O diretor Eryk Rocha tem operado em diversas frentes dentro do audiovisual. Além de dirigir ficções (Transeunte, 2010) e documentários (Campo de Jogo, 2015, Cinema Novo, 2016), em formato de longa-metragem e curta-metragem, ele participou de projetos pedagógicos no audiovisual como o Graduate XXI, e agora trabalha como curador de curtas-metragens da plataforma de VoD Filme Filme.
Ao mesmo tempo, Rocha estava pronto para exibir seu novo longa-metragem, Breve Miragem de Sol (2019), em diversos festivais pelo mundo, após uma passagem elogiada pela Mostra de São Paulo. Com a pandemia de Covid-19, estes festivais foram suspensos, o que leva o diretor a repensar o caminho do filme daqui para frente. Seria o streaming uma saída viável para este momento? O diretor justifica a necessidade de “reinventar o espaço social do cinema”:
De que maneira o lançamento de Breve Miragem de Sol é afetado pelos cinemas fechados e pela suspensão de festivais?
Todos os festivais em que o filme estava convidado foram cancelados. O nosso plano inicial era continuar a trajetória de festivais internacionais e brasileiros o ano inteiro. Breve Miragem estava confirmado em pelo menos dez festivais até julho, e todos foram suspensos. Semanalmente, recebo novo e-mail dos festivais interrompidos. Nenhum deles mudou para uma versão online: Toulouse, Paris, Indie Lisboa, Munique, Karlovy-Vary, BAFICI, Montevidéu, todos suspenderam as edições deste ano. Então o cenário que nós imaginávamos para o filme mudou por completo, os planos caíram por terra. Agora precisamos reinventar as estratégias de lançamento para ele. Já temos algumas ideias a respeito. Ainda devemos ter festivais para o final do ano, porque já temos uns três ou quatro confirmados. A princípio, eles ocorrem depois de outubro, mas é possível que também não existam esse ano. Mesmo se os festivais se mantiverem, estou muito inclinado a pensar outro conceito de lançamento, antecipando a data dentro de outra estratégia.
Este caminho passaria pelo streaming?
Exatamente. Eu pensaria no caminho do streaming. Já recebemos algumas propostas neste sentido, mas ainda estamos em fase de análise. Primeiro, temos que aceitar esta nova realidade, o que representa um desafio. Todos os filmes que fiz até hoje percorreram o caminho dos festivais, passaram em tela grande, motivaram debates com o público, discussões coletivas. Foram exibidos em diferentes tipos de sala. Essa situação é muito nova, e para mim também. Preciso desapegar de certa imagem, porque nada do que eu tinha projetado vai acontecer. O coronavírus está afetando nossa relação com o mundo, é um desvio, um sobressalto da humanidade. Cada um pode interpretar de uma maneira, mas ninguém sabe para onde vai tudo isso. No caso dos trabalhadores de cinema, teatro e música, perde-se muito. Não sabemos quando as salas voltam a funcionar. Talvez tudo esteja normal perto do fim do ano, talvez ainda demore um ano a mais. São lugares de alto risco para a propagação do vírus.
Entendo esse desapego de certa imagem da sala de cinema. Eu assisti a Breve Miragem de Sol na Mostra de São Paulo, na tela grande, com boa qualidade de som.
A relação de ver um filme em casa é muito diferente. Agora precisamos reinventar o espaço social do cinema, reinventar a relação social com os filmes. Ao mesmo tempo, investimos num caminho que pode trazer outra potência ao Breve Miragem. Outras surpresas podem aparecer neste modelo. O filme trabalha a solidão de um homem, através de um personagem que também está exilado de seu próprio país. Existe um caráter de refúgio, um estado particular que evoca bastante o que vivemos hoje. Isso afeta também a questão do celular como elemento narrativo, político e de mediação com o mundo. O celular, o WhatsApp, as fotos do filho são fundamentais ao personagem. Precisamos pensar em possibilidades como o lançamento em streaming, neste momento, de maneira muito real e concreta.
Além disso, o filme é bastante claustrofóbico, e também evoca a sensação de isolamento e reflete nosso comportamento agora.
Exatamente. Penso também nas redes de motoristas, porque talvez com os serviços de streaming, o filme possa dialogar com uma bolha além da cinefilia tradicional. Existem diversas possibilidades interessantes neste sentido. Podemos incorporar os taxistas nesta campanha de lançamento. Esta é a situação de hoje em relação ao Miragem. Temos uma rede de parceiros, e agora precisamos dialogar com a Ancine, com o Fundo Setorial. Nós temos um compromisso contratual com o FSA de estrear em sala de cinema, e agora precisamos ver como isso vai se adequar à nova realidade. Temos que discutir os novos arranjos. Provavelmente, vai ser difícil esperar um ano, um ano e meio até lançá-lo de vez. Parece mais provável adiantar o processo e lançar ainda este ano.
Que medidas você esperaria que o governo federal tomasse durante a quarentena para proteger o cinema nacional?
A primeira coisa seria reativar a Ancine. Ela precisaria retomar centenas de projetos paralisados no momento. Este seria um movimento essencial. Eu tenho dois projetos de longas-metragens já aprovados, com resultado publicado no Diário Oficial, e que foram paralisados pela burocracia da Ancine. Existem muitas leituras para interpretar esta paralisação, que é muito anterior à pandemia, e só tem se intensificado desde então. Então primeiro a Ancine precisaria retomar os trabalhos de modo sério para reaquecer o audiovisual e o mercado. Junto a isso, evidentemente, seria preciso lançar novos editais visando não apenas o audiovisual, mas toda a cultura e a arte. O governo federal tem interrompido todo esse processo. Nós sequer temos um Secretário do Audiovisual no Brasil. A situação é de calamidade.
Alguns diretores acreditam que o foco deveria ser a luta pela manutenção dessas ferramentas de fomento. Outros acreditam na importância de encontrar meios alternativos de financiar os filmes, já que o governo não parece favorável ao cinema.
Existem muitas frentes de batalha, mas acredito que sejam convergentes. Não podemos abrir mão da Ancine e do Fundo Setorial do Audiovisual. O governo se comprometeu com alguns projetos e precisa honrar este compromisso. Não podemos perder esta luta. A máquina precisa voltar a andar enquanto discutimos o futuro da Ancine, um novo modelo para ela. Infelizmente, vamos ter que dialogar com este governo a respeito. Vamos precisar encontrar algum ponto de diálogo enquanto trabalhamos em novas frentes de financiamento. São muitas transformações que estamos vivendo de maneira muito vertiginosa. O mundo, o Brasil e o audiovisual se transformam neste momento. Precisamos botar a bola no chão e repensar o espaço da arte. Tudo vai ser reconfigurado daqui em diante.
As novas políticas públicas, seja da Ancine, ou políticas de coprodução, terão que ser repensadas a partir dessa realidade. Onde o filme vai ser exibido, em qual janela? Como isso vai afetar a linguagem dos filmes? O “nós” desse povo passa a ser questionado: quem somos nós? Que devir é este? Que humanidade, que povo brasileiro é esse? Tudo isso é colocado em xeque, e a experiência do cinema obviamente passa por isso, porque o cinema é uma ferramenta complexa para ler o mundo e interpretar o que nós somos. Este é o momento de fazer perguntas profundas, e um momento de imaginação. O modelo que conhecemos se esgotou, e estamos numa encruzilhada. O esgotamento de um modelo de cinema pode produzir medo e certa sensação de cansaço, mas também é um momento de criatividade, de renovação muito grande. Pelo menos, há perspectiva de algo muito fértil, e o streaming representa um campo vasto neste processo.
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