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O documentário Era uma Vez na Venezuela (2020) chegou ao 30º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema enquanto uma das produções de trajetória internacional mais expressiva da Mostra Competitiva. O filme foi selecionado nos festivais de Sundance, Toronto, HotDocs e Miami, além de ser escolhido para representar a Venezuela no Oscar 2021.

O resultado cumpriu as expectativas. A diretora Anabel Rodríguez Rios permaneceu durante cinco anos no povoado de Congo Mirador, uma das principais fontes de petróleo do país e também, ironicamente, um dos locais mais pobres. Enquanto convive com as famílias, ela descobre a forte polarização política em torno da revolução de Hugo Chávez e da gestão de Nicolás Maduro. Enquanto Tamara, política experiente e líder do vilarejo, venera o socialismo chavista, a professora Natalie constitui a principal voz de oposição.

Por meio das vidas de algumas dezenas de pessoas, ela retrata as fortes transformações do país, assim como o desaparecimento do povoado instalado sobre casebres de palafitas. O Papo de Cinema conversou com a diretora, presente em Fortaleza para apresentar o filme:

 

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A diretora Anabel Rodríguez Rios no 30º Cine Ceará. Foto: Rogério Resende / Divulgação

 

Não era possível prever que o povoado desaparecia – os acontecimentos se passaram diante dos seus olhos. Como incorporou as transformações ao roteiro?
Foi um longo processo. A única definição que eu tinha a princípio era descobrir como as pessoas reagiam ao povoado sendo sedimentado. Elas ficariam ou partiriam para outro lugar? Lutariam em nome do povoado ou não? Esta era a investigação. Depois, começamos a escolher em quais personagens queríamos nos concentrar, e passamos a acompanhar a história de cada um deles. Trabalhamos dessa forma: gravávamos durante duas ou três noites seguidas no povoado, e tentávamos compreender de que maneira estas pessoas se desenvolviam. Com a equipe, decidimos juntos como seguir filmando cada um deles. Por exemplo, uma história que nos marcou foi a da garotinha de nove anos. Começamos a conversar com ela, tendo consciência de sua idade, e me concentrei na relação dela com as outras meninas. Passei a investigar como ela via a si mesma.
As garotas neste local são consideradas sexualmente ativas a partir do momento em que menstruam. Se elas têm dez anos de idade e já menstruaram, são consideradas mulheres prontas para o sexo. Eu percebi que ela resistia a esse papel social e achei interessante investigar por qual perspectiva ela enxergava a sexualidade. Esta se tornou um fio condutor, mesmo que por fim não tenhamos filmado tanto, e tenha restado pouco deste aspecto na montagem final. É uma subtrama discreta, mas preferimos preservá-la em segundo plano. Obviamente, esta história se desenvolveu durante muitos anos. Ela tinha nove anos quando chegamos, depois cresceu rapidamente. Hoje, esta garota tem 16 anos e vive com um homem muito mais velho em outro povoado. Foi interessante chegar a este ponto, seguindo as histórias. Fizemos isso com cada um dos personagens. Para Tamara, havia a possibilidade de seguir a história dela enquanto mulher, não apenas uma pessoa dotada de papel político no povoado. Ela sempre portou uma máscara histriônica que me incomodava muito, porque eu não percebia a pessoa por trás.
A certo ponto, queria entender a verdadeira razão da rivalidade entre ela e Natalie, a professora. Seria apenas bullying, oposição ideológica? No final, descobri que Tamara teve um amante, muitos anos atrás, e este senhor às vezes flertava com a jovem professora. Esta era uma história mais parecida com Branca de Neve, incluindo a velha que inveja a beleza da jovem. Gravamos muito desta trama, porque eu queria entender a humanidade destas pessoas. No entanto, não havia material suficiente para me focar este aspecto. Fui gravando, e à noite discutíamos com a equipe para decidir como continuar. Era preciso estar sempre prontos às situações. O encontro com o governador ocorreu por acaso, com muito incentivo da minha parte, é claro. Isso exigiu uma produção para podermos entrar ali – levamos cerca de um mês até conseguirmos as autorizações necessárias. O roteiro se encaminhava aos poucos.

 

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Era uma Vez na Venezuela

 

Como conquistou a confiança tanto de Tamara quanto Natalie, ou seja, tanto de chavistas quanto não-chavistas na hora de filmar?
Durante os cinco anos que permanecemos em Congo Mirador, Tamara não queria conversar conosco nos dois primeiros anos. Em determinado momento, a casa que eu alugava para guardar os equipamentos foi deslocada a outro povoado, assim como as casas que vemos no filme. Ficamos sem local para morar e propusemos um negócio a Tamara. Disse que eu precisava de um lugar para ficar com a equipe, e que permaneceríamos durante pelo menos um ano, o que significaria certo valor de hospedagem. Assim, ela aceitou, o que permitiu uma abertura para a câmera se aproximar dela. Eu tinha muita antipatia por ela a princípio, porque tenho aversão pessoal à vivência do chavismo. Eu detestava todos aqueles altares em glória a Chávez, mas aos poucos comecei a adotar uma postura de contadora de histórias apenas, e fui me acalmando a este respeito.
Eu a gravei durante apenas dois anos, dentre os cinco anos no total. Ao final do processo, posso dizer que gosto dela, mas isso levou algum tempo. Durante este período em que vivemos na casa dela, o povoado foi tomado por um grupo paramilitar de rapazes muito jovens, com 22 anos no máximo. Eles também ficavam na casa de Tamara. Convivemos com eles diariamente. Não pudemos gravá-los por questões de segurança, pois são muito radicais. Conto tudo isso para deixar claro que havia zonas cinzentas nos relacionamentos, afinal, também éramos pessoas ocupando aqueles espaços. A relação que se iniciou de uma maneira profissional terminou como parte integrante daquele ambiente.

 

Para falar de uma política praticada pelos adultos, é interessante que o olhar das crianças desempenhe um papel tão forte.
Na verdade, no início, eu nem pensava em relacionar as crianças com processos políticos, mas a minha porta de entrada neste povoado veio pelo trabalho realizado com os pequenos. Fiz um curta-metragem chamado El Galón (2013), e foi este projeto que me permitiu descobrir que o local estava sendo sedimentado. Decidi filmar uma história de passagem à fase adulta, uma coming of age story. Havia duas gangues de crianças que brigavam entre si, e uma infinidade de conflitos ocorrendo entre eles. Um dia, uma das gangues, composta por seis irmãos, foi embora do povoado, e fiquei sem história. Tinha uma decisão a tomar: o filme seria então sobre a história do povoado? Sobre a história daquela família? O que eu faria? Escolhi permanecer no povoado, aberta ao que aconteceria. Comecei a seguir as famílias, incluindo os adultos, e fui percebendo a polarização política no local. Esta foi uma evolução natural que ocorreu por volta do término do meu primeiro ano de estadia.

 

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Era uma Vez na Venezuela

 

Como vê a reação internacional ao filme? A imagem da política venezuelana está cercada de caricaturas pelos olhos da imprensa estrangeira.
O Festival de Sundance foi nosso primeiro encontro com o público norte-americano. No festival, o filme chamou atenção por dois aspectos em particular: primeiro, a noção de que a Venezuela seria o exemplo de como o socialismo destruiu um país. Este é o discurso mais simplório, e tomei cuidado para que o filme não caísse em nenhum dos dois lados: queria fugir à polarização política para privilegiar o humanismo. Segundo, falavam muito do fato que eles mesmos atravessavam uma polarização forte, incentivada por um líder violento. Neste aspecto em particular, o filme estabelecia uma conexão mais profunda com eles. Além disso, há o fator do exotismo da região e do olhar estrangeiro. Decidi ficar o mais próxima possível das pessoas, justamente para evitar este tipo de julgamento.
Para os norte-americanos, a aproximação com a Venezuela opera principalmente por meio da grande mídia – o New York Times fez excelentes reportagens a respeito, aliás. Mas são informações um pouco frias. A decisão de me aproximar das pessoas traria uma sensação mais próxima de realmente experimentar aquela situação com eles. Os tchecos e romenos se aproximaram de maneira totalmente diferente do filme, porque viveram um contexto político mais próximo do venezuelano. Eles conhecem esta pressão para aderir ao partido do governo, senão lhe retiram o trabalho e a comida. Os espectadores de lá conseguiam se identificar com esta realidade por um viés crítico.
Já na Europa, foi muito mais difícil entrar com o filme, tenho que admitir. Levamos o filme à Espanha, em Málaga, onde também se ativeram à dicotomia socialismo-capitalismo, devido à presença do Podemos no poder. Eles se tornam menos empáticos com as pessoas que sofrem a pressão do sistema, a exemplo da professora. As reações variam muito de acordo com as vivências de cada sociedade. Recentemente, um festival de direitos humanos na Polônia, o Watch Docs, premiou Era uma Vez em Venezuela, o que foi bastante significativo para nós. Afinal, esta parte da Europa possui no DNA uma configuração política semelhante à nossa. Foi um espaço excelente para falar da nossa vivência.

 

Os venezuelanos já assistiram ao filme? E as pessoas de Congo Mirador?
O filme está sendo exibido neste exato momento na Venezuela. A sessão ocorre de modo online, o que representa um acesso muito elitista dentro do país. Mesmo assim, as pessoas se identificaram bastante com o filme até agora. O fato de ter sido escolhido para representar a Venezuela no Oscar se tornou algo importante, porque sabem que esta não é apenas a realidade de Congo Mirador, e sim de toda a população nacional, vivendo em situação precária, enfrentando a fome e outros graves problemas estruturais. Mesmo a classe média enfrenta a fome atualmente. A possibilidade de esta história chegar a outros olhos agrada muito o público local. Em fevereiro, vamos apresentar o filme, com apoio do Festival Idfa, pelas ruas da cidade, gratuitamente. Vai ser algo muito intenso, de apenas duas semanas. Depois disso, pretendo liberar o acesso em Caracas para chegar aos DVDs piratas. Na cidade, é muito comum as pessoas gravarem DVDs piratas e distribuírem pelas ruas. A ideia é que aconteça o mesmo com o nosso filme: quanto mais pessoas o virem, melhor. Vamos fazer uma sessão em Maracaibo – já sei que Tamara viu o resultado na tela do computador, mas não é a mesma coisa de ver na tela do cinema. Natalie também está muito ansiosa para descobrir o resultado.

 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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