Marco Morricone é nada menos do que um dos filhos do falecido maestro Ennio Morricone. Portanto, ninguém melhor do que ele para nos ajudar a compreender o recorte que Giuseppe Tornatore fez da vida e da obra de um dos artistas mais influentes do século 20 em Ennio, O Maestro (2021). O longa-metragem documental é um dos destaques da 8½ Festa do Cinema Italiano 2022 e conta como o Morricone pai ajudou a redefinir a música feita para o cinema. Antes enxergada com certa ressalva (até mesmo pelo protagonista relutante), esse tipo de composição foi elevada pelo trabalho de homens justamente como Ennio Morricone. Conversamos com Marco Morricone para saber como foi a reação da família ao filme, que tipo de personagem era seu pai na intimidade, qual foi a contribuição da mãe para a construção de uma obra musicalmente genial, entre muitas outras coisas. Marco confirmou uma informação de que era estritamente proibido ouvir músicas em casa. Uma casa de músico em que não se pode ouvir músicas? Isso mesmo. Confira essa e outras revelações na entrevista exclusiva que o Papo de Cinema fez com Marco Morricone, filho do ícone que é o grande homenageado da edição 2022 da 8½ Festa do Cinema Italiano.
Qual foi a sua reação ao assistir a esse documentário pela primeira vez? O que prevaleceu nesse contato inicial com o recorte que o Giuseppe Tornatore fez da vida e da obra de seu pai?
Foi uma emoção forte. Assistir ao filme na tela grande gerou em mim uma sensação muito complexa de descrever. É como se meu pai nos observasse enquanto o estamos observando. Senti algo muito bonito, pois o Giuseppe utilizou tantas coisas, inclusive as que eu próprio desconhecia. Algumas eu até sabia, mas de modo fragmentado ou superficialmente. Mas, foi como se meu pai estivesse realmente ali. Foi como se meu pai dialogasse comigo novamente. O primeiro corte do filme durava 6h40. Era demasiado longo, mas mesmo assim o tempo passava muito rápido, justamente porque era como se meu pai estivesse me fazendo pequenas confidências, como se ele me contasse coisas de sua vida que ele nunca havia mencionado para mim. No final, foi muito emocionante. Meu papel primordial era o de filho, não o de um admirador da obra musical dele. Sendo filho, prevalece a parte emotiva,
O filme mostra sua mãe como alguém importante para o equilíbrio pessoal e profissional do seu pai. Fiquei curioso por saber como se dava esse equilíbrio no cotidiano e como você o percebia.
Então, por escolha, nós (a família), não quisemos participar do filme. Tratava-se de aspectos profissionais da vida profissional, quase estritamente dessa vida profissional. E nós, durante muitos anos, não tomamos parte dessa vida profissional. Era justo que não participássemos do filme. No sentido do equilíbrio que você mencionou, meu pai tinha seguramente uma alma adulta, mas também de menino. Ele tinha de criar, escrever, fazer um trabalho que pressupõe uma sensibilidade quase infantil. Nesse sentido, minha mãe o ajudava a manter viva essas almas: a do menino, a do criativo, a do rigoroso, a do marido, a do pai. Todas essas almas se moviam ao mesmo tempo nele.
E que história é essa que vocês não podiam ouvir música em casa?
Confirmo a história, pois realmente não podíamos ouvir música em casa. O perigo que angustiava meu pai era o de ser contaminado pela música que escutávamos. Por exemplo, cresci na época dos Beatles quase sem ouvi-los (risos). Podíamos fazer toda a bagunça que queríamos, pois meu pai tinha um poder de concentração impressionante, mas não se ouvia música em casa, absolutamente de nenhum modo. Nem mesmo a sua música, pois ele não queria ser contaminado pelas peças que já tinha escrito. Portanto, a música era banida de casa. Então, é verdade, ou seja, a minha cultura musical era zero absoluto (risos).
Entre as trilhas sonora para cinema de seu pai, qual você gosta mais e qual você gosta menos?
Não tem nenhuma dele da qual desgosto, de verdade. A minha predileta provavelmente é a de Era uma Vez na América. Mas, gosto muito da música absoluta. É preciso conhecê-la. A música clássica, a que meu pai chamava de absoluta, é preciso reconhecê-la e estuda-la. Existem as contaminações entre as músicas do cinema e a absoluta. E isso forma o percurso musical de meu pai. Gosto muito também de Vozes do Silêncio (nota da redação: composição que Ennio Morricone fez em homenagem às vítimas do ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001).
Você se lembra em que momento da vida se deu conta de que seu pai era um artista mundialmente reconhecido, um dos maiores maestros e compositores do século 20?
Quando comecei a rodar o mundo com ele, a viajar com ele. Sempre cuidei da minha vida. Provavelmente, consegui estar perto dele nesse sentido porque primeiro fiz minha própria vida, estruturei minha personalidade, cresci e amadureci, ou seja, era forte o suficiente para aguentar a pressão (risos). Antes, não poderia ficar pensando na atividade do meu pai, pois estava preocupado com a minha carreira. Depois, mais tarde, quando ele precisou de mim, deixei minha atividade de diretor empresarial e fui ajuda-lo. Ele pediu e eu estava a postos para ajuda-lo. Na verdade, minha mãe falou sobre isso durante um voo em que voltávamos de algum lugar. Ela pediu: “Marco, ajuda”, então conversamos bastante e eu me coloquei à disposição. Dali em diante começou o meu percurso com ele.