Nascida em Porto Alegre, Flavia Castro precisou deixar o país aos cinco anos de idade, quando seus pais foram exilados pelo regime militar. Nos anos seguintes passou pelo Chile, Argentina, Bélgica e França, voltando ao Brasil somente em 1979, quando tinha 14 anos. Acabou retornando para a Europa, onde foi estudar a trabalhar como roteirista e assistente de direção. Foi lá onde deu início a seu primeiro projeto como realizadora, o documentário Diário de uma Busca (2010), premiado nos festivais de Gramado e de Havana, entre outros, além de ter sido indicado ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e de ter ganho o Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro como a melhor produção do gênero daquele ano (superando concorrentes como As Canções, de Eduardo Coutinho, e Lixo Extraordinário, indicado ao Oscar). Quase uma década se passou, e agora ela volta às telas, novamente como estreante, agora no campo da ficção, com o drama Deslembro, que teve première mundial no Festival de Veneza e, após ser premiado nos festivais do Rio e de Biarritz, entra finalmente em circuito comercial. Em comum, os dois projetos falam das suas origens. E para saber um pouco mais, conversamos com a diretora em um bate-papo inédito e exclusivo. Confira!
Você começou trabalhando com documentário, e agora está lançando um longa de ficção. Como foram as duas experiências e em qual você se sentiu mais à vontade?
Pra mim, os filmes nascem de uma necessidade quase vital. Afinal, é tão difícil fazer cinema, ainda mais no Brasil. Não me sinto uma diretora no sentido clássico, daquelas que nascem pensando nisso e fazem de tudo para alcançar. Comigo, essa vontade é sempre consequência de querer fazer certos filmes, anseios bem específicos. Foi assim com o Diário de uma Busca, e o Deslembro meio que nasce desse primeiro longa. Isso fica até meio óbvio para quem o assiste. Ele vem da necessidade de trabalhar certas questões, já vistas no Diário de uma Busca, porém de uma outra maneira, mais livre e mais lúdica. A aposta foi na memória. Extrapolando um pouco a questão do exílio e a minha própria história pessoal, a experiência do longa anterior me proporcionou ouvir tantas pessoas diferentes sobre os mesmos acontecimentos, às vezes de uma única família, que me fez pensar muito sobre como é que a gente lembra das coisas. O que é lembrar, afinal? O Deslembro nasce nessa necessidade. Comecei a escrever o roteiro ainda durante a montagem do Diário de uma Busca.
Isso quer dizer que, sob determinado aspecto, Diário de uma Busca não foi suficiente para você?
Ele foi absolutamente suficiente para contar a minha história. Mas, em termos de cinema, me deu vontade de explorar, entre outras coisas, a representação da memória. O que seria um flashback, até porque não sabemos se é um flashback de fato, pois não se tem certeza se é real ou não. Como eu, Flavia, faria tal representação? Com isso em mente, comecei a criar desafios para mim mesma.
Você acha que, daqui pra frente, vai voltar para o documentário ou irá permanecer no âmbito da ficção?
Acho que gosto de coisas complicadas (risos). Meu próximo filme, para você ter uma ideia, é um híbrido. Não sei, ainda, no que irá se tornar, majoritariamente falando. É um documentário, mas que absorve uma ficção. Há um texto que inventei para inserir nesse contexto. Por isso, não sei ainda o que vai ser. Domino melhor as ferramentas do documentário, como diretora conheço mais, tenho mais experiência. Em relação à ficção, só havia experimentado no âmbito da escrita. Mas, como você havia me perguntado antes, ‘qual dos dois é mais confortável?’, não saberia responder. Ambos me dão frio na barriga e um pânico.
Quais são as tuas referências? Ou você diria que o teu cinema é absolutamente pessoal?
Com certeza é muito pessoal, mas tenho referências, claro. Adoro o Miguel Gomes, por exemplo. O Tabu (2012) é incrível, mas ele tem outro ainda melhor, um média chamado Redenção (Redemption, 2013). É um filme que parece ser documentário, mas quando terminamos de assistir percebemos que não é bem assim. É lindo, feito com imagens de arquivos. As minhas referências, no entanto, nunca são necessariamente coladas naquilo que estou fazendo. Foi muito importante para o Deslembro, ainda que de modo bastante subjetivo, o David Perlov, em sua relação com as filhas, o jeito como as filma. É um documentarista israelense, à princípio nada a ver, mas ao tirar fotos dos fotogramas dele e me confrontar com o jeito que ele filmava, a espontaneidade que havia nessa relação que consegue estabelecer com a câmera, ele e as meninas, é algo que adoro. Em um outro lugar, porém mais formal, tem o Antonioni, com o Zabriskie Point (1970), principalmente uma reunião política que tem no início. A relação das cores que estabelece em O Deserto Vermelho (1964) também foi importante – tem, inclusive, uma homenagem explícita no meu filme, em uma parede com três cores. Ninguém ainda falou disso (risos), mas tá lá. É muito variado.
Vocês filmaram o início de Deslembro em Paris. Como foi lidar com uma coprodução internacional?
Na verdade, o Diário de uma Busca era uma produção francesa, que só depois entraram parceiros brasileiros. O projeto começou com uma produtora francesa, a Les Films du Poisson, que é de uma amiga minha. Com o Deslembro, eles ficaram como produtores associados pelo simples fato de que não conseguimos levantar dinheiro na França. Ele foi todo feito com investimento brasileiro. Porém, contamos com vários apoios internacionais, já tínhamos essas portas abertas. Havia uma relação firme com eles. Mesmo assim, só filmamos os exteriores lá. As cenas internas foram todas feitas no Rio de Janeiro. Filmamos apenas dois dias em Paris. Assim como ocorreu com o Diário de uma Busca, essas filmagens foram feitas no final, quase um mês depois de ter terminado a parte principal no Brasil.
E lidar com um set onde se falavam duas e até três línguas diferentes?
Isso estava no roteiro porque está também na minha vida. Durante toda a minha existência, se falou duas ou mais línguas na minha casa. Meus filhos nasceram na França e o pai deles é francês. Depois viemos para o Brasil, acabei me separando, mas eles estudaram a vida inteira em um liceu. Sempre foi muito natural. Quando estava escrevendo Deslembro, fui atrás de crianças que também viviam essa situação em casa, buscando essa naturalidade. Também não é anódino que tenha escrito Deslembro quando meus filhos eram pequenos. Comecei ao perceber aquele movimento lá em casa, com a minha filha, sobretudo, que tinha 14 anos na época. Ou seja, estamos falando de inspiração, e a própria vida, no nosso cotidiano, também impregnou essa vivência que está no filme.
Você falou na sua filha e o quanto, de certa forma, ela foi uma inspiração. Não chegou a pensar nela para ser a protagonista?
Lá no início pensei, sim. Afinal, ela já tinha protagonizado um curta de ficção que fiz, além de ter participado muito da construção do roteiro. Foi super crítica, leu e releu milhares de vezes. Só que cresceu, e me passou totalmente. Agora, pensando melhor, acho que teria sido complicado, já é muita pressão lidar com meu primeiro filme de ficção, e ainda ter que encarar essa de ser com a tua própria filha, não sei se seria tranquilo. Mas posso dizer que ela participou muito de todo o processo.
Como foi a escolha da jovem Jeanne Boudier para viver a protagonista deDeslembro?
Vi muitas meninas daquele perfil. Foram dezenas, umas quarenta ou cinquenta garotas, do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Todas bilíngues. O que posso dizer é que a Jeanne me encantou no primeiro teste. A vi também na escola, na aula de teatro. Só que ela era muito jovem, foi um ano antes das filmagens. Apesar de querer que fosse ela, havia uma resistência. Como seria lidar com essas questões que o filme traz, sendo tão nova? Mas o que me encantou, na verdade, é que foi a primeira que me fez parar de ter uma Joana imaginária, aquela que havia concebido desde o princípio, e me fez pensar numa outra possibilidade. Do tipo: “ela pode ser uma Joana, mas a Joana dela”. Tanto que não tenho a sensação de tê-la dirigido. “A Joana é tua, agora você faz o que quiser com ela”, sabe? Teve um encontro muito profundo de confiança mútua e de entrega, dela com o personagem, mas meu também. Tive uma sorte extraordinária disso ter sido correspondido dessa forma. Outro detalhe foi a relação dela com a literatura. No vídeo que me mandaram, pedia que lessem um trecho de um poema do Fernando Pessoa e uma passagem do diário de Anne Frank, que fala da relação dela com a mãe. E na gravação dela, falava do livro e como gostava dele. Foi o jeito dela, com o olhinho brilhando, que me fez ter certeza.
A Joana tem duas mulheres muito fortes em sua vida, a mãe e a avó. Como você via essas relações?
Quando as escrevi, foi muito intuitivamente, sem pensar. Mas agora, pra mim, é bastante claro que a mãe não tem ainda condições de falar sobre o passado. E também por não ter respostas a muitas dessas questões. Ela simplesmente não consegue. Por outro lado, queria uma avó que fosse, ao mesmo tempo, uma mãe de um desaparecido político que continuasse a buscá-lo, que seguisse na luta, mas que tivesse também na vida. Ela não parou de viver com o desaparecimento do filho. É uma mulher alegre, que se diverte, ouve Pink Ployd. É um personagem, não uma representação. Acho que a Joana se move entre as duas de um modo muito interessante. Quando escolhi a Jeanne, pensava muito em construir essa hereditariedade, que pra mim era importante. Foi quando me veio a Eliane Giardini, que tem uns olhos incríveis, além de ser uma atriz maravilhosa. Ela tinha um ar de família que me era interessante.
O Jesuíta Barbosa aparece nos créditos, ouvimos a voz dele, mas ninguém o vê. Por que usá-lo dessa forma no filme?
Eu queria os olhos do Jesuíta. Ao pensar nele, me veio: “é um homem jovem, com uma força singular, e com um olhar especial”. A figura dele, no filme, é toda fragmentada. No roteiro, e até chegamos a filmar, havia uma cena em que ela, finalmente, via o pai. Ele se revelava de tal forma que era possível vê-lo de corpo inteiro. Mas, ao longo do processo, mudei de ideia. Me dei conta que não deveríamos ver esse pai, pois ele desapareceu. Então, continua fragmentado, mas aparecem os olhos, que são incríveis. Ele se tornou um fantasma no filme. Como o personagem é para a Joana.
Como foi lidar com a Jeanne Boudier, sendo ela uma atriz tão jovem, visto que a personagem lida com questões fortes, como o uso de drogas e o sexo?
Chamamos a Amanda Gabriel para fazer a preparação do elenco. Na verdade, não fez tanto com a família, mas com a Jeanne fez um trabalho que ficou muito legal. Ela chegou a ir até à casa dela para lerem juntas o roteiro. Com isso, conseguiram vislumbrar outras compreensões para aquele texto. Estou supondo, mas se houvesse algo que intimidasse um pouco a Jeanne, lhe foi possível imaginar que era apenas uma história. Mesmo sabendo que tudo era ficção, com isso percebeu que as partes mais leves da experiência eram minhas. Na primeira vez em que nos encontramos, perguntei de forma bem direta: “no filme tem sexo, você não vai ter cenas de nu frontal, mas terá que ficar com um menino na cama. Tudo bem?”. Foi assim, na lata. Falei da maconha também. E foi super tranquila: “tudo bem”, me disse. Depois, fomos vendo que não era tão simples assim. Mas quis fazer o filme, sabia que teriam esses desafios, e juntos conseguimos lidar com eles. Afinal, eram dificuldades para nós duas. A partir do momento em que foi escolhida, também me vi tendo que ir na medida do possível, dentro do que ela propunha. Jamais a obrigaria a fazer algo que não quisesse, ou não se sentisse à vontade.
A primeira exibição do Deslembro foi no Festival de Veneza, e depois foram acumulando prêmios no Brasil e no exterior. Como você tem acompanhado essa recepção?
Veneza foi extraordinário. Até porque é uma coisa meio que fora do mundo, lá tudo é incrível. Imagina, uma sala de 1.400 pessoas completamente lotada, todos para verem o seu filme. Tem um lado meio cafona (risos), pois é tudo exagerado. Foi apavorante, num primeiro momento, mas as reações foram as melhores possíveis. Depois viajamos bastante, por toda a Europa, e tem sido um acolhimento muito caloroso. No entanto, o que tem marcado a trajetória do filme é o momento em que está estreando, principalmente em relação ao Brasil. A primeira exibição aqui foi na Mostra de São Paulo, no ano passado, entre os dois turnos da campanha política, e no Festival do Rio depois, quando já tínhamos o resultado da eleição. Foi muito perturbador. Agora que estou me acostumando com a ideia de como ele se inscreve nesse presente, do tema que trata, e também como um trabalho de memória. Nesse momento tão violento que estamos atravessando, ele entra nesse lugar. Essas viagens todas passei falando do Brasil. Os debates acabavam sempre chegando nesse lugar. “Como isso foi acontecer? Como vocês estão?”. É o que todos querem saber.
Você acha que o filme, hoje, é mais urgente do que quando foi concebido?
Acho que sim. É difícil essa pergunta, pois já achava que antes não falávamos o suficiente a respeito desse tema, quando comecei a escrever. Já era uma questão que me preocupava. Tem um marco que foi o impeachment da Dilma Rousseff, com o Bolsonaro dedicando aquilo ao General Ustra. Ali se rompe uma coisa. Milhares de pessoas aplaudindo aquilo. Acho que ainda estamos vivendo sob o impacto disso, e é muito difícil dizer coisas inteligentes e analisadas a fundo. Mas espero que sirva como reação. Fazer um trabalho de memória, seja ela qual for, no Brasil, é uma forma de reagir a esse estupor, a esse horror que estamos vendo e sofrendo.
(Entrevista feita ao vivo em Porto Alegre em junho de 2019)
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