Nesta quinta-feira, 20 de janeiro, os cinemas recebem uma pequena pérola no circuito comercial: o polonês Eu Não Choro (2020), dirigido por Piotr Domalewski. Na trama, a jovem Olka (Zofia Stafiej) descobre que seu pai morreu num acidente de trabalho na Irlanda, onde mora. Única da família a falar inglês, a adolescente polonesa precisa viajar ao país vizinho e resolver uma complexa burocracia para conseguir repatriar o corpo do pai. Enquanto isso, começa a descobrir um lado mais humano do falecido, através das opiniões de amigos e colegas de trabalho dele. Leia a nossa crítica.
Exibido nos festivais de San Sebastián e Tóquio, o drama traz uma combinação delicada de realismo social e drama pessoal, em função da classe social desprivilegiada de Olka, e da maneira bruta como a garota lida com as más notícias. Nós conversamos em exclusividade com o cineasta, que também possui extensa carreira como ator, a respeito deste projeto maduro e comovente:
É frequente a situação de um homem como o pai de Olka, precisando se mudar para um país vizinho para encontrar emprego?
Sim. Minhas informações datam de uma situação de quatro, cinco anos atrás, e sei que as coisas estão mudando rapidamente. Mas esta é uma questão importante aqui: a imigração por motivos econômicos. Cada geração tem sua própria rota de imigração, e para a minha geração, até para a geração anterior, o fluxo se destina principalmente à Grã-Bretanha. Diria que 30% das pessoas da minha faixa etária, que terminaram o Ensino Médio comigo, tiveram que se mudar para outro país por motivos financeiros – especialmente na minha parte da Polônia, porque eu venho do leste, que é a parte mais pobre.
Muitos dramas sobre o luto pulam rapidamente pelos procedimentos burocráticos da morte, mas o seu filme investiga toda a papelada, as autorizações, a compra de caixões. Por que decidiu se focar nisso?
Eu me foquei no processo, mas queria encontrar a dramaturgia através desta burocracia. A papelada decorrente do luto parece técnica demais, mas para ser sincero, as pessoas que passam por este momento, gastando dinheiro e arranjando documentos, têm emoções fortes em relação ao falecido. Eu queria mostrar como é difícil para esta garota, e como o aspecto frio da papelada se confronta com as emoções que ela experimenta nesta hora. É engraçado: no começo do filme, ela deseja apenas concluir esta fase administrativa. Mas durante o processo, passa a ver o pai de outra maneira, encontrando o aspecto humano dele. A princípio, Olka identifica este homem apenas enquanto figura paterna, obrigado a sustentar a família.
Ironicamente, ela só conhece o pai quando ele já está morto.
Exato! Também acho isso irônico. Este é o meu segundo filme, e já filmei o terceiro. Sempre tento fazer com que o protagonista atinja o objetivo que tinha a princípio, mas de uma maneira que nunca imaginaria. Este é o caso de Olka.
Olka não chora. Como quis transmitir as outras emoções da garota?
Algo que me interessa muito nos filmes é o fato de não precisar revelar de maneira direta as emoções dos personagens. Quero sentir estas emoções por mim mesmo, sem fazer a atriz chorar, gritar, nada parecido. Ela não precisa chorar, mas o espectador pode ficar comovido por conta própria. Este era o desafio que eu tentava superar. Olka é bastante emotiva, no fundo, mas ela tenta esconder essas emoções. Ela acredita que essas emoções a tornam mais fraca, ou seriam um motivo de vergonha. Isso está ligado ao ambiente onde ela cresceu, de classe média-baixa. Este também é o meio onde eu cresci. Eu acreditava que as emoções me tornariam mais fraco, ou pelo menos as outras pessoas me perceberiam assim.
Como encontrou e preparou Zofia Stafiej para o papel? É uma grande responsabilidade, porque a câmera está focada nela o tempo inteiro.
Foi um grande desafio, não apenas encontrá-la, mas também convencer o produtor que ela seria capaz de interpretar Olka. Os produtores sempre esperam, sobretudo no caso dos jovens, que seja um ator experiente. Eles são como diretores de grandes corporações: buscam pessoas muito novas, mas com dez anos de experiência. Mas depois confiaram em mim, quando insisti que fosse uma pessoa nova, para se tornar o rosto do filme. O filme se tornaria tão bom quanto ela fosse. Gosto de assistir a filmes quando sou capaz de acreditar no protagonista. Com isso, quero dizer que conseguimos acreditar que aquelas coisas estão realmente acontecendo com aquelas pessoas. O cinema contemporâneo é assim, em termos de dramaturgia: precisamos acreditar no que vemos. A época das produções onde Bruce Willis interpretava um morador pobre do bairro, ou um professor de física nuclear, já era. Isso sempre foi uma piada com o espectador, na verdade. Queria criar um filme verossímil. Por isso, fizemos um teste com 1200 fitas enviadas online, e escolhemos 50 ou 60 pessoas para encontrar pessoalmente. Zofia foi muito intensa.
Tenho uma anedota curiosa a respeito: ela tinha começado a estudar artes dramáticas há dois meses, e os alunos no início da formação não são autorizados a participar de testes. Se quiserem, precisam ter uma autorização formal das autoridades. Algumas agências disseram aos jovens: “Temos dois testes, para Eu Não Choro e para uma comédia romântica. Se quiserem participar, serão obrigados a irem aos dois testes”. Isso contava como atividade extracurricular, não necessariamente como algo profissional. Era só para ter experiência inicial com testes. Zofia Stafiej realmente não queria participar do teste para a comédia romântica, de modo nenhum. Quando ela chegou ao nosso teste, ela se confundiu, e achou que era o teste da comédia romântica. Ela queria terminar a cena o quanto antes e ir embora. Eu pedi: “Zofia, pode mudar isso um pouco, falar de maneira mais suave?”. Ela me respondeu: “Não, vou fazer do jeito que eu quero”. Eu aceitei, contanto que fosse convincente e bem atuado. Ela estava muito bruta, até grosseira. Só quando ela voltou para casa, percebeu que a cena que tinha acabado de fazer não tinha nenhuma relação com comédias românticas. Quando releu o e-mail, viu que o primeiro teste era para Eu Não Choro. Talvez por causa disso, Zofia foi super natural. Era a combinação perfeita entre a força, o temperamento e as emoções que estávamos procurando. Desde o começo, ela me pareceu forte o suficiente para ter a câmera no rosto dela o tempo inteiro.
Algumas escolas de atuação acreditam que os atores precisam se conectar com dores reais de suas vidas; outras insistem que os atores devem ser protegidos, e que estas cenas precisam ser só profissionais. Como foi o trabalho com Zofia Stafiej? Talvez o fato de ser ator profissional influencie sua abordagem.
Isso influencia um pouco sim. Às vezes eu sei de que maneira abordar a atriz para obter o resultado que desejo para o filme. Mas cada ator é diferente, as pessoas são muito diferentes entre si. Zofia era perfeita em termos de dosar as emoções e encontrar o tom desejado. Mas na condição de iniciante, ela tinha muito medo da coreografia da cena. Basicamente, treinamos muito, até gravando, as cenas já nas locações reais, como uma pré-filmagem. Quando era possível, ela já ensaiava com os atores reais com quem iria interagir. Assim, ficava segura quanto ao percurso, e então era possível deixá-la tranquila para apenas atuar. Eu não conhecia a história pessoal dela durante as filmagens mas ela me confessou depois que o pai dela tinha morado em Dublin durante dois anos. Ele não trabalhava na construção civil, e sim num banco. Ela até ficou seis meses com ele em Dublin, quanto tinha 11 anos. Ela carregava esta experiência dentro dela, de certo modo. Foi impressionante. Ela era muito dedicada à atuação, ao papel.
A estética traduz os sentimentos dela. As imagens estão sempre nubladas, ventando, frias, e um tanto azuladas. Como veio esta escolha?
Para ser sincero, este é o clima padrão na Polônia! Não foi nada difícil criar essa atmosfera! Mas com meu diretor de fotografia, decidimos que a parte na Irlanda não poderia ser muito diferente das filmagens na Polônia. Afinal, a visão da Irlanda enquanto terra prometida existe apenas nos sonhos dessas pessoas. Quando você observa de perto, as duas experiências são semelhantes: o clima, as paisagens, o horizonte. Nosso objetivo era mostrar a continuidade entre os dois cenários. Trabalhei com um diretor de fotografia muito conhecido e premiado. Piotr Sobocinski Jr. é muito famoso na Polônia. Felizmente, ele é bem dedicado ao filme. Nunca precisamos adaptar nossa premissa para nos encaixar ao ponto de vista dele; foi ele que quis encontrar o ambiente do filme conosco, para ajudar a dramaturgia. A estética veio disso.
Existem poucas imagens do pai, e assim podemos projetar nossa imaginação desta imagem ausente. Por que fez esta escolha?
Às vezes, tenho algumas ideias estranhas, e nem sei de onde vêm! Mas sou fiel a estes impulsos. Meu primeiro filme, o curta-metragem Stranger (2013), mostrava dois homens do campo, que precisavam guiar um desconhecido numa visita pela propriedade. Esse homem não diz uma única palavra durante o filme inteiro. Ninguém sabe quem ele é: o personagem se limita ao desconhecido. Da mesma maneira, acreditava que esse pai precisava ser ausente. Recebi sugestões dos produtores de filmar cenas do passado, ou lembranças de Olka para a parte inicial. Mas decidi ir pelo caminho oposto: o espectador enxerga apenas as imagens do pai que a garota também encontra no caminho. Ela descobre apenas a fotografia do cadáver no jornal, e esse vídeo ridículo gravado com um telefone celular, quando os trabalhadores se divertem na construção. Isso é engraçado, mas também é duro, em termos de emoção. No fundo, é isso que sobra de uma pessoa no final: as banalidades. Se vissem o álbum de fotos do meu celular caso algo acontecesse comigo, encontrariam apenas fotos engraçadas e memes. Nada significante. Bom, essas imagens foram significantes para mim naquele período da vida.
Pretende manter esse tipo de humor sutil no seu próximo filme?
Não. Agora, vou fazer um filme baseado nesta ambientação, semelhante a Eu Não Choro. Mas meu terceiro filme foi feito para a Netflix, e já está disponível. Queria fazer algo totalmente diferente, para experimentar, testar outras linguagens. Você pode assistir na plataforma, ele se chama Entre Frestas (2021). Ele teve uma boa resposta nos festivais da Polônia, mas não fomos autorizados a exibi-lo em festivais internacionais, o que é uma pena. Acho que é um drama comovente, com uma direção de fotografia muito bonita. O tema também é importante: talvez você não saiba, porque 90% dos poloneses sequer conhecem este episódio da história. Houve um grande movimento, no fim do comunismo na Polônia, quando os serviços secretos investigavam e detinham homossexuais, para forçá-los a cooperar com o sistema. Eles eram manipulados e chantageados. O filme aborda estes fatos. Foi uma boa experiência, e tenho orgulho deste filme. Mas não fui o autor do roteiro, e talvez por isso, o resultado seja tão diferente.
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