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Eleições :: Entrevista exclusiva com Alice Riff

Publicado por
Marcelo Müller

Depois de viajar bastante por festivais com seu filme anterior, Meu Corpo é Político (2017), obra focada em mostrar personagens transsexuais ocupando importantes espaços públicos, a cineasta paulistana Alice Riff está prestes a desembarcar no circuito comercial de cinema com um documentário que aborda questões não menos urgentes e relevantes. Em Eleições (2019), ela acompanha o processo democrático de escolha do novo grêmio estudantil da Escola Estadual Doutor Alarico da Silveira, situada na Barra Funda, em São Paulo. Observando de perto elementos concernentes àquela situação que, muito bem, pode ser entendida alegoricamente como um microcosmo da política brasileira, Alice se aproxima de uma juventude que enfrenta diariamente toda sorte de percalços, incluindo educação precarizada pelo Estado e falta de estrutura, inclusive, ao incentivo dialético. Para falar um pouco mais sobre o processo de realização de Eleições, conversamos com Alice, então de passagem pelo Rio de Janeiro, na véspera de uma sessão especial de seu filme para professores. Confira, então, a nossa entrevista exclusiva com Alice Riff.

 

Levando em consideração as particularidades do processo documental, qual a distância entre a concepção e o resultado em Eleições?
No princípio, achei que teríamos uma chapa de esquerda e uma de direita concorrendo ao grêmio escolar. Ao chegar à escola, a configuração era outra. Quanto mais abertos para seguir esses caminhos novos, melhor. Com relação à forma, imaginava ele como é, mas não sabia que uma escola inteira se envolveria nisso. Foi uma construção que deu certo por que a equipe inteira que estava ali, acreditando totalmente no projeto, pensou num processo fílmico que também era pedagógico. Temos base em teorias de pedagogia, por exemplo, Paulo Freire e a Pedagogia da Libertação. Observamos os modos de aprendizagem baseados na potência e na alegria. Estávamos ali nos divertindo e deixando que as pessoas se divertissem, especialmente porque lidávamos com jovens envoltos numa série de problemas. Óbvio que todo adolescente sofre, mas isso se acentua quando as pessoas são pobres e negras.

E como se deu a seleção dessa escola, especificamente?
Após aquele movimento intenso de ocupação nas escolas secundaristas em 2016, fiquei curiosa quanto à volta dos alunos a rotina. Havia uma narrativa de vitória juvenil e, consequentemente, de fracasso do então governador Geraldo Alckmin. Mas ele é cara que não perde, vingativo, que tinha a força policial ao seu lado, então dava para imaginar que represálias viriam. Pensei que seria importante acompanhar a volta. O próprio Estado de São Paulo veio com projeto de gestão democrática para supostamente aumentar o diálogo entre alunos e professores, para isso tornando os grêmios obrigatórios. Foi a resposta do governo às ocupações. Alguns acharam a iniciativa legal, outros entenderem-na como tentativa de conter a movimentação política. Acompanhei uma escola, inicialmente. Dois anos depois, quando, de fato, consegui recursos para fazer o filme, esse pessoal já tinha se formado e fui buscar outros locais. A Alarico da Silveira nos acolheu, tanto que chegamos a entrar no currículo pedagógico.

 

Que bacana essa integração…
É. Realmente, o Eleições não foi somente um filme. Fizemos uma série de coisas lá dentro como ministrar oficinas do Teatro do Oprimido durante um semestre inteiro e também dar oficina de cartazes, algo que vinha ao encontro das necessidades urgentes deles. As meninas que fazem a cobertura tiveram oficinas de jornalismo e audiovisual. Há muita gente fora do quadro, mas bem envolvida. Tudo isso que acontecia era anexado como conteúdo.

Foi uma questão política escolher duas mulheres negras como repórteres?
No projeto existia a previsão de alguém cobrindo as eleições na escola. A Laura e a Lívia eram da mesma turma das integrantes da chapa Rosa. Elas estavam ali, mas não queriam fazer parte do pleito. Percebi que ambas desejavam fazer parte do filme, mas não de um grupo, então escolher elas foi meio por aí. Sei lá, nem pensei muito do perfil, mas, além das duas, existe um grupinho ao redor, que ajudou bastante, inclusive levantando pautas, essas coisas.

 

Ao largo do pleito, dos debates, você mostra a precariedade do ensino público. Isso era imprescindível para você?
O filme acontece dentro de um espaço, a instituição escola. Ali há um microcosmo da sociedade, uma alegoria. Como estamos falando de processo democrático, é imprescindível mostrar essas pessoas, especialmente os jovens, que se sentem distantes do sistema representativo. Faltou dizer a elas que democracia não é uma coisa que você compra e chega prontinho. Ela é uma construção. Vivemos num país pobre, ex-colônia, ou seja, temos uma série de questões em jogo. O problema da escola é de todo mundo. Se aprendermos que democracia é uma construção, que ela deve ser incessantemente aperfeiçoada, tudo será menos complicado. As deficiências desses meninos e meninas, vide quando lhes falta um argumento, uma palavra, são sintomáticas. Tudo isso se ensina e se pratica. A vontade é demonstrar que a escola é um espaço onde a democracia deve ser exercitada diariamente.

 

Nesse momento em que professores são colocados em xeque, em que se fala de doutrinação e outros absurdos, você mostra dois lados: os docentes engajados e os um tanto estagnados…
No momento, estamos discutindo coisas muito ridículas. Por exemplo, isso de uma doutrinação. Ninguém faz a cabeça de um adolescente, todo mundo pensa, reage e absorve informações de vários lados. Generalizando um pouco, há os professores que acreditam numa pedagogia mais horizontal, que investem na troca e na centralidade do debate, e outros mais burocratas, que entendem a educação como um processo hierárquico. Estes acabam conseguindo bem pouco dos alunos. Mas, por outro lado, precisamos também entender a exaustão desses profissionais que ganham mal e estão encarando salas lotadas. Acredito que ao invés de apontar o dedo para eles, precisamos pensar nas melhorias das suas condições de trabalho.

Seus últimos dois filmes, Meu Corpo é Político e Eleições, falam de questões (LGBTQI – combate à homofobia, e educação – pensamento crítico), de certa maneira, controversas sob a lente do atual governo federal. De que maneira a cidadã e Alice vê esse cenário?
O Meu Corpo é Político mostra as pessoas se movimentando nos espaços. Ali eu estava construindo, junto com as personagens, imagens de transexuais circulando, ocupando o âmbito público. No Eleições acontece algo semelhante. Pegamos jovens que sofrem por serem pobres e, muitas vezes, negros, com pouquíssimas perspectivas de futuro, e fizemos um filme em que eles elaboram, no qual têm protagonismo dentro da escola. Pensando nesse conjunto, certamente é o oposto do que está acontecendo na esfera política. Quando o ex-presidente Michel Temer congela durante 20 anos os investimentos em educação e saúde, e, mais recentemente, o atual ministro da Educação (Ricardo Vélez Rodríguez) fala que universidade não é para todo mundo, fica clara uma política pública de educação excludente. As escolas não estão formando alunos para as universidades. Isso é triste, porque há um monte de gente potente sendo privada de oportunidades de uma vida digna. Incluindo aí os professores, claro.

 

(Entrevista concedida, ao vivo, em março de 2019)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.