Fabio Marcoff e Bruno Kott são amigos há um bom tempo. E não apenas pelo fato de um ser argentino e pelo outro ser, enfim, apaixonado pela Argentina. Os dois possuem uma boa sintonia, há química entre eles, tanto na tela – grande ou pequena – como fora dela. Essa parceria começou primeiro na televisão, com o programa No Divã do Dr. Kurtzman (2013), no qual trabalharam juntos e foi exibido pelo Canal Brasil. Quando o seriado chegou ao fim, Bruno virou para o Fabio e disse: “vamos fazer um filme?”. Segundo ele, com uma naturalidade como se o estivesse chamando para fritar um ovo. A questão é que dessa vontade nasceu El Mate (2016), comédia de humor negro que chega agora às telas, após ter sido premiada como Melhor Ator Coadjuvante (Kott) no Festival de Gramado. No mesmo evento, Marcoff estava também em outro filme, O Roubo da Taça (2016), que já passou pelos cinemas e agora está disponível na Netflix. E foi nessa ocasião que os dois conversaram com exclusividade com o Papo de Cinema, como vocês conferem a seguir:
El Mate é o teu primeiro longa, e já estreou na mostra competitiva do Festival de Gramado. Como foi isso?
BK: Foi uma experiência muito boa. A gente fez o filme para ele rodar, se relacionar. É o desejo de todo produtor e realizador colocar seu trabalho para ser visto. E, se possível, na telona – essa é a grande meta. Ter estreado no Festival de Gramado foi uma surpresa. Ter ido com esse filme, feito num modelo tão enxuto, foi um momento muito positivo. Foi a estreia mundial do filme, eu próprio o vi pela primeira vez, na tela grande, lá em Gramado. A gente ainda tá tateando, porque sabemos que é um filme estranho. Então, foi preciso aprender como escutar o feedback do público.
Fábio, você esteve em dois longas – El Mate e O Roubo da Taça – em Gramado. Que coincidência, não?
FM: Foi uma surpresa, na verdade. Obviamente, foi uma alegria muito grande quando descobri que ambos haviam sido selecionados. São dois trabalhos completamente diferentes, mas dos quais me apropriei. El Mate era um projeto muito nosso, do Bruno, meu e de todo mundo que participou. Foi uma energia muito coletiva. E o Roubo da Taça tinha o Caíto, nosso diretor, que é uma figura e tanto. Ele te contagia com tamanha paixão, teve um cuidado muito grande com os atores, de dar espaço para todos. São dois trabalhos dos quais, por diferentes razões, foram únicos.
São duas composições bem distintas. Tanto que nem havia me dado conta que era o mesmo ator nos dois personagens. Como foram estes desafios?
FM: Há muitos anos pesquiso formas de atuação. Trabalho com essa coisa de ir para o lugar de permeabilidade. A roupa me transforma. O contexto, a apropriação do texto, a relação com o outro ator. Então, isso foi minha maneira de estar permeável para que essas coisas passassem por mim. Para ir formando a personagem. Quando você se apropria de uma palavra que não sai naturalmente de você, ela te transforma. Isso lhe dá uma certa verdade. Em El Mate, foi uma criação nossa. E mais do que o personagem, a nossa atenção estava na relação entre esses dois caras. A dinâmica entre eles.
Bruno, você chegou a mexer no filme, reeditá-lo, após a exibição em Gramado?
BK: Não, de forma alguma. O filme tá finalizado. A maneira como o pensamos, com a quantidade de takes que trabalhamos, é essa. Nós bancamos esse filme, mas não apenas no sentido financeiro, mas como produtor também. Nós sustentamos essa, que é sua versão final, com esse tipo de roteiro e formato de narrativa. Tivemos que mexer apenas em uma ou outra canção da trilha sonora, mas isso por questão de direitos autorais. A ideia era fazer dele um grande exercício.
Quem é o El Mate?
BK: Quando a gente estava pensando no roteiro, a primeira cena que nos veio à mente foi aquela com ele fazendo o mate, algo que é muito característico do portenho. O nosso protagonista não é só um argentino, ele é de Buenos Aires. E o portenho, mesmo dentro da Argentina, é um ser à parte. E, também, ‘el mate’ é uma expressão que vem de uma gíria que está conectada com o inglês ‘mate’, ‘o cara’, sabe? Esse personagem é ‘o cara’. Ele é passional, surpreendente na maneira como se apresenta.
Fábio, estes dois personagens, tanto no El Mate como no Roubo da Taça, são portenhos. O que os diferencia?
FM: O El Mate tem essa coisa mais melancólica. É um tipo que gostaria de ter sido alguém na vida. É um filme mais ‘tango’, por assim dizer.
Que tipo de personagem mais lhe atrai no momento de elaborar um roteiro?
BK: Gosto destes personagens tipicamente latino-americanos, porque estão tentando muito, mesmo quando não se aproximam do objetivo. Há uma sensação de tentativa e recomeço contínuo. E, dentro disso tudo, uma certa ignorância também. Essa ingenuidade é reconhecida fora daqui como essa alegria dos brasileiros, essa leveza.
Ao mesmo tempo que são tipos perigosos, há também um carinho por eles, não?
BK: A gente se propôs a trazer esse olhar. Você pode ter um problema e achar que é o maior do mundo, justamente por estar tão focado e não enxergar mais nada. A gente está o tempo inteiro achando que, se solucionar aquela coisa, tudo irá melhorar. No filme, ele está esperando solucionar aquele crime para receber o dinheiro. Já o meu personagem quer trazer uma palavra, uma verdade. As meninas querem curtir a noite. Todo mundo está com uma demanda muito simples, e acreditando que, se concretizar o que almejam, tudo irá melhorar. E na verdade não é nada disso. O conflito é muito mais simples e, ao mesmo tempo, menos óbvio. É a condição humana dessas pessoas que, por acaso, são latinas.
O protagonista, esse argentino maluco, é o tipo de personagem que já vale o filme. Como ele foi concebido?
BK: Fez parte também do nosso processo de trabalho criativo perceber as potências individuais de cada um. Quando comecei a escrever e a propor essa história ao Fábio, já era com o perfil dele em mente, com essas características. Ele é mesmo argentino, mora no Brasil há quinze anos. E o conheço muito bem. Sei como pode jogar com o que tem de melhor a oferecer. Em como fazer isso brilhar. Agora, esse estereótipo do portenho… todo portenho daria um filme (risos)!
Como foi a dinâmica de trabalho com o Bruno Kott, diretor e teu parceiro de cena no El Mate?
FM: A tem muita coisa em comum. Tanto na maneira de pensar, como na arte. Todas essas coisas em comum foram meio que se amarrando. Até naquilo que a gente discordava, era muito rica a nossa relação. Basicamente, é um projeto gestado por nós dois. Tem muita coisa nossa nesse filme. Escrevemos juntos, mas separados, cada um em sua casa. E quando íamos ver o que o outro havia escrito, era o mesmo filme. A sintonia foi do início ao fim.
Bruno, você tem uma relação muito próxima com Buenos Aires, pelo jeito…
BK: Sim, tenho um carinho muito especial pela cidade. Nunca cheguei a morar lá, mas por um motivo ou outro sempre voltei. O Fábio diz que tem algumas expressões típicas de lá que uso na minha fala que o fazem se lembrar da infância. A figura dele já é muito forte. É um grande ator, passeia muito bem por todos os gêneros, do drama à comédia. Meu trabalho foi potencializar essa natureza. Acho que muito do trabalho do diretor é isso.
Esse processo em conjunto foi mais instintivo ou chegou a fazer alguma preparação mais elaborada?
FM: Nós conversamos muito sobre o perfil de atuação que estávamos buscando. No caso do Roubo da Taça, chegou até mim já pronto, pois era um projeto que o diretor estava envolvido há muito tempo. Ela tinha uma ideia bem definida de como queria esse personagem. Mas foram processos diferentes, um de uma construção antecipada, e o outro que foi surgindo na hora, através de muita troca, mais natural.
E desde o início você, além de escrever e dirigir, também se via atuando no filme?
BK: Sim, sempre foi assim. Toda vez que o Fábio e eu conversávamos, pensando em modelos de trabalho em conjunto, até mesmo em outros projetos, como no teatro, sempre houve o desejo de atuarmos juntos. Porque atuar é um grande jogo, a bola não pode cair. É diversão. Não tem vencedor ou perdedor, tem apenas um grande prazer. A nossa escola é parecida, então ficamos brincando o tempo inteiro.
Como foi conciliar estas três atividades: direção, roteiro e atuação?
BK: Se por um lado que parece ser uma sobrecarga, ao mesmo tempo tem uma quantidade de apropriações muito boa – em qualquer uma das três áreas. Todo mundo que trabalhou na nossa equipe também passeava pelo filme por completo. Esse é um modelo horizontal de trabalho. Era uma relação de confiança total com todo mundo da equipe. É um processo coletivo.
Mas, de qualquer forma, a última palavra era sempre a tua, não?
BK: Sim, claro. Mas, do jeito que fizemos, não daria para se ter um filme com tanto controle. Era preciso abrir um pouco a mão e fazer desse formato uma linguagem. As potências do filme são suas atmosferas e esse jogo constante entre os atores. Pra fazer isso de uma forma que funcione, é preciso ter uma equipe enxuta. Pouca gente no set. Uma atmosfera boa. Um único cenário. O que muda é internamente, o conflito que estão vivendo.
Há algumas decisões no El Mate muito ousadas. O humor é bastante afiado, por exemplo. Vocês chegaram a ter alguma preocupação a esse respeito?
BK: De verdade? Não. Esse é um tipo de humor que venho trabalhando e fazendo sob outras formas há bastante tempo. E já não entenderam em outras ocasiões. Passei por isso antes (risos). Então estou acostumado. Quando não entendem da primeira vez, você vai transformando aquilo para a segunda, terceira vez. E, aos poucos, começa a estabelecer como uma linguagem. É muito importante que as pessoas se relacionem com o filme. Agora, são essas escolhas ousadas, também, que estabelecem o filme de uma forma rápida. Mas também passeio pelas coisas. Tenho o humor como ferramenta, gosto dela, mas também me interessa outros gêneros.
FM: A gente pensa muito no público. É muito importante não subestimá-lo. A televisão faz muito isso, de subestimar sua audiência. As pessoas estão tão cansadas de fazer o que não gostam, todos os dias, que quando ligam a tevê, não querem pensar. Então a gente tem esse cuidado. Basicamente, fizemos uma obra de arte. Pode gostar ou não. Isso é cinema, senão seria apenas um arquivo. Cada um pode fazer a construção e a leitura que quiser, esse é o compromisso que temos com o público.
Quais são tuas principais referências?
BK: É muito doido. Dou aula para estudantes de teatro e de cinema. Quando estou com alunos de cinema, costumo citar uma referência teatral. E o oposto também acontece. Mas, mesmo que não se perceba nesse filme, sou louco pelo Tarkovsky (1932-1986), e é engraçado, porque é a minha maior referência teatral. Ele tem uma potência atmosférica tão grande, é tão simbólico… é teatro puro. Ao mesmo tempo, foi quem me abriu para o cinema. Sokurov, Cassavetes… mas também Fernando Pessoa, Beckett… as coisas se misturam um pouco na minha cabeça.
Uma referência meio óbvia é o Tarantino…
BK: Sim, com certeza.
Me passou também o Billy Wilder, pelas relações entre os personagens…
BK: Na ingenuidade, talvez. Tem uma simplicidade, a dinâmica que se estabelece entre eles. Esse contraponto com a violência é o que imagino ser necessário para se criar uma história no meio termo entre isso. Você apresenta um conflito, e logo propõe um novo. Tem uma cena, por exemplo, altamente dramática, que é o Armando falando que matou o filho. E a sequência dela é o meu personagem comentando a sinopse de um filme do Van Damme. Esse espaço onde você estabelece estes extremos como linguagem, acaba gerando um ruído. E é isso que interessa ao público. A comunicação entre estes pontos que me motiva. É o resultado deste encontro.
Foi esse tipo de improviso que vocês trabalhavam?
FM: Não foi bem improviso. Eram coisas que íamos agregando juntos. Por exemplo, essa história do Van Damme. Um dia saímos para jantar juntos e o Bruno começou a me contar a história de um filme que tinha visto na noite anterior, sobre o Van Damme. E era algo tão louco que nós percebemos que tinha que estar no nosso filme. Era assim, tudo em conjunto. Um conta um drama pessoal terrível, o outro vem com a história da vida do Van Damme, e ambos com o mesmo tom.
Essa conversa do Van Damme lembra o início do Cães de Aluguel (1992), quando os bandidos estão discutindo uma música da Madonna…
BK: Gosto do Tarantino, mas acho que o El Mate sintoniza melhor com os filmes dos irmãos Coen. Eles tem um apreço pela condição humana, além dessa sensação permanente de erro. Uma das primeiras coisas que pensei foi isso de quanto mais se limpa, mais deixa sujo. Um crime, quando se lê nos jornais, parece coisa de profissional. Mas aqui é o contrário, deu tudo errado. Não foi bem-sucedido. Me coloco sempre nesse desejo de tentar acertar, e acabar errando invariavelmente. Só transpus isso para o universo de um assassino.
E sobre próximos projetos, o que você pode nos adiantar?
BK: Estamos envolvidos, na minha produtora, com um documentário. Será a primeira coisa que iremos fazer a seguir. E temos dois longas. Um que também é B.O., ou seja, de baixo orçamento, e outro já com uma estrutura um pouco maior. Ainda estamos trabalhando neles, não há nada definido. Mas o El Mate nos consumiu tanto neste último ano, que agora é momento de comemorar, torcer para que seja visto e depois pensar no próximo passo. Sei que vou fazer uma série de televisão, chamada Natureza Morta, para o canal Cine Brasil TV. Serei o auxiliar de um serial killer, é uma minissérie de cinco capítulos. De novo, combinando violência com comicidade, pois ele trabalha com moda, é engraçado. O diretor é o Flavio Frederico, o mesmo do Boca (2010). Outra coisa certa é uma refilmagem na Argentina do El Mate. Vamos fazer, já está certo, mas vai demorar algum tempo ainda. O desejo é de produzir, e colocar na roda. E como o público irá se relacionar com o que for sendo feito, bom, isso faz parte do encontro.
(Entrevista feita em Gramado em setembro de 2016)
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