Douglas Duarte teve o privilégio de estrear Excelentíssimos (2018), documentário que registra o cotidiano da câmara federal dos deputados em meio ao processo de impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, durante o 51º Festival de Brasília. O palco do Cine Brasília e a convulsionada Praça dos Três Poderes são relativamente próximos, o que gerou um efeito curioso, amplificado pela presença na sessão inaugural de várias pessoas que viveram na pele os dias de turbulência em que os intestinos do legislativo brasileiro fervilharam de fétidas intenções. Autor de Personal Che (2007) e Sete Visitas (2015), Douglas conversou conosco no dia posterior ao da première brasileira no evento celebrado exatamente por sua pegada política. Confira como foi o nosso Papo de Cinema com o responsável por Excelentíssimos, no qual ele revela histórias curiosas, como uma cantoria no banheiro da casa do povo, cuja letra revela muito do perfil dos nossos deputados, além, claro, da análise de seu processo criativo.
Como foi exibir o filme no Festival de Brasília, na cidade em que tudo ocorreu?
Cara, me sinto estreando o filme no lugar certo. Muito importante ser selecionado ao Festival de Brasília, até porque o documentário foi todo filmado aqui. A cidade estava bastante mobilizada. Ontem foi a primeira exibição pública. Excelente sentir a vibração de uma plateia que viveu aquelas filmagens. Veio muita gente que estava lá nos corredores do congresso, de funcionários públicos a pessoas das manifestações. Reencontrei várias delas na sessão e foi bom demais. Os deputados não vieram, claro (risos). Estão em campanha para se reelegerem.
Desde o início a intenção era fazer algo didático, que explicasse bastante os processos, a fim de que o filme fosse uma espécie de guia desse momento histórico?
Minha preocupação era o filme ser claro. Foi um debate constante entre eu e a Júlia Murat, a nossa produtora. Júlia dizia que eu não precisava convencer as pessoas de que havia acontecido um golpe. Na verdade, não era realmente essa a minha intenção, mas desejava explicar como tudo aquilo aconteceu. Parece a mesma coisa, mas não é. Nosso juízo de que todo mundo sabe da realidade, de que todos viram o que aconteceu, é típico da nossa bolha. Esses eventos não tiveram a exposição devida. Partidários foram os dados divulgados, não o contrário. Acho que o filme desmonta um pouco isso. Como todo cineasta, não gosto muito do termo “didático”. O que me empurrou ao âmbito da clareza foi querer que esse processo ficasse transparente para alguém que visse o filme daqui a cinco anos. Para mim, era importante que o doc condensasse e adensasse. O que sabemos hoje ainda é muito pouco.
Há vários filmes falando sobre esses acontecimentos. Qual é o diferencial do seu?
Já assisti à Impeachment: do Apogeu à Queda, do Brasil Paralelo, que acho um horror. Sendo bem escroto, entre ele o Excelentíssimos há uma enorme diferença, porque o meu não é uma peça de propaganda. Eu estava na première de O Processo, em Berlim. Um repórter perguntou à Maria Augusta Ramos sobre o fato do filme ser espartano, e ela disse que gostava disso. Nada contra, mas acho que cada história pede uma abordagem. Eu tinha vontade de pegar imagens de arquivo, de fazer locução, de concatenar, de realmente emprestar a minha voz. Estou envolvido em cada pedacinho do documentário e ele tem essa linguagem pouco seca exatamente porque acho que essa era a melhor maneira de expressar.
Como se deu o processo de abordagem das pessoas?
O congresso não queria que estivéssemos lá. Isso foi claro. Eles fizeram de tudo para impedir que a equipe entrasse. Apenas conseguimos quando junto de uma galera de jornalismo. Eles não sabiam lidar com cinema. O assessor de comunicação do Eduardo Cunha chegou a falar para a gente que se fossemos de algum jornal, tudo bem, porque no dia seguinte estaríamos lá, ou seja, dando a entender negativamente como as coisas funcionam com a imprensa. Ela pode ser pressionada, o congresso pode retirar as credenciais dessas pessoas. Retiraram as nossas no meio do processo. Em suma, institucionalmente a casa não queria a gente. Uma vez que estávamos lá dentro, a missão foi encontrar as brechas. Os parlamentares são pessoas especializadas em carisma e evasão, são peixes ensaboados que te apresentam alguma coisa melhor para olhar. Isso é importante para entender o porquê deixar tanto o Carlos Marun, ministro do Michel Temer, quanto o Silvio Costa, então líder do governo. Os dois me pareciam representar nosso parlamento, com a diferença de serem sinceros. Ambos são sincericidas (sic), o que é muito raro lá.
Como foi buscar o equilíbrio entre a narração e a voz dos parlamentares?
O filme chegou a ter um corte sem a narração. Em muitos filmes observacionais, de cinema direto, o diretor busca se apagar do processo, almejando certa pureza e objetividade. Para mim era importante ir pelo sentido contrário, dizer o que penso. Cheguei à conclusão de que precisava dar a cara à tapa. Sou eu que faço a narração, aliás.
A ficção está cada vez mais se apropriando desses elementos da nossa política atual. Como você acha que o documentário se coloca nesse panorama?
Há uma parte do filme que me interessava muito. Queria entender quem são aquelas pessoas, como os deputados andam, falam e gesticulam. O comportamento deles explica como é fazer política atualmente. Acredito que esse teatro do corpo, o gestual é interessante à ficção. Esses sujeitos estão lá, detém o poder de depor um presidente, e a gente não faz a menor ideia de quem eles sejam. Me surpreendi demais com o tipo de gente que encontrei. Pensei que encontraria seiscentos Frank Underwood (personagem de Kevin Spacey na série House of Cards). No primeiro dia de plenário, fui ao banheiro e lá ouvi uma voz cantando: “que que me adianta ter um pau de anta se quando eu preciso ele não levanta”. (risos). O reservado abriu e saiu dele um deputado. Esse é o nosso congresso, cheio de personagens nunca iluminados. Nós realmente não sabemos quem eles são.
Você tentou falar com personalidades mais visíveis, tipo Dilma Rousseff, Michel Temer ou Eduardo Cunha?
Não procurei o Cunha por receio, medo de que inviabilizassem o filme. De todos os mestres da evasão, ele era o melhor de todos. Sei disso por ter firmado algumas coletivas. Numa delas, para falar do recebimento do impeachment na câmara, ele disse “não estou feliz”, ou algo parecido, 26 vezes. A gente sabe o que ele pensava realmente a respeito daquele negócio. Já entendi, então, que o Cunha não seria uma brecha. Chegamos perto dos figurões naquela caminhada do Aécio Neves, em que ele praticamente passa por cima, nos ignora. Num contato superficial, ele era simpaticíssimo, colocava sua assessoria de prontidão, mas a verdade é que nunca se dispôs a colaborar.
(Entrevista feita ao vivo, em setembro de 2018, durante o Festival de Brasília)
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