Nascido em Recife no dia 28 de outubro de 1963, Marcelo Gomes é um dos mais respeitados cineastas nacionais da atualidade. Representante de uma leva de novos talentos que tem surgido em Pernambuco nos últimos anos, o diretor de filmes como Cinema, Aspirina e Urubus (2005) e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009) falou com exclusividade com o Papo de Cinema durante o Festival de Brasília sobre seu mais recente trabalho já exibido nos cinemas, o drama Era Uma Vez Eu, Verônica, que acabou premiado como 5 Candangos na capital nacional, entre eles os de Melhor Filme e Melhor Roteiro. E Gomes tem mais: seu próximo passo é ir ao Festival de Berlim! Confira esse bate papo inédito e exclusivo a seguir:
Ao apresentar o filme Era Uma Vez Eu, Verônica, você disse que o construiu para a atriz Hermila Guedes, que foi um presente. Como foi esse processo de criação?
Foi a junção de vários fatores. Quando conheci a Hermila disse que um dia iria escrever um filme para ela. Adoro os personagens dela no cinema. Gosto muito da presença feminina. É um desejo que vem da cinefilia. Fiquei imaginando como seria um drama existencial de alguém que vivesse no Recife. Os longas que fiz antes se passam no sertão, então juntou o desejo de filmar na cidade, de falar dos jovens contemporâneos, de ter uma protagonista feminina e de trabalhar com Hermila. Começou com uma crônica de um personagem comum, que vai à praia. Depois veio a primeira versão do roteiro, e achei que o texto não estava próximo como eu gostaria da alma feminina, faltava algo da mulher de hoje. Então fiz entrevistas longas, escolhi 20 mulheres que são parecidas com a Verônica e conversei com elas. Elas revelaram tudo, os sentimentos, as dúvidas e reflexões. O substrato disso utilizei no filme. A questão da individualidade cada dia maior, o capitalismo mais selvagem, diferente da época em que eu era jovem, as relações afetivas mais horizontalizadas do que verticalizadas. As reflexões sobre as dúvidas profissionais…
E uma dessas mulheres foi a Hermila? Você chegou a dividir com ela o processo de construção do personagem?
Não. Depois, quando a convidei e também com as outras atrizes, elas trouxeram as experiências delas. Foi a junção destas transformações. Fico muito feliz quando as mulheres me dizem que a Verônica representa todas elas.
A Hermila Guedes tinha conhecimento dessa construção? O que aconteceria se ela não pudesse fazer o papel? Você estaria disposto a esperar por ela?
Eu tinha uma certeza profunda e quis pôr essa certeza em cheque. Fiz 600 testes com atrizes do Brasil inteiro, em São Paulo, Rio, Fortaleza, João Pessoa e Salvador, até que cheguei nela. Mas foi ótimo, conheci atrizes incríveis do país todo e foi uma experiência maravilhosa.
Em Porto Alegre existe a Casa de Cinema, que é uma junção de cineastas que colaboram entre si. Em Pernambuco tem algo similar, vocês formam um time muito forte. Como tem se dado o processo colaborativo para a produção das obras do atual cinema pernambucano?
Acho que Porto Alegre é muito parecida com Recife. O que não tem em Rio e São Paulo, lá os diretores vivem em suas ilhas com suas equipes e não interagem. Entre nós existe uma interação, existe esse diálogo. A modernidade está muito complexa, o mundo está. Está difícil refletir sobre como dizer as coisas, levantar questões. Usamos o cinema como elemento artístico para isso. Então é muito complicado, precisamos dos amigos para nos ajudar.
Como você explicaria esse ótimo momento que Pernambuco está passando no cinema? São filmes relevantes que mexem com o espectador, a crítica e os jornalistas. É algo natural ou resultado de um trabalho de anos?
Acho que Pernambuco é denso de cultura, que começou há 300 anos, quando Olinda era a grande cidade do Brasil, com a exploração da cana de açúcar. Havia uma cultura local muito forte e onde isso passa, deixa marcas. Os holandeses, ingleses, portugueses deixaram marcas. A cana de açúcar constituiu uma sociedade culta. No século passado temos a literatura regional. Tem o Ciclo do Recife, que recebe filmes que foram feitos nos anos 1920. Temos a poesia, Nelson Rodrigues veio de lá, então tem berço. Há também uma tradição dos anos 1970 dos cineclubes, e acho que tudo isso colabora de certa forma. Depois veio uma coincidência geracional, começamos a fazer cinema juntos, a se encontrar. Acho que é uma coincidência. Aí surgiram as primeiras leis de incentivo. Soma-se a isso o mérito dos cineastas, a garra. A gente tem vontade de fazer cinema.
Era Uma Vez Eu, Verônica é um filme com pé na realidade muito forte. Reflete o dia de hoje, não só em Recife, mas no país. Tem a questão do próprio título, do “era uma vez”, o gravador, um mundo idealizado também. Como foi estabelecer esses olhares sobre o filme?
Ele é um conto de fadas ao contrário. Sem príncipe encantado e final feliz, mas com personagens cheias de dúvidas, reflexões, emoções. Queremos captar essa energia do cotidiano dessas personagens. É um filme que vai desembocando em várias coisas, a crise existencial, em um samba canção, porque quer ser uma crônica, não com início, meio e fim. É um recorte do momento daquela pessoa e traz o segredo de um diário íntimo relatado em primeira pessoa. É isso o desejo do filme.
Como foi compor o resto do elenco? Como foi juntar esse time de talentos ao redor de Hermila?
Eu queria que o filme tivesse um sotaque local, com gente de Recife, mesmo. É um trabalho que mostra o Pernambuco urbano e atual. Todos os atores têm uma relação muito grande com a capital, mesmo sendo eles paraibanos, pernambucanos ou baianos. Isso traz o sotaque e a cor que eu desejava. E tem a memória afetiva deles, porque vivem naquela realidade. Então decidi convidar pessoas que de uma forma ou outra tinham essa relação muito forte e a cultura do nordeste. Descobrir o W.J. Solha foi maravilhoso, fiz um teste com ele e disse “é você”. E veio o João Miguel, que é uma pessoa que adoro. Agora sei por que Fellini fazia 50 filmes com Marcello Mastroianni, que vários diretores têm aquele ator que não largam. É muito legal porque é uma comunicação muito rápida. Sei o tipo de atuação que ele faz, sei o que quero dele. Ele sabe onde quero chegar. Tudo se adensa a cada filme.
Esse apadrinhamento também se dá entre os atores. Hermila surgiu em O Céu de Suely (2006), João Miguel apareceu pela primeira vez no cinema, e em um trabalho seu…
Quando acabei Cinema, Aspirinas e Urubus, Karim Aïnouz me ligou pedindo indicação de uma atriz. Disse que indicaria uma que seria a dona do papel. Eu sabia, e a Hermila ganhou o papel. Era a Suely que ele estava procurando.
Qual é o papel da nudez em Era Uma Vez Eu Verônica?
Um filme que vai falar do diário íntimo escrito em primeira pessoa, que busca intimidade, se não filmasse o sexo dessa pessoa, seria leviano. Queria filmar o sexo com o mesmo naturalismo que as outras cenas. Então precisei de completa dedicação dos atores, para construir uma coreografia desse sexo de uma forma completamente naturalista. Não ia fazer um corte aqui ou ali porque apareceu a genitália de alguém. Deixei a câmera ali para registrar de uma maneira quase documental. Tem que ter muita entrega do elenco e muita confiança. A câmera do Mauro Pinheiro Jr. é fantástica, nunca tinha visto uma cena de sexo filmada tão bem. Isso só foi possível porque começa com essa grande brincadeira dos dois na cama. A última frase que ela diz é “O contrário da morte é o desejo”, e acho que a Verônica tem essa relação. Sexo é a válvula de escape. Quando ela sente que vai perder o pai, ela precisa do sexo. É o que ela precisa pra destensionar. E ela usa isso nos momentos mais inusitados. Tem muito a ver com essa liberdade que a juventude possui hoje e tem muito a ver com esse vazio. A Verônica tem problema de maturação afetiva, ela até consegue profissionalmente, mas a afetiva ela talvez tenha mais tarde. Isso também é outra característica da juventude de hoje.
Como você percebeu a recepção do público?
Buscamos com Era Uma Vez Eu, Verônica o mesmo que houve com Cinema, Aspirinas e Urubus. Acho que é um público que conhece o nosso trabalho e o valoriza. Não chegamos a 1o0 mil espectadores, mas estamos felizes, pois sabemos que a cada dia está mais difícil colocar um filme nos cinemas. O Aspirinas teve um boca a boca muito bacana e houve um afeto muito grande em relação a esse novo filme também.
E o que vem a seguir?
Eu e o Cao Guimarães acabamos de dirigir juntos um filme que se chama O Homem das Multidões, inspirado no conto do Edgar Allan Poe. É o primeiro conto que trata da solidão numa cidade grande, que será Belo Horizonte. Fizemos um filme que mistura documentário e ficção e também mistura a questão de como fazer um filme. Foi uma experiência muito bacana, já passamos pelos festivais do Rio de Janeiro e de São Paulo, e agora no mês que vem estaremos em Berlim. Ou seja, tá bem emocionante.
Então os pernambucanos estão saindo de Pernambuco para conquistar o Brasil?
Isso. Estamos começando a abocanhar Minas Gerais e daqui um pouco chegamos a Porto Alegre (risos).
(Entrevista exclusiva feita com o diretor em Brasília)
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