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Na próxima edição do Oscar, o Brasil será representado por um filme “sobre a capacidade transformadora no amor”, nas palavras do diretor Aly Muritiba. Deserto Particular (2021) iniciou sua jornada no prestigioso Festival de Veneza, e após despertar excelentes reações da imprensa internacional e receber o prêmio do público BNL, chega aos cinemas brasileiros no dia 25 de novembro. Leia a nossa crítica.
Na trama, Daniel (Antônio Saboia, de Bacurau, 2019) vive um policial afastado da corporação após um caso de violência. Ele mantém uma relação à distância com Sara, mulher que nunca encontrou pessoalmente, pois mora no interior da Bahia. Quando a moça desaparece, ele fica desesperado e atravessa o Brasil em busca de sua amada. Chegando ao local, descobre mais sobre os próprios sentimentos e sobre a capacidade acolhedora dos afetos. Pedro Fasanaro e Thomás Aquino completam o elenco. O Papo de Cinema conversou com o cineasta a respeito do projeto:

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O diretor Aly Muritiba

Deserto Particular tem uma longa apresentação, e só depois de 30 minutos surge o título na tela. Por que escolheu este formato?
Os créditos entram naquele momento porque a grande viagem de transformação de Daniel, e depois, por consequência, de Robson/Sara começa por ali. Quando eu estava montando o filme, eu o mostrei para algumas pessoas, incluindo o Fernando Gronstein. Ele gostou do filme, ficou muito emocionado, mas me disse que ele deveria começar onde começam os créditos iniciais. Eu respondi que era possível começar dessa maneira, mas se fosse assim, a gente não teria ninguém para desconstruir. Primeiro, eu precisava estabelecer muito bem esse personagem taciturno, engessado, bloqueado, emocionalmente frágil, mas disfarçando essa fragilidade através do relacionamento embrutecido com as pessoas. Se ele não estivesse muito bem construído, eu não teria filme. O filme é justamente sobre a capacidade transformadora do amor. Como vou mostrar que a água é poderosa a ponto de quebrar uma pedra se eu não deixar claro para as pessoas que a pedra é algo quase inquebrantável? Preciso construir a pedra, para só então entregar a água.
Seus projetos costumam girar em torno de homens solitários enfrentando grandes sistemas sobre os quais não têm conhecimento nem ingerência. O que te atrai nestas premissas?
Eu me vejo nesses personagens. Para além disso, esses homens solitários que não têm a dimensão exata das forças que estão enfrentando, mas que precisam enfrentá-las, são personagens dramaturgicamente ricos. Quando você tem personagens quixotescos, como é o Walkiu no meu documentário A Gente (2013), acreditando que pode mudar as coisas, chafurdando e então se dando mal, a própria crença e os esforços em si são muito dramatúrgicos. No caso do Deserto Particular, essas forças são invisíveis, mas são tão opressoras quanto o sistema prisional no documentário. Daniel talvez nem saiba que está lutando contra algo, e que precise lutar, mas está enfrentando o patriarcado, o machismo, a formação heteronormativa e a inabilidade masculina de demonstrar afeto, no caso dos homens heterossexuais.

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Que visão o filme transmite, através do Daniel, sobre esse Brasil conservador, policialesco, herdeiro de militares?
O Daniel pode ser entendido como um produto do seu meio, mas como não tenho esse pensamento determinista, eu faço com que ele, muito embora não consiga mudar o meio, possa se afastar dele para então mudar. Não tenho uma visão idílica de que Daniel ou eu possamos mudar aquele meio conservador, que é o meio policial. Mas acredito que pessoas daquele meio possam mudar. Acredito mesmo, e Daniel é um belo exemplar disso.
Como dirigiu Antônio Saboia e Pedro Fasanaro para essa representação tão intimista do gênero e da sexualidade?
Meu trabalho com atores é muito intuitivo, mas parece que está dando certo, porque as pessoas sempre elogiam os atores dos meus filmes. Eu tenho uma compreensão muito física e intelectual da atuação, mas estou sempre aberto àquilo que os atores trazem e às escolas dramatúrgicas que eles representam. O Saboia vem de uma escola inglesa de dramaturgia. Ele estudou teatro na Inglaterra, e começou a atuar por lá. A escola inglesa de dramaturgia é extremamente técnica e racional. Você não precisa sentir, e sim aparentar sentir. Isso é diferente da escola de Pedro. Ele precisa muito sentir. Não posso tentar impor a Pedro o modo de trabalho que funciona com o Saboia, e vice-versa. Daria errado. Eu sou um afinador de cordas: eu manjo muito dos instrumentos, e talvez até toque melhor do que os músicos, mas a minha função é afinar os instrumentos e dar para eles tocarem. Meu trabalho é identificar quais são as ferramentas que eles têm a oferecer, e manipulá-las para chegar no tom que eu acho adequado aos personagens. Queria muito fazer um filme delicado, tocante. Queria que fosse um filme de amor. Eu dizia, o tempo inteiro: “Estou fazendo um filme de amor”, mas a galera não botava fé. 

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Mas todos os teus filmes têm sido histórias de amor, de certa maneira, não? Às vezes são amores fraternos. Penso em Irmãos Freitas
Exatamente. São amores distintos. Eu fico muito feliz e orgulhoso toda vez que mostro o Deserto Particular porque, nesse caso, consegui em apenas um filme falar do amor romântico se transformando num amor transcendente, um amor pleno. O amor romântico é o amor do apego, do querer para si, querer agarrar. Este é o amor passional do Daniel no começo da história: ele viaja 3000 km, feito um stalker maluco, para encontrar a moça. Esse sujeito que faz a viagem descabida, porque quer a mulher para si e não se conforma com o desaparecimento dela, depois adota uma postura muito diferente, de amor pleno. Nos outros filmes, eu estava falando, como era o caso de Para Minha Amada Morta (2015), de amor romântico. Para Irmãos Freitas (2019), era amor fraternal. Sempre foi amor, mas em formas diferentes de amor.
Considera Deserto Particular um filme LGBTQIA+? Por que este fator tem sido ocultado da campanha de divulgação?
Ele também é um filme queer, LGBTQIA+. Acima de tudo, é um filme de amor. Também pode ser encarado um road movie – é um filme multifacetado. Mas é principalmente um filme de encontros, de afeto e de amor. Ele não começa como um filme LGBTQIA+, mas vai se contaminando por esse universo à medida que Daniel chega na Bahia e se aproxima de Robson/Sara. É importante para mim que o espectador vivencie a mesma experiência que Daniel. É importante que ele comece a história acreditando que está vendo apenas a história de um cara apaixonado para uma mulher. Quando Daniel percebe que ela é muito mais do que uma mulher, o espectador também o percebe. Quando ele olha para ela na chegada da boate, ao som de Odair José, e sorri igual a um cachorro babão de paixão, o espectador também pode sorrir. Eu queria esse encantamento na mesma medida para o espectador.
Não posso usar o elemento queer na divulgação para não atrapalhar essa experiência. Mas falando de comércio mesmo, se eu vendesse esse filme como um filme queer, eu afastaria 70% do público potencial dele. Eu pregaria para convertidos, e não quero pregar apenas para convertidos. Faça um exercício: imagine um velhinho conservador de São Paulo que assiste por acaso ao trailer de Deserto Particular em outra sessão e pensa “Vai ser bacana ver esse filme de amor”. Ele convida a sua velhinha conservadora para ver o filme, dizendo: “Vamos ver um filme de amor”. Eles vão. Quando termina a sessão, eles estão com os olhos marejados, porque de fato viram um filme de amor. Então talvez o velhinho perceba que não interessa se é cis, trans, gay, lésbica: é um filme de amor, e os olhos dele ficaram marejados. Ele tenta disfarçar, porque não quer chorar na frente da mulher dele. Eu fico fazendo esse exercício mental, e espero muito que isso aconteça!

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Como concebeu esteticamente esse Brasil profundo, interiorano e melancólico?
Eu queria muito mostrar o quão diverso é o nosso país, representado por essas geografias muito distintas: uma capital no sul do Brasil, e uma cidade interiorana no coração nordestino. Para mim, tem uma questão de espacialidade e de geografia que é um pressuposto do filme: isso contagia os corpos e a maneira como se apresentam. Há uma premissa determinista no filme, que não acredito na vida, mas apliquei ao filme porque me parecia coerente. O espaço onde você habita, cresce e se forma, determina boa parte do seu comportamento físico e da sua psique. Se você vive num lugar úmido, chuvoso, cinza e frio – esse é o pressuposto do filme, e vivo isso na pele em Curitiba -, você tende a ser mais tenso. Você sempre tem muitas camadas de roupa, ou seja, seu corpo carrega peso. Seus ombros estão portando blusas pesadas, e quando sentimos frio, os músculos se contraem para conter calor.
Esse é o contrário de Sobradinho: com esse calor  absurdo nossos músculos se dilatam e ficam lânguidos, porque se eu fizer um movimento intenso, já começo a suar. Por isso o gesto é mais leve, mais lento. Em Curitiba, o gesto é estacado. Conversando com o diretor de fotografia e com os diretores de arte, eu expliquei isso pra eles, e disse que isso precisaria estar na imagem, nos corpos, nos figurinos. Queria languidez, suor, pele, fluido, pó e poro no Nordeste. Queria camadas e mais camadas de roupa, umidade, frio e tons de cinza no sul do Brasil. A partir dessa pré-concepção especial da geografia do Brasil, a gente concebeu essas imagens.

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O que o eventual reconhecimento no Oscar representaria para você?
Muitos dólares! Aí vão me contratar para fazer filme na gringa! Não, brincadeira. Vou ser muito honesto contigo: a indicação brasileira me deixou muito honrado, muito feliz, e para mim, já está cumprida essa cota, de verdade. Ser um diretor baiano, fazendo um filme no Paraná, que consegue representar o Brasil neste momento tão conflagrado, com um filme de amor, e tendo toda essa visibilidade por causa da história do Oscar, é demais! Agora muita gente fala do filme, quer ver o filme. Se dia 21 de dezembro sair a shortlist com os 15 filmes que vão para a próxima fase, e o meu filme estiver lá, eu vou comemorar para caramba, porque esse é um feito. Faz muitos anos que a gente não está lá, e isso vai significar mais gente interessada em ver o filme. Vou beber um vinho e comemorar. Se o nome do meu filme não estiver lá, vou beber o vinho do mesmo jeito! Vou lamentar – porque vinho a gente bebe em qualquer circunstância -, mas o lamento vai durar um dia. No dia seguinte, já vou estar preparando o meu Natal.
Quero muito que a pré-indicação aconteça com esse filme, nesse momento histórico, pelo simbolismo que isso tem. Imagina um filme de amor e de afetos, um filme queer brasileiro, indicado ao Oscar, ou – vamos sonhar, por quê não? – ganhando o Oscar, no país sob Bolsonaro? Seria orgástico. Mas não vou ficar alimentando essas esperanças, nem me iludir. Agora a questão não é mais a qualidade do filme, mas a capacidade dele de fazer campanha. É sobre dólares. Estamos fazendo campanha com os recursos que temos, estamos batalhando para ele ser visto nos Estados Unidos. O boca a boca está ótimo, e já estamos na shortlist da Variety. Acredito que possamos mesmo estar na shortlist, mas se não estivermos, tudo bem. Se der certo, continuamos a campanha; se for indicado, compro um smoking e vou para lá! Mas não vou cometer os erros dos meus predecessores: não vou ser inocente. A maior validação que posso ter do filme vem da sala de cinema, com as pessoas emocionadas, cantando Total Eclipse of the Heart no final da sessão. Eu vejo as pessoas levantando e cantando: “Turn around / Every now and then…”. Isso é incrível!

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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