Nascido em São Paulo, Ghilherme Lobo é filho de uma família numerosa – são seis irmãos – com forte veia artística – o pai é músico, e a mãe, cantora. Seus primeiros passos foram como dançarino, e chegou a se apresentar até mesmo em Nova Iorque! Como ator ele se aventurou logo depois, em uma montagem do musical A Bela e a Fera, em 2002. Esse provavelmente seria o seu caminho, entre a dança e os palcos, caso não tivesse sido convidado pelo diretor Daniel Ribeiro para interpretar um adolescente cego que se apaixona por um colega de classe no curta Eu Não Quero Voltar Sozinho (2010). Por esse desempenho, foi premiado em diversos festivais, como o Mix Brasil e o Curtamazônia. Quando o mesmo projeto foi adaptado ao formato longa-metragem, no aclamado Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), voltou aos holofotes – a estreia foi no Festival de Berlim, ele foi reconhecido como o Ator Revelação do ano no Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro e o filme foi o representante brasileiro no Oscar 2015. Depois de um tempo envolvido com trabalhos na televisão, no teatro e também no cinema, está novamente no centro das atenções como o protagonista de Divaldo: O Mensageiro da Paz, cinebiografia do médium reconhecido no Brasil e no exterior. E foi sobre essa sua mais recente performance que conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Olá, Ghilherme. Você vive o médium Divaldo Franco na maior parte do filme. Como foi o seu preparo para esse personagem?
A gente teve, aproximadamente, um mês e meio de preparação. Esse processo foi todo no Rio de Janeiro, antes de irmos para a Bahia. Essa responsabilidade, de que seria o intérprete com o maior tempo em cena como o Divaldo, foi muito presente para mim, principalmente no início do filme, quando ele era muito jovem e ainda não tão conhecido. Carrego uma história do Divaldo, nestas passagens, que muita gente nunca teve acesso. Esse trecho da juventude dele é desconhecido da maior parte do público.
Justamente por ser um Divaldo que pouca gente conheceu, isso lhe permitiu uma maior liberdade na interpretação?
A primeira vez que fui ler o roteiro do filme com o Clovis, nosso diretor, era uma cena lá do meio do filme. Eu havia me preparado, tinha visto muitos vídeos e palestras do Divaldo, e estava buscando esse tom que é tão característico dele hoje. Acontece que não era isso o que o diretor queria, era justamente o oposto. Tive que buscar o frescor e as incertezas daquele rapaz. A Maria Silvia, nossa preparadora de elenco, me ajudou muito nesse processo. Para não cair num sotaque forçado, num desempenho caricatural do que seria desse baiano – até porque, afinal, sou de São Paulo.
Você chegou a conhecer o Divaldo Franco antes das filmagens?
Sim, nos encontramos uma vez, logo no começo do projeto. Fomos até Salvador, na casa dele. Lembro de estar muito nervoso. Estava, fisicamente, muito diferente do que estaria no filme, cabeludo, barbudo. O meu visual era outro, por causa de uma peça que estava fazendo na época. Isso me deixou preocupado, pois temia que ele não me aprovasse. Afinal, vem de uma outra área, poderia não estar acostumado com as transformações que um ator pode enfrentar num set de filmagens, e seria natural se não conseguisse me ver como alguém capaz de interpretá-lo. Se a imaginação dele não fosse generosa o suficiente para enxergar essas possibilidades, seria o meu fim.
Como foi esse encontro?
Aconteceu que tudo que eu temia logo foi por terra, pois assim que apertamos as mãos, senti um calor emanando dele. Fez elogios, comentou até sobre a minha altura, o que foi engraçado. Ouvimos várias histórias que contou. Foi muito receptivo. Com tudo isso, fiquei seguro que seria possível ir adiante e enfrentar esse desafio. Quero dizer, não que estivesse intimidado por ele, mas levemente preocupado. Uma coisa é dar vida a um personagem fictício, ou alguém que já existiu, e outra bem diferente é recriar na ficção alguém que existe e está bem ali ao seu lado. Era essa responsabilidade me preocupava. Felizmente, ela foi logo embora, e antes que percebesse já estava super à vontade.
Qual a sua relação com o espiritismo? Chegou a ter alguma experiência mediúnica durante a realização do filme?
Olha, não posso afirmar que já vivenciei algo semelhante, em primeira pessoa, não. Tenho uma relação próxima com a religião, mas não me considero uma pessoa espírita. E isso devido a uma questão do que aprendi justamente durante a realização desse filme. É, também, um reflexo da própria experiência que o Divaldo teve. Você pode até ter o dom – e não estou dizendo que seja o meu caso, veja bem – mas, acima de tudo, é necessário muito estudo e dedicação. Tem que se aprofundar na doutrina e fazer dessa uma jornada de vida. Por isso, por respeito aos verdadeiros espíritas, não me considero um. Pratico, acredito, mas é algo pessoal, muito íntimo, de mim comigo mesmo. Por exemplo, sei tocar piano, até me arrisco a compor, mas não posso me considerar um pianista. É a mesma coisa.
O que o seu personagem tem do Divaldo e o que ele tem de único do Ghilherme?
Gostei dessa pergunta. É curioso pensar nisso. Do Divaldo, creio que peguei algumas características visuais dele. Como a minha formação é artística, pois venho do balé clássico, sou acostumado com o estudo do movimento. Isso me ajudou bastante, pois desde o começo, o que fazia era observá-lo. O João Brava e o Bruno Garcia, que interpretam o Divaldo em momentos diferentes da história, também tinham essa preocupação. Era importante termos elementos em comum entre nós três. Muito do gestual dele, como ele caminha e como para, como repousa. Tentamos buscar essa fidelidade.
Era um trabalho de reprodução, basicamente?
Mais do que isso. Pois não podia ser, simplesmente, uma cópia. Era inspirado nele, mas através do meu olhar. Quem o acompanha no dia a dia, perceberia na hora se tivesse feito um movimento pouco estudado, ou se me portasse apenas como o Ghilherme acha que deveria ser feito. Por outro lado, pude perceber que os conflitos dele, quando jovem, e os de agora, não são muito diferentes. A diferença é que hoje em dia tudo é mais rápido, e isso por causa da tecnologia. Mas esse momento da vida dele, em que estava se questionando sobre seu lugar, da missão dele no mundo, e a relação com o trabalho e a vocação, a descoberta de um propósito de vida, também passei por essas mesmas dúvidas. Até mesmo o que fazer com a minha carreira? Como e para onde continuar? Isso foi o que pude levar do Ghilherme.
Como foram as filmagens? Vocês chegaram a visitar os lugares frequentados por Divaldo? Como foi essa logística?
A maior parte das cenas foram feitas em locação, nos lugares reais. Isso foi muito especial. Enfrentamos uma dificuldade em Salvador, ou mesmo em Feira de Santana, porque as partes externas dos edifícios eram bem conservadas, mas as internas não eram mais as mesmas. Por causa disso, muita do que gravamos nos interiores foi feito no estado de São Paulo, em Santos e em Santana do Parnaíba. Em Salvador, portanto, pegamos tudo o que nos foi possível dos exteriores. É sempre emocionante, afinal. Mas isso é na hora de chegar na locação, naquele primeiro contato, pois depois, quando vamos, de fato, fazer a cena, você está tão preocupado com os gestos, com o que irá dizer e com o desenvolvimento da história, que essa importância geográfica nem chega a passar pela cabeça. Tem tanta coisa acontecendo, afinal, que este é um detalhe que guardamos para os bastidores.
Alguma dessas passagens foi particularmente mais difícil?
Ah, algumas delas, com certeza. Por exemplo, aquela ao lado do Elevador Lacerda, quando penso em me jogar. Puxa, naquele momento só estava preocupado em não cair ali de cima (risos)! Tinha uma estrutura de segurança especial para aquele dia, não havia risco real, mas você sempre fica preocupado, não é mesmo? Ainda mais para mim, pois era a minha primeira vez em Salvador, e tudo era muito fresco, tinha aquela sensação de novidade. No meio disso tudo, saber que o que estávamos fazendo não era pura ficção, mas um trecho da vida dele, tinha um peso muito forte. Foi preciso organizar nossos pensamentos. Não apenas por ser um lugar novo e lindo, como é Salvador, mas também por todas essas memórias, que estavam na preparação, na caracterização do personagem. Cada vez que pensava na cena, batia o texto com um colega, você ia entrando, se apropriando daquele universo.
O seu trabalho de maior destaque até então fora um drama LGBT premiado no Festival de Berlim. Como esta experiência contribuiu nesse mergulho na vida de Divaldo Franco?
Olha, posso dizer que o Hoje Eu Quero Voltar Sozinho foi muito especial e me possibilitou outros trabalhos que, de outra forma, nunca teriam chegado até mim. Me deu experiência de vida. Só depois de ir para televisão é que comecei a fazer teatro. Tudo o que esse filme me possibilitou me fez crescer como ator. Quando cheguei no Divaldo, já estava mais maduro. Minha relação com o universo cinematográfico era outra.
Como foi o trabalho com o diretor Clovis Mello?
O que tenho de vida, o Clovis tem o dobro de câmera. Tivemos uma sinergia muito boa. Ele é um cara muito experiente, e, de certa forma, também compartilho uma longa jornada, por mais jovem que eu seja. Afinal, desde os 7 anos trabalho com a arte, primeiro com a dança, e isso, querendo ou não, ajudou a formar o ator que sou hoje. Possibilitou a postura profissional que carrego. Não sou deslumbrado, algo que até poderia se esperar de alguém que fez um filme que fez tanto sucesso, como foi o caso do Hoje Eu Quero Voltar Sozinho. Por isso, me senti seguro pra passar para o diretor o que achava de cada cena. Houve muita troca. Dúvidas eram sempre debatidas. Questionei muito. Conversei bastante. Acho que esse trabalho em conjunto funcionou para a obra. Ele se sentiu à vontade para me dirigir, não na hierarquia diretor-ator, mas como dois profissionais da arte trocando ideias sobre o que iriamos realizar juntos.
O cinema religioso tem ganhado cada vez mais força no Brasil. O que Divaldo: O Mensageiro da Paz tem a acrescentar ao gênero?
Primeiro, me preocupa esse crescimento a partir de agora, ainda mais após as declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre a Ancine, sobre esse olhar evangélico que ele busca, conservador. Se filmes assim forem feitos não por causa de uma demanda, mas por uma imposição feita de maneira não natural, vai ser problemático. Agora, se for consequência de uma necessidade do público, assim como foi com o Nosso Lar (2010), ou recentemente com o Kardec (2019), acho legal, pois é representatividade. Se tem alguma coisa que aprendi com o Hoje Eu Quero Voltar Sozinho é a importância disso. Se vem para acrescentar coisas boas e positivas, é bom. Só é prejudicial quando for uma peça publicitária, vazia, apenas para promover uma única forma de pensar.
(Entrevista feita por telefone na conexão Porto Alegre / São Paulo em setembro de 2019)
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