No vilarejo fictício de Clourrières, na França, a equipe inteira de futebol masculino é suspensa após uma briga no campeonato local. Seria o fim do esporte na cidade? As mulheres trazem a solução: e se elas substituíssem os homens nas próximas partidas? A proposta considerada absurda pelos maridos é abraçada com garra pelas esposas (interpretadas por Céline Sallette, Laure Calamy e Sabrina Ouzani, entre outras), além do treinador Marco (Kad Merad). Nasce então uma guerra dos sexos capaz de questionar o pensamento conservador.
Donas da Bola (2019) conquistou grande sucesso na França, reafirmando a vocação do cineasta Mohamed Hamidi para comédias dramáticas de temática social. O filme está disponível aos brasileiros no Festival Varilux de Cinema Francês 2020, em dezenas de cidades por todo o Brasil.
O futebol feminino dispõe de boas condições na França?
Há uma grande mudança começando a acontecer. Primeiro, é preciso saber que temos uma ótima equipe feminina na França. Elas sempre vencem a Champion’s League na Europa, o que tem contribuído a popularizar o esporte, sem falar no ótimo desempenho na Copa do Mundo. Algumas celebridades têm aparecido, como a nossa artilheira Eugénie Le Sommer. Aos poucos, a popularidade se torna maior – pelo menos, em relação ao destaque que as jogadoras vinham recebendo até então.
A diferença de tratamento em relação aos homens tem diminuído?
Infelizmente, elas ainda estão bem distantes do reconhecimento dado ao futebol masculino. A diferença entre o apoio às duas equipes é enorme. O salário entre ambos não é sequer comparável, muito menos o espaço reservado às jogadoras na imprensa. O futebol masculino monopoliza as atenções na França.
Por que quis combinar atrizes experientes e jogadoras profissionais?
Isso foi muito interessante. Eu tinha duas opções: ou eu contratava jogadoras profissionais, para então treiná-las a atuarem diante das câmeras, ou então contratava atrizes profissionais para ensiná-las a jogarem futebol. Era mais fácil contratar atrizes capazes de jogar futebol do que jogadoras capazes de atuar. Mas é verdade que incluí na equipe algumas jogadoras profissionais em papéis pequenos. Não vemos muito delas, apenas silhuetas, ou durante as partidas. De qualquer modo, era necessário fazer a combinação dos dois. Cada vez que eu contratava uma atriz, era preciso que ela tivesse vontade de entrar em campo, adquirir a forma física necessária, treinar bastante. Elas teriam que passar vários dias de filmagem sobre o gramado, de shorts e camiseta, correndo e batendo bola, repetindo as ações várias vezes para a câmera. As atrizes não sabiam jogar profissionalmente, mas precisavam se esforçar em construir a aparência de jogadoras reais.
No filme, as personagens começam a treinar pela primeira vez. Elas não eram profissionais antes. Mesmo assim, exigiu delas muito treinamento?
É verdade. Mesmo que as personagens não fossem profissionais, era preciso demonstrar certa qualidade técnica. Por isso preparei cada imagem, decupei cena por cena, imaginei ângulo a ângulo. Elas começaram a treinar dois meses antes das filmagens, para dominarem o tempo de jogo e adquirirem controle da bola. Era preciso dominar as bases. Durante as filmagens, elas reproduziam uma coreografia precisa, como se fossem bailarinas. Cada ação do filme foi meticulosamente trabalhada. As cenas de futebol duraram aproximadamente uma semana e foram as últimas que fizemos, pela preocupação de parecerem verdadeiras. Diante das atrizes existiam equipes reais de jogadores homens. Por isso, elas trabalharam sozinhas a princípio, com treinadores profissionais, e depois ensaiaram com os homens em campo.
Um destaque no elenco é Sabrina Ouazani, que possui alto nível técnico.
Exato. Como ela interpreta uma jogadora de nível profissional, eu busquei uma atriz que soubesse jogar futebol de verdade. Sabrina já praticou muito futebol na vida. Ela não é jogadora profissional, mas tem praticado diversos esportes a vida inteira, inclusive batendo bola com os irmãos desde pequena. Acredito que ela tenha sido a atriz mais empenhada no esporte: ela me mandava vídeos diariamente, mostrando o aperfeiçoamento nas embaixadinhas, nos dribles e no domínio da bola. Ela se dedicou enormemente à parte técnica do esporte. Isso era algo inato nela.
Como compara o machismo entre as grandes cidades e os vilarejos, a exemplo da fictícia Clourrières?
O fato de situar a história longe das maiores cidades, como Paris, Lyon e Marselha, me permitia abordar o aspecto conservador da sociedade francesa, além de mostrar que havia um longo percurso a efetuar para que os maridos aceitassem a presença das esposas em campo. Trata-se de uma cidadezinha onde todo mundo se conhece, e isso me interessava muito. Estamos falando do esporte amador, de um campeonato de pequenas proporções. Mesmo assim, visto o tamanho do lugar, um evento desses afeta muito mais do que a equipe: ele transforma o funcionamento da cidade inteira. O caminho para a aceitação da independência feminina se torna mais árduo neste contexto, e essa era uma estrutura importante para o filme. A mesma premissa seria totalmente diferente numa cidade como Paris ou Marselha.
Por que pensou em Kad Merad para o papel do treinador e antigo jogador profissional?
Essa foi uma escolha fácil. Kad Merad tem ótimos conhecimentos sobre o esporte: ele é filho de um grande jogador profissional de futebol. Além disso, cresceu nos vilarejos do interior, próximo dos campeonatos amadores, antes de se mudar para os subúrbios de Paris. Por isso, o universo dos vestiários e das conversas com jogadores era algo bem familiar para ele. Kad entendia a figura do sujeito solitário cujos jogadores chegam à noite, depois do trabalho – ele estava inserido nesse meio associativo muito antes do filme. Por isso, o caminho foi rápido: ele vestiu o uniforme e imediatamente encarnou o personagem. Nós conversamos bastante sobre esse treinador antes das filmagens. Ele se dedicou com profissionalismo a esta figura, mas sem exagerar no aspecto técnico, afinal, ele encarna alguém que leva a equipe a sério, mas tem um emprego fixo em paralelo. O personagem vive o esporte como uma paixão cotidiana, mas que não consome toda a sua atenção.
Foi Kad Merad quem incentivou a realização do filme, certo?
Sim. A gente já tinha se encontrado antes e conversado sobre a possibilidade de trabalhar juntos um dia. Quando eu contei a ideia deste filme, ele me disse: “Não procure mais ninguém, você já encontrou o seu Marco. Eu sou o ator para esse papel”. Depois disso, comecei a escrever o roteiro e desenvolver o projeto, mas estes processos são longos, e acontece com alguma frequência de perder um pouco da motivação. Um dos motivos para isso foi a estreia do filme Como Meninos (2018), que conquistou um grande sucesso popular e também abordava o futebol feminino. Eu abandonei a ideia, e compartilhei isso com o Kad, porque não tinha sentido fazer dois filmes sobre o mesmo tema. Mas foi ele que me encorajou, me dizendo que não dava para abandonar uma premissa tão boa. Para ele, eram dois filmes totalmente diferentes, porque no nosso caso, as esposas substituem os maridos no campeonato. Ele não ofereceu apenas um incentivo: posso dizer que graças a ele eu voltei ao projeto e segui em frente.
Esta é uma homenagem às mulheres, mas o protagonista permanece um homem, como nos seus filmes anteriores.
É verdade que eu escolhi acompanhar o olhar do treinador, porque ele era capaz de efetuar a conexão entre o futebol feminino e o masculino. Mas não acredito que o protagonista seja o homem: as verdadeiras heroínas são as jogadoras da equipe feminina. Ao mesmo tempo, eu realmente fiz muitos filmes com personagens masculinos, sobretudo no início da minha carreira, porque eram histórias autobiográficas. Eu falava sobre temas da minha vivência, e depois de um tempo, quis fazer um filme sobre mulheres. Cresci numa família extremamente feminina, com várias irmãs. Por isso, a ideia de um coletivo feminino me interessava muito. Através desta história eu tinha a oportunidade de abordar a solidariedade entre as mulheres. A premissa era ainda mais divertida porque o universo do futebol é predominantemente masculino. Queria deslocar este imaginário.
Os campeonatos mistos existem de verdade?
Eles existem até a idade de 15 anos na França. Isso é permitido para equipes com jogadores e jogadoras jovens, além de partidas amistosas. Fora do calendário oficial, isso existe com frequência. Muitos campeonatos amadores permitem equipes femininas, colocando as mulheres para jogarem contra os homens, ou permitindo homens e mulheres dentro da mesma equipe. No entanto, segundo a lei, esta mistura é proibida a partir dos 15 anos de idade. Não sei muito bem o porquê, na verdade. Este é um dos traços do nosso conservadorismo. Os campeonatos mistos constituem uma reivindicação frequente, principalmente por parte das jogadoras de pequenas equipes. Existem poucas equipes femininas no interior do país, e são necessárias cerca de vinte equipes para montar um torneio. Por isso, às vezes elas percorrem 80km, 100km para enfrentar equipes adversárias, enquanto perto delas existem equipes masculinas, às vezes menos fortes que elas, com as quais poderiam formar um pequeno campeonato. Mesmo assim, isso não é autorizado.
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