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No cinema contemporâneo, ainda é possível fazer filmes que abram mão do diálogo? Segundo Veit Helmer, com certeza absoluta! Esta é a principal proposta narrativa de De Quem É o Sutiã? (2018), dramédia inspirada nos arredores de um subúrbio de Baku, capital do Afeganistão, no qual dezenas de casas foram construídas bem perto da linha do trem, o que faz com que seus moradores utilizem os trilhos como espaço público. Inspirado em tal realidade, o diretor (e roteirista) elaborou uma fábula envolvendo um maquinista obcecado em encontrar a dona do sutiã arrancado do varal pelo trem que comandava. Ou, como Helmer prefere dizer, “sua versão de Cinderela”.

O Papo de Cinema conversou via telefone com o diretor Veit Helmer, no qual destacou as dificuldades enfrentadas ao rodar um filme sonoro, mas sem diálogos. Confira!

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Nurlan, o maquinista em plena jornada para devolver o sutiã perdido

De Quem É o Sutiã? é um filme sem diálogos, mas com vários tipos de sons envolvendo os personagens. O que o atraiu para fazer um filme com tais peculiaridades?
Esta é uma longa história, porque fiz meu primeiro filme, Tuvalu (1999), sem diálogos e, por 20 anos, estive em busca de outra história que pudesse ser contada desta forma. O que gosto em não usar diálogos é que você precisa pensar visualmente em como transmitir ações, o que é um grande desafio em relação ao roteiro. Colocar atores falando é repetir o que é feito na televisão ou em teatro filmado, trazer esta sensação visual é a grande essência do cinema. Além disso, adoro dirigir atores de países diferentes! É difícil encontrar quem tenha interesse neste tipo de atuação, precisei fazer testes com atores de 10 ou 15 países distintos até fazer a escolha certa. Deu trabalho mas foi também um prazer, quando finalmente os encontrei.

O terceiro motivo é a paranoia que todo diretor tem em algo do seu filme ser prejudicado por legendas ou dublagens mal feitas, tive esta experiência com alguns filmes que fiz. Não consigo ter este controle total nem conhecer todas as línguas existentes, então ao fazer um filme sem diálogos consigo que ele seja “traduzido” corretamente em qualquer país.

 

Por ser este um filme sem diálogos, você acredita que seja mais fácil para o público em geral se conectar com a história?
Acredito que não. Para ser realista, sei bem que não estou fazendo um filme de super-heróis que será exibido em multiplexes, mas este filme poderá ser visto em todos os continentes. Sempre há espectadores curiosos em experimentar algo novo, em todos os países, e são estas as pessoas que amam ir ao cinema. Meus filmes não são adequados para a televisão ou Netflix, mas para serem vistos em uma sala escura.

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A ambientação de De Quem É o Sutiã? é bastante interessante, devido à proximidade dos trens às casas e ao uso dos trilhos como espaço público dos moradores. Soube que você teve problemas ao filmar no subúrbio de Baku, que serviu de inspiração a esta história. Quanto do filme se refere ao verdadeiro distrito de Shanghai e quanto foi criado para o filme?
O filme é como se fosse um conto de fadas, mas a situação dos trens passando bem perto das casas era uma realidade, ao menos até um ano atrás. Após as filmagens de De Quem É o Sutiã?, o distrito de Shanghai foi demolido pelo governo local. Este era o cotidiano deles, apenas inseri o garoto que corria pelos trilhos para avisar as pessoas da vinda do trem, ele era a única fantasia ali existente. Entretanto, a população ficou chateada comigo por ter atores gravando em meio aos trilhos, ainda mais com tão pouco espaço existente, mas esta era a proposta cinematográfica. Na vida real um trem ali jamais pegaria um sutiã, a população os odiava tanto que jogava lixo neles.

 

Você tem um vasto elenco neste filme, especialmente em relação às mulheres, de várias nacionalidades. Como foi a seleção das atrizes do filme?
Comecei como qualquer outro diretor, contratando um responsável pela seleção do elenco, que me apresentou as melhores atrizes disponíveis para este tipo de filme. Entretanto, o processo de seleção foi bem diferente, pois geralmente o diretor dá alguns diálogos que serão vistos no filme. No meu caso, como não havia falas, precisava incentivar a improvisação. Havia uma infinidade de variações possíveis! Algumas atrizes ficaram intimidadas, outras bloqueadas e teve as que me encantaram com sua performance. Gosto de dizer que as atrizes me escolheram, e não eu a elas.

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Em relação ao maquinista, pode-se notar que ele é uma pessoa bastante solitária. Como foi conciliar esta característica com um certo tom sensual existente em torno das mulheres despindo um sutiã?
A intenção dele sempre foi apenas encontrar a dona do sutiã, não há nele um lado sedutor, como em Casanova. Acredito que sua personalidade era mais inocente, como um anjo, então nada o assusta realmente. Algumas pessoas que leram o roteiro acharam um tanto quanto assustador ter um homem que percorria as casas vendo as mulheres nuas, mas este filme ressalta que o assustador são as mulheres, por terem deixado de lado fantasias que voltam à tona ao encontrá-lo.

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Jornalista e crítico de cinema. Fundador e editor-chefe do AdoroCinema por 19 anos, integrante da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro), autor de textos nos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros", "Documentário Brasileiro - 100 Filmes Essenciais", "Animação Brasileira - 100 Filmes Essenciais" e "Curta Brasileiro - 100 Filmes Essenciais". Situado em Lisboa, é editor em Portugal do Papo de Cinema.
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