Tizuka Yamasaki teve de ouvir muita coisa a respeito de Encantados. Filmado em 2008, pronto desde 2014, o longa-metragem teve uma série de percalços até chegar ao circuito comercial. De certa maneira, tais intempéries dizem respeito às dificuldades que uma obra brasileira enfrenta, normalmente, para completar o seu percurso natural, ou seja, para efetivamente ser vista. Tizuka, cineasta e produtora experiente, hoje entende que a espera provavelmente valeu a pena, por uma série de motivos. Ela nos convidou a Soure, cidade paraense, na Ilha do Marajó, em que a história se passa, para que tivéssemos a possibilidade de não apenas assistir ao filme numa sessão especial, na companhia da população local, mas para, de certa maneira, sermos impregnados por aquela mitologia amazônica bastante peculiar. Batalhadora como é, inclusive pleiteou apoio estatal para colocar em prática o plano de divulgação. Encantados, finalmente, está prestes a ganhar as telonas do Brasil, apresentando o mundo místico dos Caruanas e, mais especificamente, a Dona Zeneida. Neste Papo de Cinema exclusivo, Tizuka nos conta um pouco sobre o processo criativo por trás do filme, além de discorrer acerca das idiossincrasias do projeto. Confira!
Para além do âmbito intelectual, o que vem na esteira da história Dona Zeneida acabou influenciando o seu processo como cineasta?
Nunca abandonamos o intelectual, até porque há uma formação universitária e tal. Mas, o difícil é se distanciar disso para perceber o que acontece ao redor, a fim de ter um olhar isento, de minimizar preconceitos. A busca é por uma temática nova, aprender alguma coisa e, consequentemente, levar algo original ao público. Acredito que o processo intelectual vem sempre com muito preconceito. O interessante do cinema é trazer originalidade. É fácil esquecer o audiovisual e fazer literatura. Temos uma influência muito grande do formato literário nesse sentido de contar histórias. É um componente da cultura ocidental, não é como os chineses, os japoneses, enfim, os asiáticos, que têm um processo completamente diferente, mais audiovisual, de dramaturgia. Abandonar essa narrativa literária, a fim de entrar na da dramaturgia, é um processo muito difícil… Olha só, estou fazendo um discurso intelectual (risos). Não queria fazer um filme didático, tampouco um documentário sobre a pajelança. Precisava trazer alguma coisa que encantasse o público e, ao mesmo tempo, entender o que é esse universo. Foi difícil porque era um assunto novo.
Esse universo dos Caruanas é muito vasto e rico. Mesmo partindo do livro da Dona Zeneida, como manter o foco?
Mesmo em relação ao livro, utilizei uma parte pequena. Era impossível fazer um filme baseado no livro todo. Tivemos vários tratamentos de roteiro. Victor Navas trabalhou comigo. Batemos a cabeça para fazer isso acontecer. Havia uma versão em que o filme começava com o povo querendo invadir a casa da Zeneida. Todavia, depois percebi que se chamássemos atenção a isso, ao preconceito, iríamos perder a pajelança, que, para mim, era o mais importante. Ação policial você vê numa série de filmes, então, nesse sentido não ia trazer grandes novidades. Claro, seria emocionante, tudo isso, mas a coisa da espiritualidade era o meu foco. Discutimos bastante que momento da vida dela contaríamos. Optamos por esse recorte. Interessou-me a pajelança e como isso se refletia na família. Fomos pegando, também, coisas que o público pudesse entender com mais facilidade. Evitei colocar componentes que fizessem o espectador fica boiando, como, por exemplo, os homens azuis (nota da redação: no livro, são entidades com que a protagonista interagiu nesse período de descoberta dos dons da pajelança).
Por restrição de orçamento, quais coisas você não pôde colocar no filme?
Durante o processo, o meu querer vai se transformando. Temos de ter noção do que há em mãos, bem como do que é possível fazer. E fazer o melhor dentro disso. Dramaturgicamente falando, eu achava muito complicado colocar em cena esses homens azuis ou algumas coisas muito doidas que aconteceram com a Zeneida, mas que obviamente eram bárbaras. Pensei em centrar na vida pessoal influenciada por vários elementos da pajelança e aí contar a história. Então, fomos canalizando num assunto. Dá para fazer uns 500 filmes com o livro dela, partindo de 500 interpretações diferentes.
Como foi a guardar todo esse tempo para lançar Encantados, já que ele foi filmado em 2008 e está pronto desde 2014?
Xinguei muito porque não tinha dinheiro. Nossa distribuidora anterior não estava funcionando, aí levamos seis meses para fazer o distrato, a fim de realizar o acordo com outra distribuidora. Foi ótimo ter reencontrado Marco Aurélio (Marcondes). Ele tinha acabado de entrar na RioFilme. Fui voando até ele e mostrei o Encantados. Mudamos, e hoje entendo que era para ser agora. Se lançássemos em 2014, quando o filme ficou pronto para Mostra de São Paulo, ninguém iria assistir. Não era o momento. Hoje o Pará está na mídia, todo mundo quer conhecer a cultura amazônica, a culinária paraense. O carimbó está bombando. Aí venho com um filme sobre esse universo cultural e religioso da pajelança indígena. Perfeito. Nesse momento em que o país acredita em ninguém, trago a verdade de uma pessoa simples acerca da coisa mais simples, que é a natureza, no entanto, muito rica e praticamente desconhecida da população brasileira. Não posso ir no meu tempo de realizadora e produtora. Esse filme foi feito influenciado pelos espíritos da natureza. Tenho de ir no tempo dos espíritos. Compreender isso é algo bastante demorado.
E isso te desafia enquanto produtora, nessas questões de lançamento, prazos, quantidade de cópias…
Totalmente. Ouvi muita fofoca sobre o filme não estar pronto. Tive um apoio enorme do governo do Pará. Mas, mesmo aqui, existia um tititi de que peguei o dinheiro e não terminei. Estava um pouco nesse nível. Fiz uma sessão para o governador, exatamente para mostrar que o filme realmente estava pronto, explicando depois o que acontecia, dizendo que precisávamos arrumar verba para distribuição, que carecíamos de apoio. Por exemplo, esse evento aqui em Soure. Não tínhamos dinheiro para promover o filme dessa maneira. Fui buscar apoio com o governo. Para mim era importante trazer para cá a imprensa nacional, pois assim eu garantia a divulgação. O governo embarcou e ajudou. Sempre quis fazer essa projeção em Soure, até porque não há cinema na cidade. Sem apoio fica muito complicado. Quase desistimos várias vezes. Mas isso tudo faz parte do processo. Precisa ter vontade e correr atrás.
Para você, como realizadora, qual é o peso da aprovação da Dona Zeneida?
Não tem coisa pior do que terminar um filme baseado num livro e o escritor rejeitá-lo completamente. É um peso muito grande. A Zeneida é muito honesta, fala tudo que pensa. Se ela não tivesse gostado do filme, teria dito ou simplesmente se afastado. Até a véspera ela também estava com muito medo, porque cinema é o universo que ela não entende. Mas a Zeneida confiou. Foram diversas idas e vindas, muita convivência, intimidade. É o que não está escrito, a troca de olhares, o toque de pele com pele. Não dava para chegar, conhecer a Zeneida, e um ano depois filmar. Seria impossível, impossível.
(Entrevista concedida ao vivo, em Soure, nas Ilhas do Marajó, em novembro de 2017. O jornalista viajou ao Pará a convite da produção).
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