Luiz Bolognesi se considera, antes de qualquer coisa, um contador de histórias. Documentarista, um dos roteiristas mais requisitados e premiados do cinema brasileiro, vencedor da estatueta principal do Festival de Annecy – até então inédita ao Brasil –, ele agora chega às telonas com Ex-Pajé (2018), longa-metragem sobre o brutal e gradativo etnocídio das tribos indígenas da Amazônia profunda. Depois de consagrar-se no Festival de Berlim, de onde saiu com um troféu especial do júri, Luiz submeteu sua mais nova criação ao público brasileiro, participando da mostra competitiva nacional do É Tudo Verdade. Ganhou o prêmio da crítica, oferecido pela ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). O realizador nos recebeu para este Papo de Cinema antes da sessão do filme no evento idealizado por Amir Labaki. Muito simpático e descontraído, ficou entusiasmado quando mencionamos que o público carioca estava bastante interessado por Ex-Pajé e, antes mesmo do gravador ser ligado, com a empolgação de quem está orgulhoso de seu “filho”, pontuou o cuidado técnico que a equipe teve, e a entrega de todos, inclusive de profissionais, de acordo com ele, “muito caros”, que toparam mergulhar na floresta para contar essa história centralizada na figura trágica do ex-pajé Perpera. Confira nossa conversa exclusiva com Luiz Bolognesi:
Como você chegou ao povo Paiter Suruí e ao Perpera?
Tenho um interesse grande pela questão indígena, pelo conhecimento acerca das civilizações americanas que a gente erroneamente chama de índios. Apenas no Brasil, havia mais de mil povos diferentes quando os europeus chegaram. Essa cultura está por aí, e não valorizamos. Além disso, fiz cinco anos de antropologia e fui professor dos índios Pataxó na Bahia. Eu estava preparando um filme sobre pajés. A ideia era entrevistar oito deles. Fui realizar uma filmagem com os Paiter Suruí para outro projeto, uma série documental chamada Juventude Conectada, exibida no canal Curta! e no Futura. Esses meninos indígenas começaram a enfrentar os madeireiros ilegais com celulares e GPS. Fotografavam a placa dos caminhões, marcavam no GPS e subiam as denúncias nas redes sociais. Isso batia em ONGs internacionais que, por sua vez, acionavam a Polícia Federal. Pensando nesse outro projeto com os pajés, perguntei onde estava o deles. Aí eles falaram “ex-Pajé”. Já tinha ouvido falar de ex-gerente, ex-jogador de futebol, mas nunca de ex-Pajé (risos). Então, conheci o Perpera, com aquele terno dois números maior. Fiquei me perguntando o que era aquilo.
Até porque é uma imagem violenta…
Muito violenta. Almoçamos juntos e conversamos, meio que por mímica, pois ele não fala português e eu falo quatro palavras de Tupimondé. Aí ele contou que tinha deixado de ser Pajé, não porque queria, mas por ser obrigado, constrangido e ameaçado. Ninguém mais falava com ele, todo mundo virava a cara e nem lhe trazia comida. Ao mesmo tempo, Perpera tinha de dormir de luz acesa, pois apanhava dos espíritos da floresta, exatamente por ter parado de tocar as flautas sagradas. Fiquei totalmente mexido com isso.
Ali já surgiu a vontade de mudar o foco do filme?
Não foi bem na hora que decidi mudar o foco. Isso foi maturando, mas logo entendi que o filme deveria ser sobre o Perpera, devido à urgência do tema. Durante a pesquisa, descobri que isso está acontecendo em várias tribos. Quando mostrei o Ex-Pajé a algumas lideranças indígenas, elas resolveram fazer um manifesto sobre intolerância religiosa e perseguição aos pajés para lermos no Festival de Berlim. Houve uma repercussão grande na Alemanha. Estamos falando de uma coisa bem contemporânea, mas que diz respeito aos 500 anos da história do Brasil. Essa catequização começou no século 16 com os Jesuítas e deu uma acalmada nos anos 70 e 80. Parecia que a igreja católica tinha desistido, mas ai entraram as evangélicas, com uma atitude bem fundamentalista, impondo a verdade delas, fazendo inquisição. É o mesmo comportamento diante de terreiros de umbanda e candomblé, mas quanto aos territórios indígenas não se vê repercussão midiática, até porque são áreas rurais sem acesso aos jornalistas.
Como os estrangeiros receberam o filme em Berlim?
Foi incrível, bem mais que eu esperava. Tivemos quatro sessões em salas grandes, de 600 a 800 lugares. Todas lotadas, com gente do lado de fora aguardando desistências. A grande maioria ficava para os debates. Foram exibidos em Berlim cerca de 200 documentários, 16 em competição, e houve apenas dois prêmios, o de Melhor Filme e o Especial do Júri, este que a gente acabou ganhando. Tendo em vista a qualidade dos documentários no páreo, percebi que o filme teve uma repercussão muito forte. Inclusive, já foi programado para festivais em três continentes. Os gringos têm uma atenção especial com Amazônia, mas temia, em virtude do filme ser um pouco lento, de viajar na psicologia do personagem, de não ter narrativas em off, enfim, por não ser muito didático. Somando a repercussão lá fora com a chegada dele no Brasil, estou achando que rola um barulhinho bom.
Exatamente pelas causas defendidas, você acha que o filme pode ser rechaçado por uma parcela dos espectadores?
Isso já está acontecendo. Ele mexe no vespeiro dessa atitude de um segmento da igreja evangélica – bom dizer que é apenas um segmento. Na minha opinião, essas pessoas deturpam a palavra de Jesus, sempre um cara de aceitação e amor. Na bíblia, por exemplo, não me lembro dele pegando a destruição da igreja do próximo. Ele não pediu guerras santas. Há cerca de uma semana, quando da sessão para os Paetes Suruí, os pastores tinham orientando-os a não comparecerem, dizendo que o filme seria contra Jesus. Imagina você. Tenho nada contra Jesus, pelo contrário. Adoro, acho uma figura incrível, mais um grande espírito, não da floresta, mas do deserto. Admiro muito. Os pastores alegaram que o doc defende a pajelança, coisa do diabo. Todavia, os índios foram, mesmo os evangélicos.
E como foi essa sessão especial?
Tensa. Começou com humor. Os índios riem bastante do filme. Mas, quando o pajé começa a tocar as flautas sagradas, proibidas pela igreja evangélica, aquilo causou um silêncio imediato. Percebi no público, especialmente na ala mais velha, uma comoção, afinal estavam ouvindo novamente os instrumentos de sua infância e juventude, hoje proibidos, com poder de cura e de atração dos espíritos da aldeia. Isso mexeu com eles. Houve um mal-estar. Quando o documentário acabou, quem pegou a palavra para o debate foram os mais velhos. Eles defenderam a obra. Um deles fez questão de dizer que o longa se chamava Ex-Pajé e pontuou que o Perpera tocou as flautas apenas para a filmagem e que as ouvimos também gravadas. Esse depoimento claramente visava defender o Perpera das possíveis perseguições no dia seguinte. O próprio teve uma atitude ambígua. Pedi para o aplaudirem, mas ele estava visivelmente entre alegria do reconhecimento e o receio. Tanto que não foi à igreja no dia seguinte, por medo dos pastores. Existe, todavia, um movimento de resistência de lideranças indígenas. Acredito que o filme vai ser mais um elemento catalisador de debate. Espero que essa briga se dê, realmente, apenas no campo da reflexão. Acho, inclusive, que as igrejas evangélicas cabem nas aldeias, desde que a missão dos pastores seja de respeito aos pajés. É absolutamente possível a convivência de Jesus com os espíritos da floresta.
Durante as filmagens houve alguma hostilidade por conta dos pastores?
Não, diretamente comigo, não. Meia dúzia de índios da comunidade evangélica virou a cara para mim, e percebi que era pauta do líder religioso. Mas, o pastor que conheci, aquele filmado, foi doce comigo. Também procurei ser muito ético com ele. Não tentei, através da imagem, algo que pudesse denegri-lo. Registrei, inclusive com maior respeito e carinho, a ternura da esposa dando remédio para os índios. A animosidade e a agressividade ocorrem no âmbito psicológico. O discurso deles trabalha o tempo todo com o medo do inferno. Tivemos uma relação tranquila com os pastores, mas percebemos que ali a guerra é psicológica. No culto, fala-se mais do Diabo que de Jesus.
A retórica das imagens é muito emblemática no filme. Como se deu essa construção?
Os índios são muito silenciosos, mas o silêncio deles fala. Entendemos que deveríamos filmar isso como um elemento narrativo. Os diálogos deles são muito diferentes dos nossos. Durante o processo de montagem, mostrei o filme para alguns amigos do cinema, que apontaram como problema a inexistência de conflito nos diálogos. Fiquei perturbado. Todavia, depois, o apresentei para indígenas, entre as quais uma líder Guarani formada em filosofia. Ela esclareceu que o diálogo indígena não é socrático, os nativos não falam como no Banquete de Platão, por oposições. O conflito não está instaurado na dialética indígena. Aquilo me ganhou completamente. E, que bom, os brancos estão entendendo que ali há uma estranheza, mas também mergulhado nesse tempo da proposta, se emocionando.
Mas foi uma escolha ousada…
Naquele momento, ousada, mas acertada no campo da coerência. Para mim era claro que a única maneira de mostrar ao mundo que esse povo não é rudimentar e tosco, que índios são sofisticados, era através da imagem, captando a poesia da beleza deles. Imprescindível ser calmo, não querer fazer uma ceninha curta apenas para a história avançar, mostrar que, por exemplo, durante a manhã eles se reúnem em torno do fogo e ficam um tempão ali falando sobre o gavião que vai atacar as araras. Esse é o conflito do dia. O gavião representa o espírito enviado pelo inimigo. Tudo tem uma sintaxe. A partir do momento em que respeitamos e mergulhamos nisso, acabamos trazendo para o cerne do filme a semântica e a sintaxe indígenas. Não queríamos traduzir isso de uma maneira exótica e caricata. Para falar sobre o mundo deles, nos obrigamos a adequar nossa atitude.
Como assim?
Éramos uma equipe pequena, trabalhando com luz natural para respeitar e capturar a poesia deles. Não utilizamos ordem do dia. Entendemos, desde o princípio, que não fazia sentido chegar para os índios e impor uma ordem ao cotidiano deles. Ao invés de submetermos a tribo indígena à mecânica da tribo do cinema, fizemos o contrário. Os índios trabalham até às 10h da manhã. Quando o sol está a pino, eles param, voltando apenas às 16h. Acompanhamos esse ritmo. Perguntávamos o que podíamos e deveríamos filmar. Conquistamos essa confiança. O fato deles se sentirem à vontade diante da câmera emprestou muita verdade ao filme. Eles pediam para filmarmos certas coisas, como o trabalho, pois diziam que o homem branco os acusava de vagabundagem. Claro, nossa função, nesses casos, era tentar fazer isso caber na narrativa de maneira orgânica, sem ser chapa branca.
Enquanto criador, para você é importante variar o dispositivo cinematográfico?
Na verdade, me vejo como contador de histórias. Sou tipo um tiozinho ao redor da fogueira contando causos para crianças de todas as idades. Vejo-me assim. O dispositivo tem de ser o mais adequado àquela história. Amo documentário. É o que mais gosto. Adoro cinema direto. Mas, até mesmo no documentário, quando você liga a câmera, todo mundo interpreta. Nesta entrevista estou interpretando. Quem disse que sou assim? (risos) Tudo é ficção e, ao mesmo tempo, tudo é realidade. A ficção paga melhor. É com ela que sobrevivo. Mas, por exemplo, resolvi fazer animação porque adoro história do Brasil e quadrinhos. Queria contar algo na chave do realismo fantástico, tradição da América Latina. Na verdade, os índios são os senhores disso, pois contam tramas mágicas há 4000 anos. Falar do Brasil do ponto de vista de um Tupinambá seria inviável em live-action. Custaria R$ 80 milhões e seria visto por 50 mil pessoas. Aí veio a ideia de animação. Nunca havia trabalhado com animação.
E como foi esse processo, inclusive de aprendizagem?
Pensei que poderia de dirigir Uma História de Amor e Fúria (2013) com uma equipe que entendesse da técnica. De todos, eu era o que menos a dominava (risos). Montamos um grupo pequeno de nerds, mais ou menos umas 25 pessoas, entre 19 e 32 anos. Elas me ensinaram, foi um processo bem orgânico. Talvez, por ter envolvido essa molecada com tanta energia criativa, o longa acabou ganhando o Festival de Annecy, uma coisa absolutamente inimaginável. Em 60 anos de evento, jamais um filme brasileiro tinha entrado na competição de longas-metragens. Fomos selecionados e ganhamos com uma produção que custou US$ 1,5 milhão diante de filmes de € 10 milhões. Embora eu reconheça que o resultado tenha pontos ingênuos, fez um sucesso imenso lá fora. Ficamos cinco anos fazendo e valeu muito a pena.
Enquanto profissional experiente, como você percebe o cinema brasileiro atual?
Principalmente falando como roteirista, o cinema brasileiro está dando um grande salto qualitativo. Essa nova geração de roteiristas é muito mais potente que a minha. Vivemos um apagão nos anos 80. Não tivemos a possibilidade de estudar dramaturgia. Hoje em dia, pessoas com 20 ou 30 anos se debruçam sobre isso. Muitas vezes, fora do Brasil. Não é à toa que o nosso cinema está indo para um monte de festivais. Tem uma molecada fazendo seu primeiro ou segundo filme como uma qualidade artística muito interessante. Atualmente, há o desenvolvimento de uma competência que, acredito, não é uma tradição brasileira: o cinema de personagens. Durante décadas fizemos cinema de peripécia, até por uma herança de telenovela. Somos muito ligados ao encadeamento dos acontecimentos, pouco à profundidade dos personagens. As pessoas precisam de sombras, devem exibir contradições. Os filmes podem sobreviver com personagens que não têm todos problemas resolvidos. Por exemplo, no Gabriel e a Montanha (2017) há um protagonista arrogante e essa condição não é “resolvida” no final, aliás, ela é a sua falha trágica. Há dispositivos nas narrativas desses jovens que são muito sofisticados. Realmente, profundidade de personagem não é uma tradição do nosso cinema, diferentemente do argentino, por exemplo. Mas, claro, os caras têm psicanálise no ensino médio. Aí você quer o quê, com a gente apenas vendo a telenovela?
(Entrevista concedida ao vivo, no Rio de Janeiro, em abril de 2018)
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