O venezuelano Gustavo Rondón Córdova teve o privilégio de estrear seu primeiro longa-metragem na concorrida Semana da Crítica do Festival de Cannes 2017. Logo depois, A Família (2017) abriu a sexta edição do Olhar de Cinema, recebendo elogios da imprensa especializada na capital paranaense (leia aqui o nosso texto sobre o filme) e chamando a atenção para os problemas sociais da Venezuela, que condicionam as ações e os comportamentos dos personagens. Presente no evento curitibano, o Papo de Cinema conversou com Gustavo. Ele demostrava alívio por conta da receptividade que dissipou seu nervosismo evidente na noite anterior, a da importante estreia. Falou a respeito da experiência na França, do que lhe interessava contar e da condição atual da produção cinematográfica em seu país natal. Confira.
Gustavo, seu filme foi exibido em Curitiba depois de ter passado pelo Festival de Cannes. Mesmo assim, você estava visivelmente nervoso. Como foi abrir o Olhar de Cinema?
Sem dúvida, foi uma responsabilidade muito grande, fiquei muito feliz que nos escolheram como filme de abertura. Sei que aqui há um público com muito respeito, que esse é um festival que vem cultivando seu próprio espaço, e que o espectador dele busca um cinema com propostas fortes e particulares. Tive a sensação de que a recepção ao filme foi positiva. Pessoas me procuraram dizendo que tinham gostado.
Os europeus tendem a encarar as questões sociais de A Família diferentemente de nós, sul-americanos, que estamos mais próximos delas. Como foi a recepção do filme na França?
Na França o filme teve sete projeções, quatro propriamente em Cannes e três em lugares próximos, e isso gerou públicos distintos. As pessoas que vão ver no festival geralmente são ligadas à indústria, sejam elas críticos, jornalistas, produtores e programadores. Então, as leituras sobre o filme são muito diferentes das do público em geral. Das oportunidades que tivemos nessas projeções fora, uma foi bem específica, porque o público era muito particular, de um povoado que tem um cineclube onde passam 24 filmes semanalmente, de todo o mundo, com a maioria de espectadores idosos, com mais de 60 anos, um público muito culto.
Referências culturais diferentes….
Com certeza suas referências culturais e sociais são bastante diferentes, então assumo que há certo exotismo no filme para eles. Já para a gente da América Latina é realmente diferente. Acredito que o filme é muito latino-americano e sobretudo os países com grandes cidades tendem a se reconhecer automaticamente. Cidades grandes como Rio de Janeiro e São Paulo, nesse sentido, não são muito diferentes de Caracas (capital da Venezuela). O mecanismo de comunicação termina sendo muito mais direto. Mas a universalidade da história e do tema também conta. Me interessa muito que as pessoas participem dessa história entre pai e filho, uma trama de reencontro, quiçá de uma possibilidade diferente.
Gostei bastante do filme e algo que sobressai nele é a espontaneidade. Como tu se aproximou daquela realidade e por que filmar a história naquele contexto social específico?
Meu pai vivia num complexo de prédios parecido com o do filme, e disso decorre a inspiração. Na minha infância eu transitava por esses blocos. Eu vivo numa situação boa em Caracas. Digamos que eu conheço, ou creio conhecer, muito bem a minha cidade, e tenho uma relação de respeito e fascinação por todos. Participo do contraste da cidade. Vivemos um momento muito terrível, mas, mesmo assim, trato de me encontrar com todos. Para mim foi importante abordar essa realidade com muito respeito. Houve um processo antes do filme, de aproximação lenta, tratando de gerar confiança e amizade, de falar sempre com honestidade.
E como foi na prática?
Quando eu cheguei nesse bairro muito perigoso de Caracas, era importante saber entrar, lidar com mecanismos logísticos, as facções e grupos políticos, enfim, sempre expondo sobre o que falaria o filme. Assim eu conseguia a cooperação das pessoas, porque a jornada de Pedro, o protagonista, se repete constantemente nesses lugares. As pessoas me deixavam entrar nas suas casas, fazendo delas locações, e com isso estabelecíamos relações que nutriam esse filme, no qual eu ia tratando de incorporar elementos. Fizemos uma rodagem cronológica e durante essa cronologia íamos incorporando coisas novas. Esse processo não ocorreu só a mim, mas também aos atores, à equipe. Reggie Reys (que interpreta Pedro) não vive naquele lugar, mas gerou amizades lá. E realmente espero que as pessoas demonstrem respeito pelas realidades que ali se mostram. Creio que todos participamos e alimentamos as relações que estão transitando numa sociedade como a nossa.
Garotos como o Pedro têm como modelos os bandidos, pois eles são supostamente bem-sucedidos nas periferias violentas. Como foi teu trabalho com os atores, especialmente a fim de construir a proximidade gradual que faz o menino olhar seu pai com admiração?
Basicamente é através de um contato involuntário entre história e personagem que se gera essa aproximação. Creio que no momento em que os dois personagens baixam suas defesas, começam a se olhar e entendem que o outro é o único que têm. Então, todos os referenciais anteriores vão caindo. No caso nos meninos, como você disse, os referenciais são os bandidos, a mãe substituta. No caso do pai, se esvai o paradigma de que a única coisa necessária é comer. Eu tento que haja um cruzamento de caminhos e um espelho, que o menino acabe atuando como pai e vice-versa. Quando isso ocorre, eles começam a se olhar nos olhos, a entender que no fundo suas carências são as mesmas. A ausência da mãe também marca os dois. Essa também era a minha forma de falar sobre a importância da mãe nas sociedades latino-americanas, que são muito matriarcais. Ademais, essa é uma história contada quase sempre a partir da mãe. Interessava-me marcar os personagens com essa ausência, tornando ambos órfãos de afetos.
Como está o cenário da produção cinematográfica da Venezuela?
Na Venezuela tivemos até 2015 um fundo cinematográfico muito forte e sólido. Tínhamos também um fundo do instituto de cinema, bem estadista e paternalista, mas que podia financiar até 100% de um filme, caso ele fosse totalmente venezuelano. Esse instituto lutou contra a inflação até 2016, quando ela chegou a 700%. Agora, ele consegue fomentar cerca de 30% das produções. Outro fundo natural é o Ibermedia, mas a Venezuela não pagou sua cota e, portanto, não temos acesso a esse dinheiro, então suspenso momentaneamente. Também temos tentado trocas no circuito internacional. Pensamos meu filme nesse âmbito desde o começo, mesmo antes da crise atual.
E o Estado?
O Estado tem uma produtora, que faz obras de interesse governamental, cinema de propaganda, histórico propagandístico, com uma qualidade muito duvidosa. É um cinema que ninguém vê. É muito triste, pois o estado investiu muito dinheiro em estúdios, equipe, na manutenção dessa estrutura funcionando, sem resultados importantes. Há a produção independente. Mas é complicado, porque não temos leis de incentivo, o que move o cinema independente. Em suma, a grave crise econômica tem afastado o espectador do cinema, pois o dinheiro é para comer. Um filme como o meu costumava receber muito carinho do público, podendo aspirar a 200.000 pagantes em dois ou três anos. A projeção atual é de 20.000. A crise venezuelana é sistemática, completa. Provavelmente no ano que vem não teremos filmes novos na Venezuela, a menos que se consiga algum financiamento ou que façamos filmes de muito baixo orçamento, o que afetaria a qualidade. A crise do país é geral e no cinema tardou a chegar, mas infelizmente chegou.
(Entrevista ao vivo concedida em Curitiba em 08 de junho de 2017)
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