Família Submersa (2018) é o primeiro longa-metragem da argentina María Alche como realizadora. Formada pela prestigiada Escola Nacional de Cinema de Buenos Aires, ela anteriormente dirigiu os curtas-metragens Noelia (2012) e Gulliver (2015), que passaram por importantes festivais internacionais, tais como os de Lucarno, Havana e Roterdã. Muitos espectadores vão se lembrar dela como atriz, especialmente na pele de Amalia, a protagonista de A Menina Santa (2004), realização da compatriota e amiga Lucrecia Martel. María dá um passo importante em sua carreira com Família Submersa, filme que aborda o luto de Marcela, personagem vivida por Mercedes Morán, que precisa seguir a sua vida mesmo entristecida por conta do recente falecimento da irmã. Conversamos com María por telefone para saber um pouco mais sobre o processo que gerou esse filme sensível e atento aos detalhes, avesso a rompantes emocionais ou catarses. Confira o Papo de Cinema exclusivo com María Alche.
O filme aborda um trajeto de dor contida, no mais das vezes sem rompantes ou catarses. Por que era importante para você refutar algo como um melodrama rasgado?
Estava tratando de pensar acerca da complexidade da morte, de uma pessoa que desaparece e do que permanece dela nesse mundo. Por exemplo, gestos e objetos. Os vivos têm uma tarefa de reabsorção. Tal processo não é rápido, pode durar uma vida inteira e nunca se completar. Nem sempre isso tem a ver com relatar e chorar. A morte desperta algo diferente. Ocasionalmente é o absurdo da vida. É como se recebêssemos um golpe, pois em contato com o mistério. A protagonista passa a sentir a proximidade da morte de várias maneiras. Por isso tudo não tive a necessidade de estabelecer um melodrama. Desejava, antes de qualquer coisa, mostrar que a vida continua. É um pouco o sentimento de ciclo, de que num momento nascemos e no outro estamos no extremo oposto da pirâmide.
Você ressalta o carinho familiar, especialmente enquanto alento para o sofrimento da protagonista. Como foi a construção dessa dimensão afetuosa?
Primeiro, trabalhei com a Mercedes. Tivemos conversas sobre a personagem, a respeito de como era a família, especificamente a mãe. Com os atores que vivem os filhos fui construindo separadamente, inventando dinâmicas para emular as relações entre os irmãos. Para mim era importante que aquele grupo parecesse uma família, com tudo que isso pede, inclusive ocasionais agressividades. Fizemos improvisações. Gosto de lidar com atores de várias formações. Para você ter uma ideia, os dois mais jovens nunca haviam feito cinema. Essa assimetria de lidar com métodos distintos me interessa. Ao dirigir levo em consideração as singularidades, porque ninguém questiona ou responde a partir do mesmo lugar. Dessa complexidade surge o diálogo que me agrada como realizadora.
No filme, o passado são os fantasmas, o presente é essa dor em processo de mitigação e a possibilidade de futuro está no sorriso final da personagem. É mais ou menos por aí?
Pode ser. Gosto de pensar assim. A dança tampouco dá uma ideia de plenitude, de felicidade a partir dali. Acredito que esse encerramento é bonito, inclusive, por que cada um pode interpretar da maneira como melhor lhe convir. A música desempenha um papel fundamental nesse sentido, por ser um pouco alegre e um pouco triste, levemente sombria, mas transcendental. Pesquisamos bastante para chegar a essa canção, exatamente porque tinha de denotar que está tudo bem, mas que está tudo mal. Mas, me conforta pensar que naquele momento ela opta pela vida.
Mercedes Morán viveu sua mãe em A Menina Santa, então já havia uma relação prévia. Ela foi a primeira opção para viver a protagonista, lá quando você escreveu o roteiro?
Escrevi essa personagem para outra atriz com, inclusive, um tipo físico bem diferente. Não tinha imaginado que recorreria a Mercedes. Mas, minha primeira opção não pôde, por alguns motivos, e então comecei a pensar em distintas personalidades que poderiam se encaixar. Com a Mercedes tive uma relação anterior de carinho, portanto facilitou. Ela gostou muito do roteiro do filme, compreendeu o que desejávamos e abraçou o todo com bastante entusiasmo. Mercedes é fantástica. Aqui ela que dá uma dimensão sensual à protagonista que não estava prevista no roteiro, que não havia sido pensada por mim. Aquele sorriso final também tem um pouco disso.
O quanto ter estreado com Lucrécia Martel, ter acompanhado o processo dela como cineasta, auxiliou na construção do seu modus operandi como roteirista e diretora?
Essa é uma pergunta que me fazem muito. Família Submersa é um trabalho pessoal. Sobre isso da possível influência da Lucrecia, quem está de fora pode, talvez, entender um pouco melhor isso do que eu. Somos amigas, colaboramos em outros projetos. No momento estamos trabalhando num documentário sobre uma comunidade indígena. Claro, gosto de discutir com ela questões relacionadas à narrativa, porque a Lucrecia sempre traz pontuações interessantes. Mas esse filme é bastante pessoal, até porque as histórias são similares a algumas da minha família.
De que maneiras sua atividade como atriz influencia o modo como você dirige?
De maneira determinante. Minha forma de escrever e dirigir passa muito pela experiência como atriz, sobretudo no que diz respeito à utilização do corpo. Quando escrevo, levo em consideração, mais ou menos, os futuros exercícios de improvisação. Penso no corpo, no fato de que uma situação acaba levando à outra. Para mim, isso gera uma organicidade mais rara, conectada a algo misterioso, sobre o qual me interessa descobrir. Enquanto diretora é parecido. Gosto de sentir com meu próprio corpo as cenas. Fico cômoda em meio aos atores.
(Entrevista concedida por telefone, numa ponte Buenos Aires/Rio de Janeiro, em março de 2019)