Dieter Berner não é nenhum novato. Ator e diretor de grande destaque no cenário cultural austríaco, ele está estreando somente agora, no entanto, nas telas brasileiras, com a cinebiografia Egon Schiele: Morte e a Donzela (2016), que chegou por aqui dois anos após o seu lançamento no país natal do artista. Nascido em Viena e criado em Berlim, começou seus estudos na arte dramática em 1962, quando deu seus primeiros passos como ator. Só em 1973 que resolveu se aventurar na direção, tendo criado, desde então, mais de 40 títulos, tanto no cinema quanto na televisão. O público cinéfilo talvez lembre dele como o instrutor de canto visto no elenco de A Professora de Piano (2001), uma das obras mais emblemáticas de Michael Haneke. Mas, segundo as palavras do próprio, seu trabalho dos sonhos foi mesmo ter resgatado a vida e a obra de Egon Schiele, um dos pais do expressionismo europeu. E foi sobre esse projeto que conversamos com exclusividade com o cineasta. Confira!
Assistir à Egon Schiele: Morte e a Donzela foi interessante, pois foi a primeira vez que ouvi falar desse artista. E para você, quando entrou em contato com a história dele?
Olha, curioso. Comigo foi o seguinte: sobre a história de vida dele, fiquei sabendo tempos depois. Mas da arte, as pinturas que havia criado, desde a minha adolescência conhecia. Acho que quando fiz 18, lá nos anos 1960. Ainda estava na escola, e lembro de ter ficado muito entusiasmado com essas imagens. O erotismo delas, entende? Descobri-las foi muito excitante, me deixou realmente impressionado. Assistir àqueles desenhos de pessoas nuas, mostrando inclusive o pênis dos homens, revelando seus corpos como sinal de suas vidas interiores. Era uma forma de expressar sentimentos. Tudo muito novo para mim. Anos depois, encontrei um livro sobre James Dean, que também foi um rebelde que morreu jovem. Dean, no começo da carreira, serviu como modelo para um famoso fotógrafo em Nova York. O que percebi é que posava do mesmo modo que Egon Schiele. As posturas eram muito similares. Tinham essa mesma atitude rebelde, na linguagem de seus corpos.
Você viu ligações entre os dois, James Dean e Egon Schiele?
Sim. Acredito, aliás, que James Dean havia visto as fotos de Egon Schiele, pois são muito parecidas. Aquela era uma época que havia muito imigrantes da Áustria em Nova York, responsáveis por terem tornado Schiele famoso nos Estados Unidos durante os anos 1950. Um dos mais importantes estudiosos que escreveu sobre Schiele viveu nesse período, e era justamente um austríaco que migrou para lá e acabou virando professor.
Foi essa impressão sobre a arte de Schiele que o motivou a conhecer a vida dele?
Na verdade, não. Aquelas imagens ficaram comigo, mas acredito que não estava preparado para lidar com elas. Muito tempo depois, Hilde Berger – minha esposa – decidiu escrever sobre ele. Foi ela que me trouxe de volta ao mundo de Egon Schiele. Hilde era atriz, mas começou a escrever quando ficou grávida pela primeira vez. Escreveu esse livro, tendo como foco a obra mais famosa dele, Morte e a Donzela, e o conceito que explorou foi encará-lo através dos olhos dessas cinco mulheres, todas muito importantes em sua vida. Gerti, a irmã; as duas irmãs Harms, Adele e Edith; Wally, seu grande amor; e Moa, a primeira musa. Era muito interessante, pois conseguiu construir uma narrativa em cinco episódios, cada um sob o ponto de vista de uma dessas mulheres. Com isso, foi possível observar diferentes impressões a respeito dele. Até tentei escrever um roteiro a partir deste livro.
Mas vocês acabaram assinando junto o roteiro do filme. Como se deu esse processo?
Pois então, como disse, até tentei. Mas não consegui. O que descobrimos, depois, é que trabalhamos melhor juntos. Até porque havíamos escrito vários roteiros, tanto para a televisão como para o cinema, e sempre em parceria. A ideia dela, com o livro, era ter mais liberdade, poder escrever sem tanto compromisso. Não queria escrever um roteiro de cinema a partir da novela que havia escrito. Porém, quando me vi sem saber o que fazer, tive que convencê-la a trabalhar comigo – mais uma vez. Foi difícil, pois a ideia dela era, em relação ao cinema, escrever algo novo, livre de qualquer influência. Só que, assim que começamos a escrever, a primeira coisa que percebemos é que não funcionaria no modelo que havia proposto no livro, no formato de episódios, e por isso que acabamos combinando tudo em uma única narrativa.
Outros filmes sobre Egon Schiele foram feitos antes. Você chegou a assisti-los? O que Morte e a Donzela apresenta de novo?
Sim, os conheço e assisti a todos. Aliás, vi vários filmes sobre pintores, pois estava interessado em descobrir como falar sobre essa manifestação artística em particular. Quanto ao meu filme, tive a vantagem de que hoje sabemos mais sobre Schiele do que até pouco tempo atrás. Esses outros diretores, quando fizeram seus filmes, conheciam pouco sobre o artista, eram voltados para a arte que havia deixado como legado. Essa foi a primeira razão pela qual queria fazer esse filme. A outra era que muitas dessas biografias não possuíam um foco. Eram muitos detalhes, personagens demais envolvidos. O resultado não era emocionante, simplesmente não havia como se conectar emocionalmente com eles.
E teve também um filme estrelado pela Jane Birkin…
Exato, dirigido por Herbert Vesely (Excesso e Punição, 1980). Esse, por exemplo, era só estética, com garotas muito bonitas, mas com erros históricos. Por exemplo, afirmava que Edith havia sido o grande amor de Schiele, e hoje sabemos que isso não foi verdade. Mas foi uma opção que assumiu em nome da dramaturgia, como se a última garota que conheceu tivesse sido sua verdadeira paixão. É bonito enquanto teoria, porém não foi assim que aconteceu. Era tudo muito bonito, e a obra de Schiele não era assim. Ele não prezava a beleza pura. Não era um pornógrafo, não queria que as pessoas ficassem excitadas com sua obra. Sim, fazia arte erótica, mas existencial. Ilustrava essas mulheres através dos olhos dos espectadores. Como as viam. Era algo ousado, até mesmo para os dias de hoje.
Em 2018, lembramos o centenário da morte de Egon Schiele. Você acredita que o seu filme pode servir como porta de entrada para aqueles que não o conhecem?
Torço por isso. O objetivo desse filme, ao menos para mim, era mostrar, nem que fosse para um número ínfimo de pessoas, a importância da obra dele e também destacar o quanto Morte e a Donzela foi significante dentre a sua produção. Por isso escolhi esse nome para o título do filme, pois é a síntese de tudo que realizou. Ele só faz essa pintura no fim de sua vida, após descobrir que Wally havia morrido. Para mim, a coisa mais interessante era contar a história dessa gravura e sobre as circunstâncias que levaram o artista a produzi-la. Com isso, foi possível oferecer a este desenho um significado ainda mais profundo. Sua importância reside, acima de tudo, nas experiências que viveu e que o levaram a executá-la.
Podemos falar um pouco sobre o elenco? Fiquei impressionado com o trabalho de Noah Saavedra…
Pois é, e esse foi o primeiro filme dele. Tive que procurar muito até encontrar o ator certo, pois Schiele tinha apenas 24 anos quando realizou a maior parte de sua obra, e não há muitos atores famosos com essa idade na Europa. Claro, nos Estados Unidos deve ser diferente, mas por aqui foi complicado. Nosso casting, até descobrir quem seria o nosso Egon Schiele, levou mais de meio ano. Fizemos testes com muitos atores. Mais de 50 fizeram audições conosco, para teres uma ideia. Quando descobrimos esse rapaz, na época ele trabalhava em um jardim de infância, com crianças, servindo na cantina. Como é muito bonito, também fazia, ocasionalmente, serviços como modelo fotográfico. Nós o chamamos, e ao se posicionar em nossa frente, não conseguia lembrar de mais de três frases. Ao mesmo tempo, havia se saído melhor do que todos os outros em um aspecto importante: seu charme era muito erótico, além de ser hábil em improvisações. Foi assim, através dessa percepção, que entendeu o personagem. Por essa razão decidi trabalhar com ele. Mas também não foi da noite para o dia. Passamos um ano inteiro, nos encontrando aos finais de semana, para ensaios, até que estivesse pronto e pudesse ser considerado um ator de verdade.
Você passou um ano o treinando até que ele se tornasse ator?
Exatamente. Todo esse processo levou cerca de um ano. Claro não eram todos os dias, mas, no ritmo em que nós dois tínhamos disponíveis. Após uns seis meses que estávamos nos encontrando, ele ingressou em uma das mais famosas escolas de atuação da Alemanha. É um lugar que, anualmente, recebe mais de 2 mil inscrições, e apenas 10 ou 20 são aceitos – e ele conseguiu! Foi uma boa escola, que permitiu que se preparasse para enfrentar esse desafio comigo.
Há muita nudez em Egon Schiele: A Morte e a Donzela. Como essa questão foi trabalhada com o elenco?
Muito simples. Ainda durante os testes, já avisava: “você sabe, esse papel é de uma modelo que fica nua diante de um pintor. Você topa fazer isso?”, por exemplo. Aqueles que me diziam não, os dispensava. Pois não iriam funcionar para este filme. Fui bem claro quanto a isso, desde o princípio. Com uma única exceção: Maresi Riegner, a garota que interpreta Gerti, a irmã dele. Era muito jovem, estava recém no primeiro ano da escola de atuação. E não havia necessidade dela ficar nua para a história que queríamos contar. Ainda que uma das primeiras lições que aprendemos nestes cursos é como ficar nu diante de uma câmera. É importante estar preparado para isso, sem que seja algo estranho.
Egon Schiele: A Morte e a Donzela recebeu cinco indicações ao Austrian Film Awards, que é a mais importante premiação cinematográfica na Áustria.
Exato. E ganhamos como Melhor Atriz, para a Valerie Pachner, que interpreta a Wally. Outro prêmio muito importante aqui na Áustria é o Romy, e lá nossos dois atores foram reconhecidos: Valerie e Noah, ambos como revelações – feminina e masculina – do ano. Além disso, ganhamos também como melhor roteiro e produção.
Você acha que reconhecimentos como esse podem colaborar com a carreira internacional de um filme?
Sim, com certeza. Ajuda, nem que seja um pouco. Um dos maiores esforços que a indústria cinematográfica norte-americana faz para tornar seus filmes conhecidos no mundo todo são justamente essas premiações. Então, temos que usar as mesmas armas. Mas é muito difícil ir contra um sistema tão a favor de Hollywood – nós somos muito pequenos!
Na Áustria, a estreia foi em 2016. Levou dois anos para chegar ao Brasil. Isso é um exemplo dessa dificuldade a que você se refere?
Sim, com certeza. Mas não ficamos parados durante esse tempo. Neste período, Egon Schiele: A Morte e a Donzela foi exibido em mais de cinquenta países ao redor do mundo. Japão, China, Rússia, Estados Unidos, França. Está há meses em cartaz na Itália, por exemplo. Não posso me queixar, estou feliz com tudo isso pelo qual passamos. Em alguns lugares, por exemplo, chegou inclusive a ser dublado na língua local – como na Itália – o que facilitou ainda mais o acesso ao público.
Egon Schiele, enquanto vivo, foi muito controverso. Até hoje, sua arte continua causando polêmica. Como acredita que a audiência de hoje deve se aproximar de sua obra?
Sou mais velho do que você, da geração dos anos 1960. Naquela época, com toda a liberdade que acreditávamos ter, a nudez era uma questão importante. Não que fosse sensacional, era apenas natural. Acho que mais ou menos para Schiele, também. Ele conhecia tantas mulheres, e passou por tantos relacionamentos, todos de natureza muito sexual, que não queria apenas provocar a audiência. O que buscava, na verdade, era dizer algo especial sobre o corpo humano. Foi muito influenciado pela arte japonesa, também. Colecionava gravuras de mulheres nuas de artistas japoneses. Para ele, era uma nudez espiritual, quase filosófica. Chegou a escrever isso: “a nudez é sagrada”. Foi um processo de abertura espiritual muito pessoal, e estar apto a mostrar o corpo exatamente como é, sem estilização. A controvérsia foi imposta sobre ele por aqueles mais conservadores. Aqui na Áustria há um tipo de guerra cultural. Os mais antigos adoravam se escandalizar com novas ideias, e a melhor maneira para isso era afirmar que se tratava de algo “sujo”. É uma concepção muito cristã sobre a arte, é claro.
Egon Schiele não é tão popular no Brasil quanto alguns dos seus contemporâneos, como Gustav Klimt, por exemplo. Como é visto na Áustria?
Aqui a situação é diferente. Muita gente não só o conhece, mas também o estima como um dos maiores artistas do nosso país. Mas demorou para que isso acontecesse. Esse movimento = surgiu a partir dos anos 1960. Ele foi um homem muito pobre, e esse foi um dos motivos de ter casado com a Edith, que era da burguesia daquela época. Então, compreende-se o porquê dele ter sido tão atacado quando vivo. Mas, como percebemos, essa visão foi mudando com o passar dos anos.
E como você espera que os brasileiros descubram Egon Schiele?
Espero que ao menos o meu filme tenha um papel nesse processo. É algo pelo qual torço muito. Gostaria que isso acontecesse, que se tornasse mais popular no mundo todo. Essa, aliás, foi uma das vontades que me motivou a realizar este filme, que ele mexesse com esse universo das artes e como ela é capaz de transformar qualquer pessoa. Nunca estive no Brasil, o que é uma grande pena, mas espero que meu filme fale por mim.
(Entrevista feita via Skype na conexão Brasil / Áustria em julho de 2018)
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