Chega aos cinemas nesta quinta-feira o grande vencedor do prêmio César de melhor animação francesa: Dilili em Paris (2018), dirigida por Michel Ocelot. O veterano da animação, responsável por Príncipes e Princesas (2000) e Kirikou e os Animais Selvagens (2005) trabalha em estilo de desenho manual, com cores fortes e traços lúdicos muito distintos dos blockbusters norte-americanos.
Com Dilili em Paris, ele traz a história de uma garotinha da Nova Caledônia que vive em Paris, fazendo apresentações de sua cultura à burguesia local. Quando descobre uma onda de sequestros de meninas, ela se une ao amigo francês Orel e pede ajuda aos maiores artistas e cientistas da Belle Époque para solucionar o crime. Dilili conta com dicas importantes de Renoir, Monet, Santos Dumont, Pierre e Marie Curie, Toulouse-Lautrec, Debussy, Erik Satie, Emma Calvé, Sarah Bernhardt e muitos outros.
O Papo de Cinema conversou em exclusividade com o cineasta sobre o belo projeto:
A primeira imagem de Dilili se encontra num meio selvagem. Só então descobrimos que se trata de uma encenação em Paris. Por que decidiu começar com esta mudança de ponto de vista?
Eu gosto muito de surpreender o espectador. Queria dar a impressão de que eles se encontram nas matas da Nova Caledônia, mas na verdade não, eles estão no meio de Paris. Houve uma moda de vilarejos reconstituídos, durante cerca de vinte anos, por toda a Europa, e mesmo no Japão. O espetáculo consistia em trazer pessoas de locais distantes e recriar um modo de vida estrangeiro com exatidão. As pessoas ficavam muito curiosas com esta ficção – isso ocorria pouco antes da invenção do cinema, afinal. Com a chegada dos documentários, veio uma forma de representação muito mais autêntica, então esses espetáculos caíram em desuso. Mas as recriações aconteciam com frequência, muitas vezes sem respeito pelos povos retratados. Eram shows itinerantes, que percorriam diversas cidades da Europa.
O filme traz diversos artistas e cientistas como personagens. Como decidiu o que poderia ser ficção, e o que precisaria corresponder aos fatos históricos relacionados a essas pessoas?
Eu sempre quero falar da realidade. Por um lado, existe uma realidade atroz, sobre homens que maltratam mulheres e garotinhas. Isso é mais grave do que as guerras, porque mata ainda mais pessoas. Por outro lado, era preciso destacar os homens bons, que contribuem à sociedade e não fazem mal a ninguém. Queria mostrar uma sociedade de convivência equilibrada entre homens e mulheres. Tudo isso é verdadeiro: existem homens que exploram mulheres, e outros que se comportam bem, sendo capaz de criar obras, fazer descobertas e oferecer algo valioso à coletividade. Existem sociedades que vivem bem juntas. Os prédios belos existem de fato, eu os fotografei porque queria mostrar a realidade. O mal é uma verdade, mas o bem é verdadeiro também. Valorizemos o bem.
Para as crianças, esta pode ser um primeiro contato lúdico com tantas figuras históricas importantes.
Sim. O fato é que não concebo meus filmes apenas para as crianças, é claro: falo de questões que me interessam atualmente. Eu pretendo alcançar a todos. Esta forma um pouco didática serve também aos adultos, para lembrá-los da existência de pessoas que fazem seus trabalhos muito bem. Esta era uma época surpreendente, uma cidade com grandes talentos reunidos. Tudo isso foi verdade, e estas pessoas continuam a nos influenciar, mesmo hoje. Elas ainda voam sobre nós como Santos Dumont. Nós ainda vemos as belas pinturas dos impressionistas e de Toulouse-Lautrec, ainda escutamos a música de Debussy e Satie, ainda fazemos pesquisas científicas baseadas nas descobertas do passado. A História é sempre muito atual, e acredito que isso possa interessar tanto adultos quanto crianças. Para as crianças, era importante combinar duas coisas em Dilili em Paris: por um lado, existe uma investigação policial para descobrir quem está sequestrando garotinhas, mas por outro lado, trazemos uma aventura pelas profissões que elas podem vir a escolher. Para mim, isso é muito importante. A mensagem para as crianças é essa: escolham a profissão que lhes agrade mais. Eu, pelo menos, fiz isso na minha vida.
Para a escolha do elenco, você buscou vozes que se parecessem com as pessoas originais? Era uma grande responsabilidade encontrar uma cantora para interpretar Emma Calvé, por exemplo.
Desde o começo, eu queria incorporar a ópera porque se trata de uma arte imensa. Cinematograficamente, era algo que me interessava muito. Não sou um grande conhecedor de ópera, nem um amante fanático desta música, mas enquanto cineasta, queria mostrar a Ópera de Paris, além de uma cantora com autoridade e uma voz excepcional. Eu tive a sorte de poder contar com uma excelente soprano, Natalie Dessay, para fazer a voz de Emma Calvé e interpretar as partes da ópera. A propósito, fico pensando como será a versão dublada em português brasileiro. Certamente vão encontrar vozes locais para os diálogos, mas imagino que na hora do canto, mantenham a voz de Dessay. Como se trata de um filme para toda a família, sou muito favorável às cópias dubladas.
Por que decidiu combinar os cenários bastante realistas de Paris com os traços mais lúdicos dos personagens?
Eu faço os desenhos desta maneira porque é assim que sei fazê-los. É mais fácil, mais leve, o que me permite propor algumas loucuras na construção, alguns formatos e ideias que não se faria normalmente. Quanto aos cenários, eu tinha a ideia de mostrar que a realidade é bela. São belas paisagens que existem de fato, baseadas nas minhas fotografias. Elas existem até hoje, e eu precisava mostrar que a realidade é bela, não se trata apenas de um desejo dos maus poetas. É assim. A escolha da foto me veio naturalmente, mas também existe o fato de que eu jamais poderia reconstruir aqueles cenários no desenho! Quando os personagens atravessam a Ópera, da sacada até a parte central, passando pelo salão dourado, eu sei que jamais poderia recriar algo parecido com a pintura. A realidade era muito mais interessante do que qualquer coisa que eu poderia oferecer. Os objetos que eu mostro são lindos, são Art Nouveau e provêm de Luís XVI. Estas obras de artes excepcionais nos mostram que não somos mais tão ousados hoje como já fomos no passado.
Como criou a seita dos Mestres do Mal? Trata-se de uma parte bastante sombria da história.
Eu os criei como símbolos. Nada do tipo jamais aconteceu em Paris. Eu os concebi para simbolizarem todo o mal que cometemos pelo mundo inteiro. Seitas existem, e grupos similares podem existir, mas nada com essa especificidade ocorreu em Paris. Tudo isso foi inventado. Os dois heróis foram uma invenção para transmitir uma mensagem. Para criar as imagens dos Mestres do Mal, eu me baseei em fotografias de parisienses da época que caminhavam pelas avenidas. Eu apenas escureci as camisas brancas deles, mas o modelo é o mesmo. Eu certamente criei alguns vilões com aparência horrível, mas de modo geral, esta é uma panorâmica sobre os transeuntes e policiais da época. Mas é verdade que, para construir os homens que perseguem garotinhas, eu realmente desenhei umas caras horríveis! É normal, não é?
Embora se trate de temas universais, as relações entre homens e mulheres mudaram muito em cem anos, desde o tempo da narrativa até hoje. Como acredita que essa discussão se conecte com o século XXI?
Hoje, a posição das mulheres está muito mais estabelecida. Elas possuem acesso a todas as profissões, o que certamente corresponde a um progresso. No entanto, ainda são cargos pouco seguros, raros. Por isso eu abordei a primeira cientista mulher de destaque, a primeira cantora mulher a ditar os rumos de sua carreira… Existe um retorno de ideias conservadoras que pretendem restringir a liberdade e autonomia da mulher. Isso está cada vez mais presente em todos os lugares, então sempre precisamos desconfiar após cada nova conquista social. O que eu mostro no filme é que as garotas precisam estar sempre alertas.
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