulheres trans. A Dalila foi a última personagem criada, porque percebemos que a ideia seria criar uma série sobre indivíduos que são transexuais, e não uma série sobre a transexualidade.

 

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Maria Léo Araruna, Fábia Mirassos, Fernando Eiras e Danilo Maia. A família de Nós.

 

Esta estrutura seria mais acessível ao público em geral?
Queríamos focar a dramaturgia de modo que pudesse funcionar para qualquer espectador. Todo mundo tem problemas, todo mundo luta pela felicidade. Criamos conflitos passíveis de empatia, passíveis de desenvolvimento, relacionados a sexualidade e gênero ou não, mas envolvendo o máximo possível de personagens trans. No caso, a Lúcia representa basicamente a esposa que sente sua expectativa traída em relação ao marido. As questões de sexualidade relacionadas a ambos são específicas, mas a sensação da esposa decepcionada com o marido se torna muito mais ampla. Muitas mulheres podem se enxergar nisso. Sobre a Manu, ela representa uma das várias mulheres que eu já conheci, vítimas de orientadores abusivos no mestrado. O conflito com o professor abusivo da Manu não é exclusiva de pessoas trans. O filho que não aceita a vida do pai também existe dentro de outras problemáticas. A existência de um núcleo familiar desestruturado por alguma revelação pode corresponder a várias narrativas. O fato novo, descoberto por todos, pode ser positivo ou negativo: uma família pode se desestabilizar porque recebe um dinheiro inesperado, por exemplo.
Eu passei a ler muito sobre o tema, conversar com pessoas trans, e li praticamente todos os livros escritos por autores trans no Brasil. Em dado momento, a gente percebeu que estava muito perto de fazer algo realmente inédito, com uma narrativa 100% trans. Resolvemos dar esse passo e ver o que acontecia. Por isso criamos um cenário meio artificial, meio teatral. Pensamos naquela narrativa como um cubo mágico: muitos lados da questão estão expostos ao mesmo tempo. Queríamos que mesmo a classe média, careta e tradicional, pudesse assistir e se envolver com os dramas dessas pessoas. Eu tinha medo de estimular o preconceito, mas ao mesmo tempo, corria o risco de soar preconceituoso se não existisse uma personagem como a Dalila, uma mulher trans que vive num mundo mais barra pesada, e que sofre violência. As decisões narrativas e de pesquisa conduziram a essa estrutura, essa vontade de fazer algo radical. Houve várias versões do texto. Em determinado momento, pensamos em criar um único narrador, presente em cena, que estaria num futuro onde não haveria mais preconceito de gênero, e ele explicaria a nossa época. Gosto dessa ideia até hoje, mas ela não evoluiu.

 

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Fernando Eiras em Nós

 

A narrativa se passa dentro de uma casa de classe média-alta, com a configuração tradicional pai-mãe-filhos. Considera Nós uma crítica à heteronormatividade?
Não conscientemente, mas acredito que exista isso, sim. A casa nunca foi pensada exatamente como pertencendo à classe média-alta. No entanto, acabou dando esta impressão. Quando você faz audiovisual, é difícil afastar decisões estritamente criativas daquelas de produção. Não é como escrever um romance, por exemplo. Esta série foi concebida inicialmente para dez episódios, mas o dinheiro era pouco, e o Canal Brasil nos sugeriu reduzir para seis episódios. Reduzimos, e mesmo assim o dinheiro foi muito apertado. Por isso, algumas coisas não ficaram muito claras. A história não se passa inteiramente dentro da casa. O espaço onde a Manu faz os programas é um motel. Algumas pessoas perceberam isso, outras, não. Acredito que na sua crítica, você tenha sugerido que isso ocorria dentro da casa da família. Isso não me incomoda nem um pouco, mas esta não era a intenção. Isso veio de uma dificuldade da produção. Ao mesmo tempo, não seria um absurdo que acontecesse assim. Dentro deste mundo teatral, seria possível. A casa não tinha uma ideia de metáfora originalmente. O objetivo não era expor as cenas, apenas tomar cuidado para não fazer besteira com um tema tão passível de ser mal compreendido.

 

Ao mesmo tempo, há várias metáforas explícitas, como a família inteira coberta de plástico, como móveis protegidos da poeira.
Essas cenas eram enxertos poéticos. Elas se encarregavam de trazer certo respiro, já que muitas cenas se passam em espaços internos. Quando já existe certa artificialidade na condução da trama, acho melhor inserir estes símbolos que explicitam e confirmam o tom. É como se a gente dissesse: “Sim, sabemos que é artificial. Não foi um erro, e sim uma escolha”. Queríamos ter evocações poéticas. Ao mesmo tempo, não quisemos esclarecer o que era a casa. Aquele é o espaço onde Romeu, Lúcia e Manu moram, mas também é uma zona segura para pessoas trans, onde podem ter atendimento psicológico e jurídico. Além disso, o Beto utiliza aquele espaço para realizar as fantasias dos clientes. Inicialmente, a gente mostraria outros pacientes do Romeu, clientes da Lúcia e do Beto. Esta lógica talvez ficasse mais clara. Mas se você não mostra isso com a dramaturgia, não dá para colocar uma fala explicando exatamente o que é a casa. Esses personagens têm muito potencial, e poderiam se desenvolver. Tenho medo de uma possível segunda temporada, na verdade. Vejo muitas séries que estragam suas histórias ao fazerem a segunda temporada. Mas está bem contado do jeito que está. Dá vontade de brincar com os personagens de novo, mas aquele final não precisa ser um gancho para a continuação, ele pode apenas ser um final aberto.

 

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Nós

 

Como vê o papel do pai, o único personagem cisgênero entre os protagonistas? Tive o receio de encontrar mais uma estrutura como Transparent, na qual se aborda a transexualidade, contanto que encarnada por um ator cis.
O foco no personagem do Fernando Eiras, durante a divulgação da série, decorre do fato de ser extremamente difícil fazer uma síntese da premissa, em release e sinopse, para uma trama que tem na verdade três protagonistas, talvez quatro. Lúcia e Manu também são protagonistas, mas a gente tinha medo de fazer uma sinopse confusa. Caímos então no caminho mais fácil de comunicar, porque os dilemas das outras personagens seriam mais complexos para apresentar. O personagem do Fernando Eiras integrava a dinâmica do casal, a primeira que criamos na trama. Discutimos muito a ideia do self-hating jew, ou seja, o sujeito que despreza a própria classe à qual pertence. A Lúcia tem muito orgulho de quem ela é, ao limite da arrogância. Ela acha que fez tudo absolutamente certo, inclusive por ter um marido cisgênero. Na verdade, a importância do Romeu se encontra no sentimento que ele produz na Lúcia. Em termos de dramaturgia, o homem cisgênero em crise de transição não é novidade. Já a mulher trans que vê o marido passar por esta fase é algo bem diferente. Lúcia não aceita a princípio: ela apenas acata enquanto pessoa trans, mas o desejo dela não aceita.

 

De que maneira as atrizes transexuais contribuíram no processo de criação e apropriação das personagens trans?
Eu tive pouco contato com as atrizes. Quem realmente lidou com elas foram as diretoras, a Anne e a Gigi. Enquanto a série era filmada, eu estava trabalhando em São Paulo, fazendo a segunda temporada de A Garota da Moto (2016 – 2019). Mesmo assim, o que chegou à tela está bem próximo daquilo que constava no papel, com as pequenas alterações comuns para se adequar à embocadura do elenco. No dia em que fui ao set, e depois, vendo o material bruto durante o processo de edição, acredito que a grande contribuição dos atores trans foi dar o corpo certo aos personagens. As atrizes foram acertadíssimas para esses papéis. Eu nem diria que elas têm o corpo, digo que elas souberam encontrar a atitude corporal adequada às personagens. O orgulho da Lúcia está estampado em cada passo da Fábia. Ela é essa pessoa de grande autoestima, muito segura de seus valores e suas posições. Já a Manu tem uma alegria, frequentemente presa por um nó na garganta. Ela não é infeliz, embora tenha muitos motivos para ser, e cada gesto e fala da Maria Léo transmite isso à perfeição. A explosão da Renata Carvalho é excelente, sem pudores de corpo e de voz. As pessoas me perguntam muito se Nós vem do pronome pessoal, ou dos nós atados entre os familiares, e eu respondo que são as duas coisas. Ainda existe a ideia de nó na garganta: o Romeu tem um nó na garganta, o Paulo também. A única pessoa que não tem esse nó é a Dalila, que abre a boca e berra. Estas atrizes trans têm o corpo e o gesto perfeitos para as personagens.

 

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Maria Léo Araruna e Fernando Eiras em Nós.

 

Como percebe a evolução da representatividade trans no audiovisual brasileiro?
Bom, apenas uma pessoa transexual poderia realmente responder a essa pergunta com propriedade. Algo que eu percebi, e a que fiquei muito atento quando estava fazendo esse projeto, foi o fato de ter uma presença maior de personagens trans. Estamos cansados de estruturas como a de Transparent, do homem cis em processo de transição, e começamos a perceber outras configurações. Há uma diversidade maior de personagens. Outro crescimento, mais recente, diz respeito a pessoas trans em funções criativas. Se eu tivesse conseguido fazer essa série em 2012, provavelmente nem me deixariam escalar atrizes transexuais. Imagino que seriam pessoas cis fazendo esses papéis. Em 2016, isso já era possível. Em 2020, isso é obrigatório. Esta é uma transformação essencial. Em paralelo, há mais pessoas trans por trás das câmeras. Quando criamos a série, eu não conhecia roteiristas trans. Hoje, já conheço várias. O que nos falta ainda é criar oportunidades para artistas trans criarem qualquer coisa que queiram fazer, não necessariamente sobre questões de gênero e sexualidade. Uma pessoa trans pode ter um projeto sobre um casal cis, por exemplo. O que falta é elas terem a possibilidade de viabilizarem seus projetos. Obviamente, pessoas trans poderiam falar sobre isso muito melhor do que eu.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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