Felipe Sholl começou a estudar Cinema há mais de uma década. Seu instinto lhe dizia para seguir a carreira como roteirista, pois assim poderia contar as histórias que tinha vontade. Uma delas, no entanto, surgiu lá naqueles primeiros momentos e seguiu ao seu lado, repercutindo de uma forma que não lhe permitiu abrir mão dela para um outro realizador. O desafio estava lançado, e ele o assumiu. Após assinar o roteiro de filmes como Tá (2007), curta premiado no Festival de Berlim, e Hoje (2011), longa premiado no Festival de Brasília, ele decidiu dar o primeiro passo também como cineasta, adaptando para a tela grande o texto que há mais de dez anos ressoava consigo. O resultado foi o drama Fala Comigo, premiado como Melhor Filme no Festival do Rio 2016. E agora, prestes a estrear em cartaz no circuito comercial, o diretor conversou com exclusividade com o Papo de Cinema sobre todo esse processo. Confira!
Olá, Felipe. Fala Comigo é a sua estreia como realizador. O que lhe motivou a contar essa história?
Comecei a escrever esse roteiro há muitos anos, lá pelos idos de 2005, quando ainda estava na escola de roteiro. Pra falar a verdade, esta foi a primeira história que surgiu na minha mente quando comecei a escrever. Sempre tive interesse em falar sobre personagens que procuram amor e afeto em lugares improváveis. A imagem inicial era dessa mulher desesperada por ter terminado um relacionamento. Uma coisa meio louca, ela queria se matar, não sabia direito o que fazer, e no meio disso tudo tocava o telefone. Ela atendia, e ninguém falava. Ficava aquele silêncio, e isso acabava mexendo com ela. Isso tirei de um filme chamado Felicidade (1998), do Todd Solondz, que tem um personagem, vivido pelo Philip Seymour Hoffman, que faz justamente isso. Ele liga para uma mulher com a ideia de passar um trote, para se masturbar, só que acaba se envolvendo. Disso veio esse segundo personagem, o adolescente, que passa esse trote, quase como uma brincadeira. Da junção destes dois nasceu o Fala Comigo.
E por quê, então, o Fala Comigo não foi o seu primeiro trabalho?
Tenho muito mais experiência como roteirista do que como diretor. Essa foi a primeira coisa que escrevi, mas sabia que não tinha maturidade para dirigi-lo. Ao mesmo tempo, não queria passar adiante, para que outro o filmasse. Não tinha pressa, então deixei de lado, e volta e meia voltava para dar uma trabalhada. Aos poucos, foi ficando com a forma que tem hoje, do jeito que me agradava. Sou formado em Jornalismo, porém nunca exerci. Confesso que quando terminei a primeira versão, ainda em 2005, pensei em dar para alguém. Mas daí fui selecionado para um laboratório de roteiros, e o consultor perguntou se eu tinha algo pronto. Ao mostrar essa história, ele me orientou a dirigir. Disse que só eu poderia contá-la do jeito que estava na minha cabeça, com a dedicação e interesse por ela que eu tinha. Com o tempo, então, comecei a amadurecer, fiz curtas, trabalhei com outros diretores. Precisava crescer. Esse tempo só fez bem, tanto a mim quanto ao filme que queria fazer.
Você se apresenta como roteirista. A partir de agora podemos esperar vê-lo mais na direção, ou o Fala Comigo foi uma exceção?
Agora peguei gosto pela coisa (risos). Vou continuar escrevendo, é claro. Amo escrever, mas pretendo me dedicar cada vez mais aos meus projetos. Tenho, nesse momento, dois outros projetos como diretor. O primeiro se chama Gloria, foi escrito por mim, e será realizado pela Síndrome Filmes, que é a minha produtora. É a história de um garoto de 24 anos que sai do Nordeste e vai para o Rio de Janeiro. A ideia dele é estudar Antropologia, e sua tese de conclusão de curso é sobre profissionais do sexo. Só que ele acaba se envolvendo tanto com o tema que termina ele próprio virando um Garoto de Programa. Já o segundo tem o título provisório Vozes, e conta com roteiro da Carol Castro (Linda de Morrer, 2015). Não é a atriz (risos), é uma roteirista homônima, já fez muita coisa. É uma ideia dela, e o filme será coproduzido pela minha produtora. Será a minha primeira experiência apenas como diretor, estou bem entusiasmado. O filme conta a história de seis personagens distintos durante 24 horas no Rio de Janeiro, e através deles termos uma visão da própria cidade. É algo ambicioso, que pode ficar muito bonito.
Tu é um escritor que se preocupa muito com os personagens, como percebemos nos textos de filmes como Hoje ou Campo Grande (2015). Qual foi a sua maior preocupação com os protagonistas de Fala Comigo?
Acho que a sua percepção está super certa. Antes de tudo, vem os personagens. Foco muito neles. Os protagonistas de Fala Comigo são, desde o início, dois personagens pelos quais eu estava apaixonado. Eles são muito sozinhos, mas fazem da solidão algo bonito, que vai além do roteiro. O filme não tem nada de autobiográfico, mas se passa no meu universo, são pessoas de classe média, que estudaram, levam suas vidas de um jeito ou de outro, sem muitas ambições, mas também não são derrotadas, estão apenas tropeçando e se levantando, para ver qual é a próxima. No entanto, o que lhes acontece é inspirado em fatos verídicos, por assim dizer. Não que tenha acontecido exatamente igual ao que está na tela. É mais ou menos como se fossem pedaços de várias pessoas reais, entende? O processo de observação é muito importante para mim.
Isso se reflete também na escolha dos atores que irão interpretar esses personagens?
Com certeza. Aliás, diria principalmente na hora de escolher o elenco. Este é o que podemos dizer um filme de atores, a força está, propositalmente, nas atuações. A Karine Teles, por exemplo, ela conhece essa personagem desde 2006, onze anos atrás. Ela foi a primeira pessoa que leu a personagem da Angela. Só que na época ela era muito nova para o papel, não foi escrito pensando nela. Porém, com todo esse tempo que passou, acabou dando. E que bom que rolou, pois ela sempre foi a pessoa certa! Já com o Diogo a história foi diferente. Sabia que não poderia escolher muito, tinha que ser um garoto de 18 anos, pra filmar no mesmo ano, pois com 19 já não poderia mais. O adolescente muita muito de fisionomia nessa etapa da vida, de um ano para o outro a diferença é enorme. Por isso fomos em várias escolas de teatro, vimos gente do tablado, dizemos diversos testes. Acho que vimos uns 50, 60 rapazes. Foi bem longo o processo. Daí conversamos com alguns, e ficamos com 20 garotos. Destes, reduzimos para 7, e depois para 4, até chegarmos em quem eu queria.
Com a Denise Fraga você já havia trabalhado. Acredito que tê-la no Fala Comigo foi mais fácil, não?
A Denise foi a primeira pessoa a ser convidada, na verdade. Enquanto escrevia, tive muita dificuldade com a Clarisse, era uma personagem que não entendia. Mas também, eu tinha 23 anos quando comecei esse roteiro, não conseguia compreender uma mulher com quase cinquenta, com dois filhos, um casamento se desintegrando, com todos esses problemas. Daí, em 2011, trabalhei com a Denise no Hoje, e quando a vi, tive certeza que era ela. Tinha que ser ela. Quando fiz o convite e ela disse sim, entendi, finalmente, a personagem. Já com o Emilio foi bem tranquilo, o conhecia principalmente do teatro, e o convidei diretamente, mais perto de começarmos as filmagens. Já era fã dele, a única preocupação era vê-lo junto com a Denise, para ver se os dois teriam química juntos, pois talento sabia que ele tinha de sobra.
Você falou sobre a escolha do elenco de Fala Comigo. Mas como foi trabalhar com estes atores? Vocês chegaram a ensaiar?
Felizmente, a gente teve tempo para ensaiar. Foi muito importante, pois temos atores jovens no elenco, e também para mim, pois como você sabe, e já falamos a respeito, esse foi o meu primeiro longa como diretor. Então era preciso esse tempo para nos conhecermos. Aos poucos fomos nos entendendo. Eu, como cineasta, aprendi que sempre existe essa relação: uma coisa é o que você escreve, e outra, muito diferente, é o que vai ser filmado. No roteiro é uma coisa, quando filma já se transforma em outra, e ao editar vira outra ainda. Então, ficar apegado não funciona, o filme só perde com isso. Por exemplo, cada vez que escolhia um ator, eu reescrevia o personagem para essa pessoa, já com ela em mente dessa vez. O Diogo, por exemplo, quando pensei nele era um garoto todo fechado, que fazia música eletrônica no computador, vivia num mundinho que era só dele. Só que o Tom é muito aberto, solar, que tem uma luz muito própria. Tinha que ser ele, mas ao mesmo tempo era muito diferente do que eu havia imaginado. Então, voltei para o roteiro e adaptei para ele. Agora, toca violão.
Você exige que se fique preso ao roteiro ou abre espaço para improvisos?
Tivemos cenas com improviso, com certeza. É importante estar aberto para o momento. Um bom exemplo foi o enfrentamento entre a Ângela e Clarisse. Eu simplesmente não sabia como escrever aquele embate entre essas duas mulheres. O roteiro não chegava no ponto que eu queria. Só consegui resolver quando me dei conta que tinha a Karine e Denise, duas grandes atrizes, ao meu dispor. Então pensei, “vou aproveitar”. Expliquei para elas o que queria e disse: “façam”. Elas não tiveram acesso a uma única linha de diálogo desta sequência. Foi tudo inventado na hora. E ficou ótimo.
Um cuidado muito grande que acredito que tenhas tido foram as cenas entre Ângela, a mulher mais velha, e Diogo, o menino por quem ela se apaixona. Como foi trabalhar o envolvimento dos dois?
Foi um trabalho que nos exigiu muito, é verdade. As cenas entre eles, principalmente as de intimidade, eram delicadas, exigiam uma atenção especial. O Tom tinha 18 anos quando filmamos, e essa era uma preocupação nossa: precisava ter cara de 17, mas tinha que ser maior de idade. Além das questões práticas, o ator precisava ter alguma maturidade para encarar esse desafio. As cenas de sexo, o erotismo que estava sendo trabalhado, exigia um ator que estivesse confortável com tudo aquilo. Sem falar na química com a Karine, eles precisavam funcionar um com o outro. O segundo teste dele, pra você ter uma ideia, já foi com ela junto. Na primeira vez em que coloquei o Tom com a Karine, foi logo a cena do encontro inicial deles, e o que experimentamos ali foi praticamente o que acabou na tela. Quando os vi juntos, relaxei.
Você foi premiado no Festival de Berlim com o curta Tá (2007) e no de Brasília por Hoje (2011). Fala Comigo foi escolhido o Melhor Filme do Festival do Rio 2016. O quão importante são esses reconhecimentos para cada projeto e para ti, especialmente?
Prêmio é algo super importante, em mais de um aspecto. Pra começar, a gente fica feliz, é claro. Receber os aplausos é uma emoção incrível, ver o seu nome sendo chamado, é muito bom. Mas não é só isso, tem também os dividendos que vão além daquele momento. Você percebe que as pessoas, o mercado em si, começa a te respeitar mais, você passa a ter mais facilidade para desenvolver seus próximos projetos, as portas começam a se abrir. Fazer um segundo filme fica muito mais fácil. Sem falar na importância do júri ter se conectado com o que você queria dizer, com a mensagem do seu filme. No entanto, para mim, e vou falar o clichê mais óbvio possível, o maior prêmio é falar com as pessoas depois da sessão, conversar, receber estas impressões. Essa troca, entender? Este é o melhor reconhecimento.
Fala Comigo é um filme que levanta muitos questionamentos, mas não parece muito preocupado em oferecer respostas, deixando isso para o espectador. Em tempos em que tudo vem cada vez mais mastigado, considera esse tipo de postura arriscada?
Acho que é ousado, sim. Concordo com você. Mas não pensaria em fazer de outro jeito. Isso foi algo pensado desde o começo, e estava em sintonia com o elenco, com toda a equipe. Era muito importante que o filme não julgasse os personagens, e oferecesse uma visão mais aberta possível sobre esse relacionamento e sobre o que cada um dos envolvidos acaba fazendo. Permitindo, portanto, que o espectador tire suas próprias conclusões!
(Entrevista feita por telefone direto do Rio de Janeiro em 06 de julho de 2017)
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