Direto de Escópia, capital da Macedônia, a diretora Teona Strugar Mitevska conversou com o Papo de Cinema sobre o seu mais recente filme, o drama inspirado em um episódio real Deus é Mulher e seu Nome é Petúnia. A conversa se deu via Skype, em vídeo, e foi possível vê-la muito satisfeita com toda a repercussão do seu trabalho, que estreou no início do ano no Festival de Berlim – de onde saiu com dois troféus – e, desde então, já colecionou mais de uma dezena de reconhecimentos por todo o mundo. Atualmente morando na Bélgica, ela está no seu país de origem para as festas de final de ano, e se revela feliz por estas duas semanas de descanso. “Nunca imaginei que um filme tão pequeno pudesse se comunicar com tanta gente”, confessa espantada. Conhecedora do Brasil e do cinema brasileiro – já esteve duas vezes por aqui e se demonstra entusiasmada com a produção nacional, ao mesmo tempo em que confessa sua preocupação com os rumos políticos do país – acredita que seu filme também poderá encontrar ressonância entre o público verde e amarelo: “somos muito parecidos, de um modo ou de outro”. Confira a seguir nosso bate-papo inédito e exclusivo!
Olá, Teona. Bom, para começar, além de dirigir, você também é autora do roteiro de Deus é Mulher e Seu Nome é Petúnia. Como lhe veio a inspiração para essa história?
Sim, sou a diretora, mas é importante que fique claro que sou co-roteirista. Ou seja, não escrevi o roteiro sozinha. Tive ajuda da minha colega Elma Tataragic, que é uma profissional incrível, com outros filmes de sucesso no currículo (Cicatrizes, 2019, por exemplo). Este foi o segundo roteiro que escrevemos juntas.
E qual de vocês duas decidiu que essa era uma boa história para um filme?
Bom, como é baseado em um episódio real, nós duas sabíamos do ocorrido. Cinco anos atrás, em uma pequena cidade no norte da Macedônia, uma mulher pulou no rio em busca da cruz, e conseguiu pegá-la antes que qualquer um dos homens. Esse evento se tornou conhecido em todo o país, e lemos a respeito nos jornais. Aliás, foi a minha irmã a primeira a saber do ocorrido, e foi quem veio comentar comigo. Essa mulher havia pulado atrás da cruz e, assim como mostramos no filme, ela também se recusou a devolvê-la.
Vocês sabem quais foram os motivos que a levaram a tal atitude?
A explicação dela era muito simples: “eu pulei no rio, nadei até a cruz e consegui agarrá-la porque fui mais rápida do que todos os homens”. Só que, até então, as mulheres não tinham esse direito de ir atrás da cruz. Porém, o que mais nos surpreendeu, foi como a mídia, aqui na Macedônia, apesar de ter noticiado o fato, deu-lhe pouca importância, e dias depois ninguém mais falava a respeito. A tratavam simplesmente como “aquela mulher louca que pulou atrás da cruz”. E fazendo graça, como se fosse uma piada.
Desde esse momento você pensou que poderia fazer um filme a respeito?
Era algo que estava crescendo dentro de mim. Pois o que mais me surpreendeu foi como ninguém dava atenção ao episódio. Nem mesmo entre o movimento feminista na Macedônia, todos trataram de vê-la como uma maluca, sem nem ao menos falar com ela. Não houve uma só pessoa que dissesse “hein, tem algo aí, por quê será que ela fez isso, o que estava querendo?”. Não houve conversa a respeito. Porém, quando li aquela primeira notícia, me identifiquei de imediato com essa mulher, com a posição em que as mulheres são colocadas nas Balcãs. E não só aqui, mas com as mulheres de muitos outros lugares ao redor do mundo. Esse pulo, para mim, representava tudo o que havia de errado com as mulheres dessas regiões e uma tentativa de corrigir um erro histórico. Além do incômodo gerado por ver que a sociedade não estava reagindo de uma maneira reflexiva a respeito. No fundo, foi isso que me motivou, essa esperança de que o filme, enfim, levantasse a questão e desse início a esse debate.
Vocês fizeram alguma pesquisa? Chegaram a falar com essa mulher?
Não chegamos a fazer nenhuma pesquisa mais detalhada. Afinal, é uma obra de ficção, e não um documentário. No entanto, filmamos na mesma cidade onde ela morava. Mas foi impossível entrar em contato. E isso porque a vida dela, após esse episódio, se tornou muito difícil. Basicamente, era insultada nas ruas. Foi impossível, para ela, continuar morando lá. Se estivéssemos na Idade Média, as pessoas teriam atirado pedras nela. A única solução foi conseguir um passaporte e se mudar para a Inglaterra, que é onde mora atualmente. Mesmo assim, falamos com a Igreja, chegamos até a enviar o roteiro, pois nossa intenção era estabelecer uma parceria colaborativa. Mas uma semana após termos feito essa aproximação, nos responderam dizendo que nem haviam lido o roteiro, apenas o título, e que aquilo não tinha nada a ver com eles. A resposta oficial foi: “obrigado pelo seu interesse, mas isso não nos diz respeito, pois Deus existe, e ele é um homem”.
Não havia na imprensa nenhuma entrevista mais detalhada com essa mulher?
Não. A única coisa que disse foi: “espero que mais mulheres pulem no rio nos próximos anos em busca da cruz”. Isso foi tudo que foi possível ouvir dela. E agora ela mora em Londres, e é impossível entrar em contato, pois sua identidade permanece em segredo. Acredito que essa tenha sido uma experiência muito traumática para ela.
O seu filme é muito provocador. Como foi debater o papel das mulheres e da religião na Macedônia de hoje?
Como disse antes, filmamos na mesma cidade onde esse episódio ocorreu. Quando chegamos lá, todos tentaram nos desencorajar. “Mas por quê você quer fazer um filme sobre essa mulher maluca? Tudo o que ela conseguiu foi nos criar problemas”, é o que me diziam. Ela havia virado um tabu, “a mulher maluca”, e ninguém queria falar a respeito. No entanto, fomos conquistando confiança aos poucos, e, no final das filmagens, de um jeito ou de outro mais da metade da cidade estava envolvida com a produção. Trabalhando diretamente conosco ou como contatos, servidores ou qualquer outra posição que nos fosse necessária. Apenas a nossa presença e interesse pela história deu início a uma mudança. Ao menos nas atitudes daquelas pessoas.
Essa mulher permanece um caso isolado?
Nós filmamos quase três anos atrás. No ano passado, uma outra mulher pulou no rio, naquela mesma cidade. Isso é um indício para explicar essa epifania, algo que estava acontecendo em relação à religião ortodoxa. Neste ano, mais uma mulher pulou, e dessa vez ela também conseguiu pegar a cruz. Só que agora, deixaram que ficasse com ela, sem que isso gerasse um problema. Isso nunca havia acontecido antes.
Esse ritual segue sendo praticado até os dias de hoje?
Isso é algo que ficou mais forte com o fim da Iugoslávia. Existe por toda a parte aqui na Macedônia. Com a guerra, o nacionalismo se tornou muito importante, e a religião ganhou mais força. Em toda cidade ou vila que possua um rio, córrego ou qualquer tipo de água corrente natural, esse ritual é praticado. É muito importante nessa região, por toda a Europa Oriental. No mundo ortodoxo, se tornou uma coisa importante. É também uma forma de demonstrar poder, de adquirir relevância.
Como é para você, enquanto mulher, exercitar a sua arte e profissão num país tão conservador e religioso?
Nós não fazemos parte da comunidade europeia, você sabe. Mas é algo que se tenta há muito tempo, e há um certo tipo de pressão para que ocorram certas reformas e modernizações no país. Além disso, nos últimos tempos tem ocorrido muitas mudanças na indústria cinematográfica nacional. Quando comecei a fazer filmes, 17 anos atrás, era outra história. Hoje em dia, está completamente diferente. Comparado como era lá atrás, estamos num verdadeiro paraíso. Duas décadas atrás, eu era vista como uma alienígena.
Zorica Nusheva, que interpreta Petúnia, a protagonista, tem uma atuação arrebatadora. Como você a descobriu e como foi trabalhar com ela?
Ela trabalha muito no teatro. E o mais curioso: geralmente, faz papeis cômicos. Então, fazer drama era algo novo. Tanto que, quando a chamei para o elenco, era para o papel da amiga da Petúnia. Mas às vezes a intuição funciona, é algo inexplicável que acontece, e acho que foi a decisão certa colocá-la como protagonista. Trabalhamos juntos, antes das filmagens, por oito meses. Primeiro definindo todos os nomes do elenco, depois ensaiando – só essa última parte levou três meses, sem parar, para preparar cada papel. Adoro trabalhar com os atores.
O papel da Petúnia exigiu algum cuidado diferenciado?
No caso da Petúnia, isso realmente era necessário, pois ela está em todos os frames do filme. Era preciso ter muito cuidado ao decidir como externar os sentimentos que estavam se passando dentro dela. Ela passa por muitos estados emocionais, mas não queria nada exagerado. Buscava algo realista, natural. Então, primeiro trabalhamos a personagem, e depois fomos nos aprofundando nos detalhes. Porque eram essas pequenas coisas a verdadeira alma do filme. Esta no coração da Petúnia. Ou seja, era um trabalho pesado, e ela encarou de frente. Para você ter uma ideia, durante as filmagens a segunda filha dela tinha apenas um ano e meio. Antes, durante os ensaios, ainda estava amamentando. O nível de comprometimento dela foi impressionante.
Deus é Mulher e Seu Nome é Petúnia estreou no Festival de Berlim, e já foi premiado. Como foi acompanhar toda a repercussão que o filme obteve internacionalmente?
Foi muito cansativo (risos). Estou feliz por esse descanso de final de ano, você nem imagina. Mas não estou reclamando. Quando ouvi essa história pela primeira vez, me tocou num nível muito pessoal. Mas não esperava que o mesmo fosse acontecer com tantas pessoas ao redor do mundo. É muito raro isso acontecer com um filme tão pequeno. Estamos falando de uma produção da Macedônia – quem conhece o cinema daqui? O último filme da Macedônia que viajou o mundo foi há 27 anos! Estou me referindo ao Antes da Chuva (1994), que foi indicado ao Oscar. Foi muito gratificante ter feito uma história com a qual tanta gente conseguiu se relacionar.
Qual a sua explicação para todo esse sucesso?
Passei muito tempo me perguntando sobre os motivos de toda essa conexão. Seria por causa do ponto de vista feminino? Seria pela abordagem religiosa? Até que ficou simples: temos uma personagem à frente da ação, e tudo que acontece com ela se passa diante de nós. Nos identificamos porque passamos pelo processo com ela. E tudo isso se dá por causa de uma injustiça. Petúnia está atrás de justiça. E essa é uma questão que diz respeito a todos nós. Os seres humanos se preocupam com amor, igualdade e justiça. Isso é tudo. Não somos muito complicados, afinal.
O filme já estreou na Macedônia. Como tem sido a reação no país?
As duas primeiras críticas publicadas sobre o filme, na Macedônia, foram escritas por mulheres. Uma delas escreveu: “Teona nunca mais deve fazer um filme na vida” (risos). E a outra disse: “Teona está insultando o trabalho dos jornalistas”. Isso por causa da personagem jornalista, que aparece em cena. Falamos o tempo todo sobre essa cultura do macho, sobre o patriarcado, sobre as mulheres sendo vítimas, mas isso não diz respeito apenas às mulheres, sabe? Também é assunto dos homens. Eles fazem parte do sistema. São homens que buscam se definir de uma maneira diferente. O mesmo se passa com tantas mulheres que seguem se questionando, enquanto alimentam esse patriarcado.
Mas estas duas foram exceções ou refletiram um consenso?
Não. Aos poucos, começaram a surgir críticas positivas. E isso se refletiu nas bilheterias também, tanto que, com o passar das semanas, o filme acabou tendo um ótimo resultado. Nada surpreendente, que fique claro, mas foi ok. Não é um filme fácil, eu sei. Mas para o público da Macedônia era importante poder se ver, e até mesmo refletir sobre nós mesmos. Tanto que até no interior as pessoas pediam para o filme ser exibido. Universidades, escolas, passamos em todos os lugares. Os jovens, principalmente, são muito abertos, e pegaram o que queríamos discutir. O debate feminista foi muito forte entre eles. Mergulharam na história, queriam saber mais a respeito, e discutiam o que precisa ser feito para seguirmos adiante. Há esperança no futuro.
Com certeza não é um filme fácil, mas é necessário. Bom, mudando de assunto: você já esteve no Brasil?
Sim. Duas vezes, na verdade. E em ambas ocasiões, com filmes que estava lançando. A primeira vez estive em São Paulo, com o curta-metragem Veta (2001). E a segunda, se não me engano, estive no Rio de Janeiro com o longa I Am From Titov Veles (2007). Acho que foi com esse filme, mas não tenho certeza. Foram viagens incríveis.
E sobre o cinema brasileiro, o que você conhece?
Ah, muito pouco, infelizmente. Lembro de ter visto, nesse ano, Bacurau (2019). Ideologicamente, é muito interessante o que os diretores fizeram. Admiro muito os esforços deles.
Como você imagina que será a reação dos brasileiros diante de Deus é Mulher e Seu Nome é Petúnia?
Não tenho a menor ideia. Pelo que sei, o país de vocês tem passado por um período bem conturbado, não é mesmo? Politicamente falando, eu digo. Vou te contar uma história. Três dias atrás, alguém em mandou um artigo que foi publicado em Calcutá, na Índia. Petúnia havia recém sido exibido em um festival por lá. A matéria relatava que a plateia reagia aos gritos durante a sessão, torcendo pela Petúnia. E isso porque, dois anos antes, a alta corte do país havia aprovado uma lei que dizia que as mulheres, finalmente, poderiam entrar em certos templos budistas. E duas mulheres, quando entraram em um desses lugares, que até então lhes eram proibidos, geraram motins em suas comunidades, as pessoas foram às ruas protestar contra elas. Elas foram processadas, uma delas foi expulsa de casa, etc. Então, para eles, Petúnia era uma personagem muito fácil de se identificar. Afinal, passaram por uma situação muito similar. A exibição do filme parecia como uma partida de futebol, e o público era a torcida.
Se for falar em futebol, certamente será mais fácil para os brasileiros.
Exato. Algo como Brasil x Alemanha, entende o que quero dizer? Da mesma forma, acho que os brasileiros estão enfrentando debates similares. Então, talvez seja fácil para o público daí se identificar com essa história. Qualquer reação que provocar, já será positiva. Todas as reações são boas, é por isso que fazemos filmes. É para isso que o cinema existe. Os brasileiros são um povo muito apaixonado. Assim como nós, nas Balcãs. Acho que a gente consegue se entender, em algum nível.
(Entrevista feita por telefone em dezembro de 2019)
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