Gabriel Mascaro é frequentemente citado como um dos melhores cineastas brasileiros da contemporaneidade. Seus dois longas-metragens mais recentes, Boi Neon (2015) e Divino Amor (2019), tiveram palcos privilegiados no exterior, o que aponta à sua consideração internacional. O primeiro estreou no Festival de Veneza e passou pelo Festival de Toronto antes de desembarcar por aqui. O segundo, que chega nesta semana aos cinemas brasileiros, teve sua première no Festival de Sundance. A estilização visual e a ousadia, prevalentes em Boi Neon, estão a serviço de uma distopia evangélica em Divino Amor, produção protagonizada por Dira Paes. Conversamos com Gabriel Mascaro por telefone para saber um pouco mais das motivações basilares do filme, bem como das particularidades dessa obra que, concomitantemente, confirma o talento do cineasta e nos coloca diante de facetas possíveis desse Brasil conservador e guiado por doutrinas religiosas. Confira este Papo de Cinema exclusivo com Gabriel Mascaro.
Como surgiu a ideia de Divino Amor, especificamente a ambiência distópica, com isso da ascensão do evangelismo e do controle estatal? Lembrei-me de uma cena de Branco Sai, Preto Fica, quando uma personagem fala da dominação da vanguarda cristã no futuro….
Então, no Boi Neon há uma pesquisa profunda sobre corpo e transformação de espaços. Queria fazer um filme acerca da relação entre corpo e Estado. Partindo disso, é praticamente natural a aproximação da tradição da ficção científica. Mas, para mim, importava também o desafio que isso representava. Em grande parte das distopias, há um protagonista que reconhece o cenário e luta contra o Estado opressor, encarnando bem essa coisa do herói. Meu desejo era fazer o inverso, ou seja, a Joana (personagem da Dira Paes) quer ainda mais religião, ela não se incomoda como a configuração das coisas, pelo contrário. Ao invés de fazer algo calcado no fetiche tecnológico, quis pensar em tudo a partir da mudança de um paradigma cultural, como explicitado naquilo da rave eletrônica gospel.
No filme há uma convivência entre sagrado e profano, aliás, melhor dizendo, uma ressignificação de determinadas condutas e signos apropriados pela doutrina. É uma operação muito parecida com o início do cristianismo e a apropriação de ícones…
Essa chave que você oferece é muito curiosa. Eu queria fazer a leitura de algo tão complexo que é capaz de se apropriar de várias coisas, tais como a rave, a estética disco e as terapias sexuais, a fim de radicalizar um projeto que fé sustentado por uma agenda conservadora. Os evangélicos do filme se apropriam de coisas que atualmente são consideradas indevidas e até pecaminosas. A protagonista lê a distopia como utopia, gerando uma chave inversa.
A trilha sonora é muito importante em Divino Amor. Como se deu esse processo de criação?
Essa foi a parte mais gostosa de todo o processo (risos). A maioria das letras são de minha autoria. A música é um elemento muito importante, especialmente para delinear melhor esse evangelismo pop. Era essencial que a musica quebrasse essa ideia de que os cultos evangélicos são sem graça. Ao contrario, pois eles são bastante sedutores.
Seus trabalhos são visualmente bastante elaborados. Como é sua colaboração com o Diego Garcia, o diretor de fotografia?
Foi uma parceria massa, tivemos momentos bem especiais de criação, inclusive com o Thales Junqueira, do departamento de arte. Diego é um cara muito talentoso, tanto que tem uma trajetória repleta de grandes trabalhos. Depois do Divino Amor, foi convidado para fazer aquela série do Nicolas Winding Refn, Muito Velho para Morrer Jovem (2019). Mas essa parte da colaboração é difícil de explicar, de racionalizar. É uma troca constante. A religião evangélica negou a tradição da arte sacra, não tem objetos de adoração, não tem santos. É um cubo branco, calcado na retórica e na experiência entre fiel e pastor. Nesse sentido, tínhamos um desafio. Foi gostoso pintar esse mundo. Imaginar a relevância dos elementos como luz, fumaça e sons. Abstraímos a matéria para criar um filme sensorial.
O filme teve sua première mundial no Festival de Sundance e já teve algumas sessões aqui no Brasil. Há uma diferença entre as recepções estrangeiras e brasileiras?
Minha alegria é que, apesar de ser muito sobre o Brasil, o filme felizmente tem conquistado outros públicos. Chegamos a cerca de 30 festivais internacionais. O drama dessa mulher que tem fé e deseja uma família completa, especialmente a fim de pertencer a um grupo que valoriza tudo isso, é universal. Ela sonha, tem desejos, pede um sinal de Deus, e esse sinal em algum momento chega, porém bem maior do que o esperado. O filme tem questões humanas e pulsantes e, acredito, elas conseguem comunicar. Abordamos uma agenda populista, conservadora e cristã, partes de realidades que assolam boa parte do mundo. Além disso, o Brasil se transformou na vitrine do mundo, está no radar. Viramos um exemplo do que os países não querem se tornar.
Como você enquadraria Divino Amor dentro da nossa produção cinematográfica contemporânea?
Eita bronca da bexiga! (risos). Deixo a missão para o pessoal do Papo de Cinema, que tem mais tarimba do que eu para isso (risos). O filme tem uma herança, sem dúvida. Pesquisei pornochanchada, filmes japoneses específicos, enfim, toda arte que pensou o corpo como subversão, como transgressão, que vislumbrou o Estado controlando os corpos. Dentro dessa leitura muito particular, há um acúmulo de experiências. Há quatro anos, quando comecei a trabalhar nele, sequer imaginava que uma figura como Jair Bolsonaro fosse eleito presidente da república. O Brasil muda constantemente. E que bom que fizemos um filme vivo, pulsante.
(Entrevista concedida por telefone, numa ponte Recife/Rio de Janeiro, em junho de 2019)
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