João Miller Guerra e Filipa Reis moram e trabalham juntos em Lisboa, Portugal. Ela é formada em Gestão, com pós em Cinema e Televisão. Ele é licenciado em Design de Equipamentos e estudou Pintura e Artes Plásticas. Em atividade há mais de dez anos, já exibiram seus filmes – e foram premiados – em festivais como o IndieLisboa, MiradasDoc, Fantasporto, DocLisboa, Cinéma du Réel, DokLeipzig, Bordocs, Janela Internacional de Recife, Dok.Fest, Molodist, Parnu e mutos outros. Em 2008 fundaram a Vende-se Filme, focada em atividades na televisão, e desenvolvem projetos para o cinema através da Uma Pedra no Sapato. Após uma longa filmografia dedicada aos documentários, estreiam agora no âmbito da ficção com Djon África, uma coprodução com a Desvia, do brasileiro Gabriel Mascaro. Exibido na sessão de abertura do 7o Olhar de Cinema – Festival Internacional de Cinema de Curitiba, a dupla de diretores veio ao Brasil para acompanhar a sessão. Aproveitando a passagem dos dois por aqui, o Papo de Cinema teve uma conversa inédita e exclusiva com eles sobre o filme que está sendo lançado agora, em cinemas de todo o país, através da Sessão Vitrine Petrobras. Confira!
Por que Djon Africa? De onde surgiu esse nome para ser o título do filme?
João Miller Guerra: Nós conhecemos o Miguel Moreira, nosso protagonista, há mais de dez anos. Ele tem esse costume de arrumar alter egos para si mesmo. O nome de batismo dele é Miguel. Os amigos de escola, por ser um cara grande, o apelidaram de Tibúrcio. Como não gostava, acabou sendo abreviado e ficou apenas Búrcio. Mesmo assim, seguia deixando claro que não apreciava o apelido, e se auto-intitulou Tibars. Todo mundo o conhece assim, agora. Um dia, no entanto, e não sei por quê, ele surgiu se apresentando como John Tibars. Quando fez seu primeiro cadastro na internet, colocou Johnny Africa. Tempos depois, adotou John Tibars Mustafá. Ao voltar para a escola, dizia que se havia sido um bom aluno, ele era o Olavo. Quando precisava se arrumar, seja para ir a um casamento, ou aniversário, se apresentava como Johnny Blaze (por causa do blazer que usava). Ele também é um dos Noventas, a banda que criou como músico, rapper (todos dessa mesma turma nasceram nos anos 1990). No filme, portanto, decidimos usar o nome completo: John Tibars África Noventa, que é reduzido para apenas Djon África.
Filipa Reis: E isso aconteceu de verdade, aparece no filme como ficção, mas é assim mesmo que ele se apresenta na vida real. Djon África é um nome que remete, também, à situação política na qual está envolvido, e a gente quis aproveitar esse duplo sentido.
Acaba que ficou um nome bem emblemático…
JMG: Tem uma outra história envolvendo esse nome, ainda. Nos Estados Unidos, na cidade de Chicago, teve um cara que se chamava John África. Foi um dos líderes do movimento de libertação negra chamado MOVE. Um cara muito influente, que acabou tendo um fim bastante triste. Uma das tantas coisas incríveis que fez foi organizar uma casa de abrigo, que era constantemente assediada, a polícia várias vezes tentou fechá-la. Ele fazia apologia a uma política de libertação dos corpos, havia muita gente nua, muita promiscuidade, era algo complicado, que incomodava muita gente. Tinha um discurso muito forte de contestação, sempre com um viés político.
Djon Africa, de alguma forma, ecoou junto aos seguidores desse grupo? Vocês chegaram a exibi-lo nos Estados Unidos?
JMG: Não exatamente, pois acredito que o grupo nem exista mais. Mas exibimos, sim, nos Estados Unidos, em São Francisco e em Nova Iorque. Curiosamente, no entanto, nas nossas passagens por lá, ninguém chegou a fazer essa conexão. Acabou passando em branco. Mas a relação foi proposital, pois quando o Pedro Pinho (A Fábrica de Nada, 2017) escreveu o roteiro, aproveitando que o Miguel tinha muitos nomes, tinha o apelido de John Tibars e usava o e-mail de Johnny Africa, nós fizemos essa ligação, para que o nome do filme fosse Djon África. É engraçado, também, que durante muito tempo era John África, como no inglês. Só mudamos quando fomos filmar em Cabo Verde e percebemos que lá a palavra “John”, que é o nosso “João”, é escrita como “Djon”, com D. Assim que nasceu o nome do filme. Afinal, é um cara que sai de Portugal como John, mas regressa de Cabo Verde transformado em Djon.
Djon África é um documentário ou uma ficção? Como vocês o definem?
FR: Nós chamamos ficção. No entanto, não estamos muito preocupados com essa distinção. É um filme, e ponto. A ideia foi partir da história real do Miguel – não que ele, em algum momento, tenha decidido largar tudo e ir atrás desse pai – e aproveitar essa vontade que ele sempre teve de ir até Cabo Verde.
JMG: Todos eles, que moram em Portugal, falam dessa vontade de regressar à África. É uma herança cultural gigante.
No filme há um episódio do protagonista estar caminhando na rua e alguém o parar porque o acha muito parecido com esse pai que nunca conheceu.
FR: E isso foi verdade. Aconteceu mesmo. Foi ele que nos contou essa história, e decidimos incorporar ao roteiro. Ele havia ficado abismado de algo assim lhe ter acontecido, mas, o que percebemos, é que não é raro entre eles. Ao aproveitarmos, decidimos que seria nessa coincidência que iria nascer o filme. Afinal, todo mundo sempre lhe disse que era parecido com o pai. Os avós, os amigos. Agora, uma pessoa desconhecida o parar e falar o mesmo que ele havia escutado a vida toda? Era algo que não poderia ser ignorado.
O que mais da vida real dele foi inserido como parte do personagem?
FR: Também foi verdade aquele episódio dele ter ido até a prisão com um amigo do pai para tentar conhecê-lo, e este ter se sentido mal e acabar que os dois não se encontram, pois logo em seguida o pai é deportado para Cabo Verde. Nós partimos desses momentos reais para conceber o roteiro. Agora, a aventura que ele viveu por lá, aquilo foi tudo idealizado, veio da nossa escrita. Tudo ficção.
Este não é o primeiro de vocês dois juntos. Como se dá a divisão de tarefas nessa parceria?
JMG: A gente faz tudo em conjunto, mas diria que cada um presta atenção em coisas diferentes. É assim que costumamos responder a esse tipo de pergunta, ao menos (risos). A Filipa não tem uma função específica e eu outra antes do filme. Quando começamos as filmagens, também não fazemos diferenciação entre quem faz o que. Assim como na montagem, fazemos tudo junto. Mas, é claro, há atenções e formas de olhar e sentir as coisas que são diferentes entre nós. Filipa, por exemplo, se preocupa mais com questões da produção – até por também ser produtora – enquanto que eu sou mais de dar opinião apenas quando consultado. Durante as filmagens, por exemplo, geralmente que fico à procura de imagens fora dos quadros que estamos fazendo, para ir sugerindo ao diretor de fotografia que faça esses registros diferenciados. Durante a edição, é possível que um seja mais sensorial, enquanto que o outro fique mais atento ao continuar da história, para não perder o fio narrativo da trama. Mas, em geral, é tudo em conjunto.
As mulheres têm conquistado cada vez mais espaço no cinema, não apenas como protagonistas, mas também nos bastidores. Qual a visão de vocês sobre essa questão?
FR: Acho que é necessário olhar para essa mudança, pois a nossa história fala por si. É verdade que há muito mais diretores homens do que mulheres, e eles costumam receber melhor do que nós. Pelo menos em Portugal, não sei ao certo se no Brasil é igual, mas acredito que seja assim no mundo todo, as mulheres costumam se dedicar mais ao documentário – enquanto que os homens é que se encarregam das grandes histórias de ficção. Então, se não olharmos para isso, talvez nada mude. Daqui alguns anos, talvez seja natural, mas agora é preciso ter esse tipo de atenção. Neste ano, dos mais de mil filmes exibidos no Festival de Cannes, apenas 82 eram dirigidos por mulheres. Esse é o tipo de proporção que diz tudo, acho.
Vamos falar sobre o elenco de Djon Africa. Como foi descobrir essas pessoas e trazê-las para a história que vocês queriam contar?
FR: Escrever a história foi a primeira coisa que fizemos. Com o texto pronto é que partimos atrás de quem seriam nossos atores. Em Portugal o terreno nos era familiar, mas em Cabo Verde essa busca foi mais intensa, pois precisávamos descobrir as pessoas certas para dar corpo a esses personagens. A estratégia que adotamos foi diferente para cada uma das ilhas que visitamos. Na praia havia muitos grupos de teatro, atores profissionais e amadores, então o casting foi mais tranquilo.
Todo mundo que vemos em cena, portanto, são atores?
FR: Não. Assim foi apenas no primeiro lugar onde paramos. As meninas da festa eram modelos que tinham até agentes, agora o pessoal do velório parte eram atores, outra parte eram da própria comunidade, que lá estavam e assim ficaram. No começo, então, esse mapeamento foi mais fácil. Fizemos duas viagens até Cabo Verde, antes do início das filmagens, só para essa seleção. Nas outras ilhas, mais afastadas da capital, fomos praticamente de porta em porta procurando por quem teria as características que estávamos buscando.
Vocês estavam, portanto, como o protagonista, buscando as pessoas certas?
FR: Exatamente. A Maria, a senhorinha, nos foi indicada por um rapaz da região. Quando descrevemos o tipo de mulher que estávamos procurando, ele nos disse: “eu conheço essa senhora”. Tinha que ser um tipo bem magrinha, independente, que morasse sozinha, sempre fumando seu cachimbo. Ele nos levou até ela, e foi quase imediato sabermos que era ela, sim, a pessoa que queríamos. Nos apresentamos, fizemos o convite e ela topou quase que na hora. Foi incrível. Quando voltamos, cinco ou seis meses depois, para começarmos a filmar, ela estava nos esperando, não havia esquecido e fez tudo que pedimos. Nos deixou de queixos caídos.
Os diálogos eram na base do improviso ou chegaram a passar o texto com ela?
FR: Não havia um roteiro para ela decorar, mas era muito controlado, também. A gente explicava o que queria, qual era a intenção de cada cena, e procurávamos ensaiar antes, até encontrar o tom próximo ao que era preciso. Até porque muitas vezes nem nós entendíamos o que ela estava falando! O criolo, a língua dela, daquela ilha, é muito diferente do praticado pelos imigrantes em Portugal, por exemplo. Portanto, tiveram coisas que só na hora da montagem fomos perceber.
Vocês são portugueses, e moram e trabalham em Lisboa. Como se deu essa parceria com o Brasil?
FR: O que aconteceu é que alguns dos nossos filmes anteriores, e também trabalhos do Gabriel Mascaro, passaram pelos mesmos festivais. Fomos nos encontrando assim, principalmente por essa coincidência de acabaram colocando nossos filmes uns ao lado dos outros. Com essa afinidade, brincávamos: “um dia ainda vamos trabalhar juntos”. Tanto foi que aconteceu.
Como tem sido a repercussão internacional de Djon África?
JMG: Tem sido ótima. Estreamos no Festival de Roterdã, e os retornos que tivemos foram ótimos. Estivemos também em Nova Iorque, Londres, em muitos festivais interessantes. Talvez para o Brasil essa paisagem seja mais interessante. Não sei. Lá fora, as pessoas costumam reagir mais à música e às ilhas, indo além da história do Miguel – que é, afinal, um tema universal, pois se trata de um cara em busca do próprio pai, atrás de suas raízes, e que no processo se transforma em uma outra pessoa. As pessoas ficam muito tocadas. Essa musicalidade toda foi muito reflexo não tanto do que estava no roteiro, mas do que vivemos em Cabo Verde. A música estava por todos os lados. Passamos três meses juntos, e foi uma verdadeira jornada musical.
(Entrevista feita ao vivo em Curitiba em junho de 2018)
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