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A comédia Domingo (2018) passou por um longo percurso criativo até chegar aos cinemas. O roteiro foi escrito por Lucas Paraízo em 2005, para refletir sobre as classes privilegiadas durante os primeiros anos do governo Lula. Em seguida, quando Fellipe Barbosa e Clara Linhart assumiram a direção, os três se uniram para reescrever a trama conforme a política brasileira se transformava.

Em pleno 2019, o resultado gira em torno de uma família muito particular, brigando e rindo juntas no dia 1 de janeiro de 2003, em plena posse de Lula, quando a matriarca (Ítala Nandi) teme que suas terras sejam invadidas por moradores pobres da região. Enquanto isso, os personagens interpretados por Augusto Madeira, Camila Morgado e tantos outros se preocupam em manter as aparências – e o luxo.

Para a personagem de Martha Nowill, que observa este núcleo familiar de fora por não possuir uma origem privilegiada, o local é de estranhamento. Em pouco tempo, a crise entre patrões e empregados, entre homens e mulheres, entre progressistas e conservadores estoura na propriedade decadente de Pelotas.

O Papo de Cinema conversou em exclusividade com Camila Morgado, Augusto Madeira e Martha Nowill sobre o projeto, em cartaz no circuito comercial:

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Augusto Madeira em Domingo

Como vocês enxergam essa família privilegiada, porém decadente, do sul do Brasil?
Augusto Madeira: Sabe que este filme me lembra muito outro filme que eu amo, O Leopardo (1963)? É uma família italiana que ainda não entendeu que os tempos mudaram na Itália. Eles tentam manter a estrutura arcaica deles, sem abrir mão de privilégios. Tem uma cena linda em que eles chegam à missa, elegantérrimos, mas cobertos por uma nuvem de poeira dentro da Igreja. Para mim, Domingo chega neste lugar. Ali, os valores desta família patriarcal católica, cheia de “homens de bem” que gostam de dar tiros e transar com a filha da empregada, são retratados dentro da estrutura clássica brasileira. Enquanto isso a casa está em ruínas, sem luz…
Martha Nowill: O Fellipe, que dirigiu o filme com a Clara, já vinha falando dessas classes privilegiadas desde Casa Grande (2014). Em Gabriel e a Montanha (2016), ele também fala do homem privilegiado que vai à África. Este é um tipo de personagem pouco abordado no nosso cinema, de modo que este retrato se torna muito interessante. O Augusto tem razão ao lembrar o Visconti, que era um cineasta muito interessado por esta aristocracia, inclusive em Morte em Veneza (1971). Ao mesmo tempo em que olhamos estes personagens de modo crítico – menos a minha personagem, ironicamente, que observa este núcleo abastado de fora -, por ser uma classe egoísta, pensando apenas nos seus privilégios, também precisamos ter carinho por estas figuras que ajudamos a tornar vivas. Precisamos pensar no lado humano, afetivo dessas pessoas.
Camila Morgado: A minha personagem diz algo muito engraçado: “Eu vou continuar tomando o meu champanhe, mesmo que seja em copo de geleia de mocotó”. O importante é preservar o champanhe a qualquer custo. Esta personagem representa o estrangeiro, mas também não quer abrir mão dos luxos obtidos pelo casamento. Ela conseguiu entrar nesta família, e não quer sair disso.

De que maneira interpretam o humor enquanto ferramenta política?
A.M.: Eu só acredito no humor político, o humor a serviço da inteligência e do esclarecimento, para se opor ao que existe de bizarro e arcaico na sociedade.
C.M.: O humor existe para isso, para propor um distanciamento crítico. Já vivemos dramas suficientes hoje, estamos mergulhados nisso. Mas a comédia traz um distanciamento que permite a reflexão sobre os temas.
M.N.: Eu sempre vejo um pouco de drama na comédia e um pouco de comédia no drama. Tudo está misturado, e os personagens deste filme nos permitem ver isso.
C.M.: Quando eu li o roteiro do Lucas, aquilo sempre me parecia uma comédia muito clara. O Lucas ficava preocupado, dizendo: “Meu Deus, eu sou um escritor de drama, será que acabei fazendo uma comédia?”. Mas aquela família tem algo patético: a casa está caindo aos pedaços, mas eles ainda querem planejar uma festa de quinze anos com toda a pompa e glória possíveis. Eles têm dificuldade de olhar para si mesmos, e essa representação faz muito mais sentido no humor. A relação da minha personagem com o Augusto é patética: eles bebem, ele encoraja o filho a atirar… Aquilo é horrível!
A.M.: Nós temos um presidente que acha legal encorajar as pessoas a atirarem mais…
C.M.: Exato! E as pessoas acham normal, fazem piada… Esse humor é fundamental para se perceber o absurdo da situação.

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Michael Wahrmann, Martha Nowill e Augusto Madeira em Domingo

Havia espaço para brincar com esse texto, para explorar a vantagem de ter tantos atores em cena?
C.M.: Eu acredito que a construção de personagem tenha que vir da brincadeira. Não acredito no sofrimento como processo criativo; já sofri muito construindo personagens, e não acredito que tenha sido o melhor caminho para mim.
A.M.: Gente, não se esqueçam que a Camila interpretou a Rússia em Bangu! Se alguém entende de sofrimento, é ela!
C.M.: Nem fala! Mas Domingo teve um clima tranquilo. Quando o Fellipe diz que nós construímos uma família, nós fizemos isso de fato, nos divertindo.
A.M.: O espaço de criação foi muito condicionado pela escolha dos planos-sequência. Na maior parte das cenas, o Fellipe e a Clara colocavam a câmera em um lugar e deixavam o elenco livre. Existiam falas escritas aqui e acolá, mas havia um grande espaço entre cada interação, como um palco teatral. Aí você brinca com o personagem ao teu lado, decide ir buscar um copo do outro lado da cena…
C.M.: Nós colocamos muita coisa por conta própria. A partir de certo ponto, passamos a ser coautores da história, porque a Clara e o Lucas deixavam.
M.N.: Por exemplo, a minha personagem não tinha relação com o personagem do Nestor, mas nós dois inventamos uma história louca, de que talvez o filho que ela esperava fosse do Nestor. Nós não dizemos isso em momento algum do filme, mas isso condicionou o jogo em cena.
C.M.: O Fellipe e o Lucas davam muita liberdade para a gente. Como a minha personagem é sempre bem alterada, eu decidi fazer uma cena com os peitos de fora, não teria problema, e fiz a cena assim! Deu certo, porque isso fazia parte do jogo, o que obviamente era muito engraçado. Sempre achei a minha personagem hilária, ela é como uma panela de pressão.
A.M.: Todos os personagens estão alterados desde o início, eles começam o filme de ressaca, no dia seguinte do réveillon. Eles acordam meio bêbados, e bebem mais um pouco para superar a ressaca – ou não.

É irônico falar sobre a posse de Lula hoje em dia, com o cenário político atual…
A.M.: Quando a gente mostrou o filme pela primeira vez, o Lula já estava preso? Não lembro.
M.N.: Estava sim!
A.M.: É verdade, tinha sido muito recente. Quando Domingo foi exibido na Mostra de São Paulo, era o mesmo dia em que Bolsonaro tinha sido eleito presidente. Imagina nossa cara vendo esse filme…
M.N.: Nesse momento, ele se parecia um filme de terror!
A.M.: Domingo demorou para chegar ao circuito, mas talvez ele tenha uma receptividade muito maior agora em virtude do diálogo com o cenário atual.
C.M.: Em determinados lugares, a gente percebeu que o diálogo estava muito difícil. Agora, sinto que as coisas estão um pouco melhores, estão mudando.
A.M.: Embora o filme não seja sobre a posse do Lula, ele aborda de que maneira isso mexe com a cabeça dos personagens.
C.M.: É absurdo pensar como pudemos ir de um extremo ao outro em tão pouco tempo!
M.N.: Quando a gente filmou, ou mesmo quando o Lucas escreveu o roteiro, a gente jamais poderia imaginar que a situação se tornaria esta. De repente, quando o filme ficou pronto, a política sofreu uma guinada louca. É muito interessante assistir ao filme agora, sabendo tudo o que aconteceu. De certo modo, as raízes do contexto atual já pairavam no ar em 2003. A cena do personagem do Augusto segurando a arma se torna ainda mais importante na época de um presidente que faz apologia às armas.
A.M.: Hoje eu recebi três vídeos nas redes sociais sugerindo que liberar a venda de armas vai aumentar a segurança do cidadão comum e diminuir a violência. Quem tem condição financeira de comprar uma arma? Quem ganha com isso? A indústria bélica sempre ganha, de um jeito ou de outro. A discussão é muito mais profunda, porque parte da disseminação do medo e do terror.

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Camila Morgado e Ismael Caneppele em Domingo

Acreditam que Domingo possa dialogar com público e crítica ao mesmo tempo? Existe espaço para esses “filmes do meio” atualmente?  
A.M.: Bacurau está presente para abrir estes caminhos, ele é o blockbuster do “filme do meio”. É um filme crítico, que vai para Cannes, mas tem um apelo popular absurdo. Este espaço existe, e estes projetos são cada vez mais pertinentes.
M.N.: Eu vejo Domingo como estes projetos que nós adoramos, as comédias argentinas ou francesas que fazem humor com reflexão ou ironia.
A.M.: Domingo namora com o cinema argentino, sem dúvida. Além disso, ele se passa em Pelotas, um lugar próximo da fronteira, e tem música em espanhol, personagem falando em espanhol… A proximidade com a Argentina é geográfica, inclusive.
M.N.: O filme também tem camadas múltiplas de reflexão. Se o espectador quiser, ele pode enxergar ali apenas uma comédia rasgada, sem se debruçar sobre algumas questões, mas se estiver interessado, pode ser fisgado pela ironia, pelos planos-sequência e pela parte mais autoral. O filme está aberto a todas essas vertentes. Isso é maravilhoso, é disso que precisamos para fomentar uma indústria.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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