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Anotem aí: Espero Tua (Re)Volta é um filme de pegada acelerada e potencial incendiário. O Papo de Cinema já assistiu ao novo longa-metragem de Eliza Capai (a crítica será liberada apenas próximo à estreia, provavelmente no segundo semestre), justo na iminência da cineasta embarcar para o Festival de Berlim a fim de apresentar Espero Tua (Re)Volta na Mostra Geração, espaço privilegiado da Berlinale com programação voltada a jovens de 14 a 18 anos. Nada mais apropriado, então, que a première mundial do documentário ocorra num dos festivais cinematográficos mais politizados do mundo, falando diretamente ao público jovem. Espero Tua (Re)Volta preserva a perspectiva dos então adolescentes que fizeram parte das ocupações das escolas secundaristas no estado de São Paulo, assumindo uma luta contra o desmantelamento do ensino público. Conversamos com Eliza por telefone e podemos dizer que foi uma daquelas entrevistas gostosas que poderiam durar até agora, tão proveitoso e fértil foi o bate-papo sobre a construção narrativa do longa-metragem e a conjuntura político social que o permitiu existir. Eliza é jornalista formada pela Universidade de São Paulo (ECA/USP), assinou a direção e roteiro de 15 curtas-metragens e quatro séries para TV, três séries para web, além de três médias e dois longas-metragens documentais. Além disso, foi bolsista do OpenDocLab no MIT (Massachussets Institute of Technology). Sem mais delongas, vamos ao Papo de Cinema com Eliza Capai, que ainda vai dar muito o que falar com Espero Tua (Re)Volta.

 

 

O que te levou a fazer um documentário calcado nas manifestações secundaristas provocadas pelas arbitrariedades estatais quanto ao ensino público?
Há uma resposta que eu inicialmente dava, e outra que fui amadurecendo, como mais complexa, durante o processo. Pragmaticamente falando, o filme surge quando entro na ocupação da ALESP (Assembléia Legislativa de São Paulo), em maio de 2016, naquilo da CPI das merendas. Fique surpresa pela forma como os jovens levavam as lutas para seus corpos. Vi a complexidade e percebi a grande mídia cobrindo tudo de cima, distante. Achei difícil entender o que estava acontecendo com aquela molecada tão marginalizada. Como eles atingiram tamanho grau de organização? Eu e a Mariana Genescá, produtora, tínhamos acabado de nos conhecer e saímos dali perplexas, querendo fazer um filme sobre isso. Comecei a refletir no decurso das coisas, olhando para minha história pessoal. Nasci na Ditadura e cresci com histórias sobre ela. Meus pais se conheceram na faculdade, ambos faziam parte do movimento estudantil. Meu pai foi preso politico, torturado, exilado, passou por Chile e Argentina e testemunhou os regimes de lá. Isso me marcou profundamente. Quando acaba a Ditadura Militar, são novamente permitidos os grêmios estudantis. Eu e meus amigos, com cerca de 12 anos, fundamos o primeiro grêmio estudantil da escola pública em que cursei o ensino fundamental. Isso tudo marcou minha pré-adolescência. Quando fui para ensino médio, numa escola particular, os grêmios eram proibidos, havia a sombra da Ditadura. Esses jovens que observei no filme são filhos da democracia,  desse novo momento. Meu olhar nascido na Ditadura mirou eles com encantamento.

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Como você chegou ao Lucas, à Marcela e à Nayara?
Houve uma pesquisa grande. Queria incluir entrevistas de muitos jovens, de correntes politicas e estados diferentes. O desejo era falar das ocupações que rolaram no Brasil inteiro, mas optamos pelo recorte de São Paulo. Realizamos bastante pesquisa em arquivos, na imprensa e em filmes. Conheci a Nayara na ocupação da ALESP. Tinha rodado muito material, mas ela não seria uma protagonista, isso até o ultimo minuto. Já tinha encerrado os trabalhos e, numa noite, um deles me passou a mensagem falando da ocupação da câmara municipal. Naquele momento, quando vi a Nayara subindo na mesa, peitando os policiais, sua capacidade de articulação política e como conseguia pensar estrategicamente a luta, fiquei encantada. Ela surge bem no fim do processo, foi a última personagem concretizada. Quanto o Lucas, já tinha visto vários vídeos dele que viralizaram na internet, era um personagem carismático. Achei a forma dele se comunicar bem interessante. Descobri que Lucas era ator, destacava-se nos SLAM e naquele momento atuava na novela Malhação, da Rede Globo. Essa complexidade me pareceu interessante. Ele é fascinante enquanto narrador, pois consegue circular entre diversas facetas do movimento estudantil. Por fim, a Marcela surgiu quando peguei um material com o Henrique Cartaxo. Perguntei quem ele achava que tinha se transformado mais nesse processo das ocupações. No material 2015 a Marcela nunca é protagonista, está ali, mas não toma a frente. A partir do empoderamento que ocorreu durante as ocupações, ela vira protagonista da própria história, uma jovem que encara os racismos e preconceitos sentidos e fala “basta”. Ela foi muito aberta ao dividir sua história conosco. Houve um desejo de protagonizar, de dar a cara, com tudo o que isso representa. Os três abraçaram essa bronca.

 

Por que para você era importante preservar a perspectiva jovem como base da narrativa?
Uma das coisas que entendi, bem no início, é como as lutas secundaristas arrefecem com o tempo, assim voltando ao zero. A inspiração da galera de São Paulo foi um documentário sobre ocupações estudantis no Chile. Entendi como o audiovisual era protagonista nessa história, uma vez que o filme chileno serviu de combustível vital. Tive o desejo de me comunicar com eles, de fazer um filme que interagisse com a geração registrada e os próprios secundaristas e/ou universitários de hoje. Atualmente, é muito difícil manter a atenção dos jovens por uma hora e meia, então havia um desafio: como conseguir isso? Foi realmente um mergulho de linguagem. Os próprios protagonistas mostraram essa agilidade. Tínhamos um grupo de estudo formado por ex-secundaristas que participaram das ocupações. Fui entendendo que o mundo deles era bem ligado a séries, Netflix e YouTube. Meu filme é absurdamente acelerado, traz muita informação. Nunca foi o objetivo fazer o público entender tudo. Quero que os espectadores sejam bombardeados pelo dinamismo, que saiam com isso na cabeça e no corpo, tendo a possibilidade de refletir.

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Nota-se no documentário uma aversão às teses, sendo mais importante a reflexão motivada por pontos de vistas diversos. Isso estava presente desde a gênese do projeto?
Isso foi um das estacas do projeto. Quando começamos o filme, já estávamos numa sociedade polarizada, agora, quando ele será lançado, ainda mais. A premissa era justamente possibilitar a complexidade. Queremos dialogar com as pessoas e mostrar a multiplicidade disso. A mídia endeusa ou criminaliza os movimentos sociais, isso de acordo com o veículo e o posicionamento ideológico dele. Vivemos no momento de guerras meméticas (de memes), em que todos parecem mais afeitos a “lacrar”, passando longe de entender realmente o que está acontecendo, por exemplo, no que tange ao crescimento dos discursos que defendem o autoritarismo. É importante dar um passo atrás e entender o que está rolando. Não existe uma verdade única. Mostrar essa complexidade é permitir que as pessoas saiam pensando. Não queríamos convencer, mas proporcionar reflexão. Por exemplo, se você coloca MST no Google, vai ver que os primeiros resultados são negativos à organização. Mas, por que criminalizar um movimento que luta por terra, um agrupamento constitucional? Queríamos sair de um lugar de criticar tudo e abrir ao debate.

 

O filme tem um posicionamento, não se esconde atrás da utopia da imparcialidade. Como espera que ele dialogue com quem pensa diferente, sobretudo, com relação às ocupações?
Acho que não existe “essas pessoas que pensam diferente”. Vivemos num momento em que alguns não têm abertura para questionar determinados temas. Com gente não disposta a refletir, não haverá reflexão. Tenho alguma esperança de que, especialmente os jovens, atualmente bombardeados nessa guerra memética, que às vezes repetem coisas sem refletir, possam se questionar sobre os vários pontos que o filme coloca, tais como as lutas sociais e a discussão acerca de gênero e do feminismo. Tenho esperança diante de quem é curioso e não pretende ler o mundo de forma tão rasa. Há muita discordância, mas se há uma coisa que todos entendem é que existe algo de absolutamente errado no Brasil, problemas graves de injustiça, de corrupção. Quanto a isso, estamos de acordo.

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Nayara Souza, Eliza Capai, Marcela Jesus e Lucas “Koka” Penteado

Como se deu o processo de montagem, principalmente no que diz respeito ao aproveitamento dos materiais de outros suportes e autores?
Foi caótico, complexo, angustiante e divertido, tudo ao mesmo tempo. Comecei editando sozinha algumas cenas do material de arquivo, fazendo estudos do que rolava ou não. Fiz o teaser e acabou que ele foi muito importante durante o processo, pois fizemos uma promessa grande ali quanto à narrativa. Tivemos uma responsabilidade imensa, pois foi difícil encontrar a linguagem acelerada daquele teaser num filme de uma hora e meia. Quando estudei no MIT (Massachussets Institute of Technology) e em Harvard, utilizava o trabalho com ele na aula de montagem. Por isso, o filme nasceu sendo observado por pessoas que não sabiam da conjuntura política do Brasil. Isso foi me ajudando a pensar numa narrativa ampla. Depois, o Yuri Amaral entrou com olhos frescos e curiosidade sobre o tema. Fizemos versões do filme. Em momentos ficávamos juntos, noutros entrávamos em crise, passávamos o corte de um para o outro, e parecia que o filme não fechava. Só entendi que o documentário encerrou quando o Bolsonaro foi eleito. Ali compreendi que o resultado das eleições encerrava o ciclo iniciado em 2013, em alguns aspectos. Foi uma edição tensa, inclusive o Yuri começou a fumar mais, afinal não é fácil ficar editando bombas estourando a todo o momento. Porém, ao mesmo tempo foi um processo muito divertido, uma vez que estávamos em contato com aquela molecada. Inclusive, não queríamos perder a irreverência deles, a despeito da gravidade do tema.

 

Você está prestes a embarcar para Berlim para mostrar o filme num espaço privilegiado. Como está a sua expectativa diante do público estrangeiro?
Estou muito feliz e emocionada, especialmente por estrear na Mostra Geração, destinada a um publico entre 14 a 18 anos. Mais ainda por ser numa cidade com a história de Berlim, importante para o mundo tal e qual entendemos hoje. Vamos estrear na casa de cultura de Berlim. Comecei a tremer depois de pesquisar o local no Google (risos). Imagino que teremos um público formado prioritariamente por jovens e pessoas apaixonadas por cinema. Não tenho ideia de como será a reação, mas estou animada para saber o que as pessoas vão entender desse filme. Acredito que teremos um publico importante de brasileiros que moram fora e que, de alguma forma, têm alguma revolta com o momento do nosso país. Estou realmente curiosa, principalmente para conversar com os jovens de lá. Vou fazer contato com os grêmios para convida-los à sessão. Espero que esse filme tenha uma capacidade de troca.

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Lucas “Koka” Penteado. Crédito – Carol Quintanilha

No filme você chega até a posse do presidente Jair Bolsonaro, cujo plano para o ensino passa por uma transformação no âmbito público. O que acha dessa nova política educacional?
Jair Bolsonaro é um presidente de extrema direita, que claramente governa para a elite, que criminaliza abertamente movimentos sociais, aliás, como nunca foi feito. Por esse prisma, suas propostas para a educação são totalmente coerentes, a começar pela Escola Sem partido. É um nome cretino, pois nega a escola como espaço crítico. Já o ensino à distância evita que as pessoas se conheçam e se relacionem. O Ministro da Educação acabou de falar que ensino universitário é para as elites. Eles querem o Brasil de outrora, em que apenas os mais endinheirados tinha acesso ao conhecimento. O resto vira mão de obra braçal e barata. A nossa escravidão é clara. Está na sociedade até hoje, basta olhar para os presídios e as favelas. O atual governo deseja que tudo continue assim. Esses meninos e meninas que tiveram tal grau de organização e consciência política são, não por coincidência, da primeiríssima geração que nasceu quando o Brasil teve, pela primeira vez, uma política de inclusão social, a moeda estabilizada, quando surgiram as políticas de cotas e o Bolsa Família ganhava força. Até me arrepio dizendo isso, porque dá alegria e tristeza ao mesmo tempo. Essa geração quer mais. Pela primeira vez, vimos políticas públicas que prezavam pela distribuição de renda. Muitos aceitam esse discurso atual porque querem continuar privilegiados. Esse governo quer devolver determinados grupos de volta para a senzala, para o armário e dar um basta aos movimentos.

 

(Entrevista concedida por telefone, numa ponte Rio de Janeiro/ São Paulo, em janeiro de 2019)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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