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O primeiro longa-metragem é um passo importante para qualquer cineasta. E o inaugural de André Félix está próximo a chegar às telonas, isso depois de passar por diversos eventos, tais como Festival Internacional do Uruguai, Olhar de Cinema, Pirenópolis Doc, forumdoc.bh, Festival de Cinema de Vitória e Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul. Diante dos Meus Olhos (2018) é um documentário sobre a extinta banda capixaba Os Mamíferos, cuja história é praticamente desconhecida. Os remanescentes não são encarados pelo cineasta como simples fornecedores de informações, a fim de criar um painel suficientemente claro. Eles são tidos mais no presente, com seus corpos envelhecidos e condicionados por rotinas não tão glamorosas, do que necessariamente pelo passado. Ou seria o passado um conviva constante exatamente pelos rumos que as vidas deles tomaram? O Papo de Cinema conversou por telefone com André Félix sobre Diante dos Meus Olhos. O resultado você confere agora:

 

André, qual é a bronca principal para fazer o primeiro longa-metragem?
Ao entrar no projeto, vimos que a história seria mais bem contada num longa-metragem, ainda que tivéssemos ganhado um edital de curta. Eu tinha feito um curta antes, de relativo sucesso, que rodou bem pelos festivais de cinema. Queria realizar logo um longa para quebrar a pressão, para não incorrer naquilo de ter uma vasta carreira de curtas antes do longa. A maior dificuldade foi o aprendizado no processo, especialmente pela pouca grana.

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Como você tomou contato com essa história de Os Mamíferos?
Foi em dois momentos. Em 2010, me encontrei com o o Francisco Grijó, que escreveu o livro Os Mamíferos: Crônica Biográfica de uma Banda Insular. Ele tinha sido meu professor. O Francisco comentou que estava escrevendo sobre a contracultura capixaba dos anos 70 e citou Os Mamíferos. Coincidentemente, em 2013 o Murilo Abreu, filho de um deles, e produtor do filme, me convidou para dirigir. Uma vez aceito o desafio, entrei de cabeça na pesquisa, fui atrás de imagens de arquivo. E o filme começou a nascer dessa forma, inclusive diante da escassez de arquivos.

 

Desde o começo você queria refutar os personagens como meras testemunhas, também priorizando o presente, especialmente algo condicionado pelo fracasso da banda?
Olha, tem isso da escassez, mas também um pensamento sobre a melhor forma de apresentar a banda pela primeira vez. Aceitamos que o filme teria menos arquivo, poucas informações visuais e sonoras, inclusive no sentido de apresentar a banda. Os três estouraram jovens, mas na primeira vez que aparecem na telona eles surgem velhos. Achei interessante desse jeito para refletir sobre memória. É um filme que trata de uma contação mais oral. Curioso, pois eles não lançaram disco e isso foi determinante. Atualmente a mídia física não faz mais tanto sentido.

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O corpo desses personagens é muito importante no filme. Eles chegaram a oferecer qualquer resistência à ideia de serem apresentados a partir dessa perspectiva no filme?
Fizemos uma pré-entrevista com cada um. Nisso descobrimos um pouco como o filme seria. Existia uma resistência deles quanto a falar sobre esse passado, pois eles tiveram outras bandas, tocaram em tantos lugares, caíram mais para o jazz. Esse ontem era doloroso. Apenas fomos perceber o quanto ao chegar no set. A resistência que eles tiveram, e apenas inicial, foi revisitar o passado em que o sonho não foi realizado. Foi difícil para os três aceitarem a falar por causa disso. Mas, com a progressão do filme, e a rodagem foi mais ou menos em ordem cronológica, eles acabaram se abrindo e confessando coisas. A gente pode ver que era uma história de amor com muito a queimar dentro deles. Particularmente, acho esta a grande força do filme: não é uma história acabada, ou que eles falam de um lugar de maestria e/ou sabedoria. Sinto que estão vivendo ainda essa história. Isso me parece fazer sentido.

 

Talvez o filme não atenda ao anseio de quem deseja saber mais sobre Os Mamíferos, por não ser informativo e ilustrativo. Parece-te essencial o documentário se libertar dessas amarras?
O filme não é um documentário musical. Embora assim seja em determinados momentos, escolho outros caminhos. Como temos uma crise, maior que os êxitos, foi interessante pegar esse trajeto. Me interessava menos ter um talking head, mencionar glórias ou restituições, e mais entender como a história reverbera no corpo e no cotidiano deles. Certas informações não batiam, havia discrepâncias de detalhes e datas. Até que ponto aquilo eram esquecimentos? Ou revelar a cronologia seria trazer à tona algo doloroso? Fui catalisando essas dificuldades em forma de sensação.

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Seria muito fácil incorrer num saudosismo, dadas as circunstâncias. Esse sentimento foi refutado, ainda que parcialmente, já no conceito ou na interação com os personagens?
O saudosismo não era uma opção. Ou, talvez, fosse uma opção menos interessante. O filme evoca o passado, mas se detém principalmente o presente. É menos sobre que foi, mais acerca de como esses homens envelhecidos lidam com a própria história. Os sonhos não envelhecem, mas as pessoas sim. A vida se encarrega de ajeitar os sonhos nos corpos. O filme é sobre presente, como conviver com os sonhos de forma ininterrupta.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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