A experiência da estreia oficial de Encantados em Soure, nas Ilhas do Marajó, foi algo inesquecível, inclusive para Ângelo Antônio. Mesmo que as filmagens tenham ocorrido em 2008, e que o longa-metragem de Tizuka Yamasaki tenha sido exibido na Mostra de São Paulo de 2014, o ator ainda não havia conferido o resultado. Portanto, foi junto das mais de mil pessoas, numa noite estrelada, a céu aberto, que o experiente intérprete pôde se reconectar com o imaginário dos Caruanas, mais especificamente com a história da pajé Zeneida. No dia seguinte, logo cedo, a produção levou jornalistas e equipe à sede da ONG de Dona Zeneida, onde aconteceu a coletiva de imprensa embaixo de uma frondosa mangueira. Logo depois, foi a vez das conversas individuais, em cenário não menos bonito. Num quintal florido, envoltos pela natureza tão cara aos índios da região, tivemos este Papo de Cinema com Ângelo Antônio. Conversamos sobre sua proximidade com o personagem Mundico, pajé que conduz a jovem Zeneida ao seu destino, e a importância do enraizamento na cultura indígena em busca da nossa verdadeira identidade cultural. Confira.
Como se deu o processo de aproximação desse personagem, já que ele diz muito sobre coisas que lhe interessam intimamente?
Os personagens que interpretei não foram programados. Fiz um curupira, um budista, um espírita, um católico e agora um pajé. Todos são obras das circunstâncias, da sincronia das coisas, que vai me levando a fazer essas figuras. Talvez meu interesse pessoal, especificamente pela transcendência, ajude a explicar tais escolhas. Acredito que esse filme, independentemente de qualquer linha espiritual, tem algo relacionado ao que vivemos atualmente, que é um desrespeito com a cultura e com as terras indígenas, a ignorância quanto ao conhecimento destes povos. Se conseguíssemos “descobrir” que essas são as nossas raízes, seríamos um povo muito mais forte, com uma identidade cultural muito mais forte. Andamos ainda meio perdidos quanto a isso. Nossas referências são de outros lugares, nossas fontes são norte-americanas ou europeias. Assim, perdemos a chance de nos enraizar. O filme é uma semente, uma luz apontando para isso.
Para além da técnica de atuação, você parece muito tomado por esse personagem. Como você o construiu?
Do mesmo jeito que trabalho em qualquer personagem. Parto do roteiro, utilizo livros, filmes, enfim, várias referências. Portanto, o dele não é diferente do meu processo de construção do Luiz da Malhação (novela da Rede Globo), por exemplo. Neste caso, eu já tinha muitas referências, além da vontade e dessa ligação com a terra. Então, de qualquer maneira, acaba sendo mais um alimento para mim mesmo, para reforçar minha busca, meu percurso na vida. Não trabalhei diferente do que para construir um monge budista, no fim das contas. Mas, talvez tenha sido um pouquinho diferente, de certa maneira, porque sou brasileiro, e isso diz respeito às coisas do Brasil. Há muito tempo vou atrás dessa raiz.
Para você, que ainda não havia visto o filme, como foi essa sessão especial em Soure, com as pessoas na praça, recebendo, também, pela primeira vez o Encantados?
Acredito que isso ainda vai ser. Daqui a um tempo a gente vai falar dele como um momento histórico, realmente especial. Eu queria estar ali inteiro, exatamente porque sabia que seria um instante único, aliás, como todos, como este aqui, agora. Consegui estar inteiro ali e isso é mais um alimento para frente, uma dessas coisas que a gente não esquece. As estrelas, aquele público, aquele telão, aquela imagem mais ou menos, aquele som um pouco melhor que a imagem. Foi um momento inesquecível.
Nesses tempos de intolerância, inclusive religiosa, você acredita que o Encantados possa somar algo aos esforços de resistência a esse sectarismo?
É o que falávamos antes, da semente. O filme é uma sementinha no meio dessa inconsciência toda, é um foquinho de luz em meio a essa doideira que é as pessoas se acharem donas da verdade. Quem é o dono da verdade? É fundamental que respeitemos o outro, a posição do outro. Isso é rico e lindo. Historicamente, todas as guerras e conflitos acontecem, basicamente, por causa disso, em virtude da intolerância. E nós ainda não conseguimos despertar. É triste ver de que maneira o ser humano está caminhando.
A Tizuka disse que durante as filmagens houve uma série de coincidências felizes, ou talvez obra dos Caruanas, que ajudaram a produção. Contigo aconteceu algo?
Que bom que você perguntou, porque estava louco para falar sobre isso na coletiva e não tive tempo (risos). Comigo aconteceu, nada demais, mas também algo inesquecível. Meu personagem tinha um cachorro. A produção arrumou um para ficar lá comigo, daqueles treinados, aliás, tinha treinador junto, essas coisas. O cachorro tinha de estar comigo na cena do cais. Mas, na hora, esqueceram de levá-lo. Todavia, um pouco antes, quando eu estava chegando, vi um cachorro na rua, todo cheio de feridinhas, meio doente. Fiquei com dó, chamei-o e comecei fazer carinho nele. O cachorro não saiu mais de perto de mim, ficou o tempo inteiro comigo, grudado em mim. Só foi embora quando aquela cena acabou. Apenas depois a equipe ficou sabendo que aquele não era o cachorro arranjando pela produção (risos). E o cachorro, realmente, foi embora somente quando acabou a cena.
Como foi o teu contato com Dona Zeneida, essa figura ímpar?
Ela é incrível. Quero ter mais contato com a Dona Zeneida. Inclusive estava antes dizendo para ela que quero vir aqui para Soure, permanecer um pouco aqui. Ela cantando, fazendo os rituais, aquilo ficou na minha cabeça. Então, quero voltar aqui e ter mais contato com essa sabedoria.
Seu personagem e o do Thiago Martins são os primeiros homens que surgem no filme sem agressividade…
Não tinha pensado nisso. Nossa, que lindo! É verdade. Acredito que quando um ser humano consegue sair desse lugar de violência, encontrar paz e sabedoria, ele se harmoniza com tudo. Não tem mais violência, soberba, a pessoa acaba se colocando noutro lugar, num mais tranquilo e equilibrado.
Resuma Encantados numa frase.
Uma semente de consciência ecológica.
(Entrevista concedida ao vivo, em Soure, nas Ilhas do Marajó, em novembro de 2017. O jornalista viajou ao Pará a convite da produção).
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